quarta-feira, 29 de abril de 2015

A última aula, por Juarez Tavares

O tempo corre e a vida na Terra se transforma. Para nós, que aqui habitamos e não podemos nos deslocar com a velocidade da luz, os acontecimentos se sucedem inexoravelmente e o presente se transmuda, todos os dias, em passado. Dia 15 de junho de 2012 ministrei na UERJ minha última aula de graduação, porque em agosto próximo deverei aposentar-me compulsoriamente. Já se foram mais de 35 anos de magistério superior, sempre na cadeira de direito penal. Comecei minha carreira docente na Universidade Federal do Paraná, passei pela Universidade Católica do Paraná, pela Universidade Estadual de Londrina, pela PUC/RJ, pela Uni-Rio para, finalmente, terminar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fiz pós-graduação, mestrado, doutorado (duas vezes) e pós-doutorado. Durante esse período, cada vez de modo atualizado, procurei transmitir aos meus alunos o conhecimento daquilo que a ciência penal produziu no Brasil e no mundo. Intensifiquei o estudo da dogmática penal, percorri com os estudantes todos os caminhos e meandros das teorias, dos critérios de racionalidade, de suas possibilidade e impossibilidades. Minha preocupação foi desenvolver nos estudantes uma visão crítica do direito, dentro daquela tradição tão bem representada pela Escola de Frankfurt, onde formei e aprimorei meu pensamento crítico. Meu objetivo não era, primordialmente, buscar soluções, mas apresentar problemas, levar ao extremo uma dialética negativa, única forma de fazer com que as pessoas refletissem sobre as contradições de uma legislação repressiva em face de uma sociedade essencialmente desigual, desumana e profundamente comprometida com uma visão autoritária. Busquei mostrar os antagonismos e as incoerências dessa sociedade e das políticas estatais que a representam no âmbito das normas incriminadoras. Sempre dediquei meu tempo a me opor às soluções mirabolantes e messiânicas, todas essas sedimentadas na crença de que por meio do direito penal se poderia alcançar a proteção infinita e a eterna felicidade. Essa crença vã jamais habitou meu pensamento; afastei-a de minhas aulas; monitorei cada frase de meus escritos para que não a encampassem; sugeri constantemente aos estudantes que dela se libertassem. Meu magistério foi voltado a outra crença, à crença na pessoa humana e em sua luta constante e eterna por sua liberdade. Não sei se consegui formar seguidores ou simpatizantes, mas cumpri meu dever de assinalar a todos que outro mundo é possível.

Publicado em 1º.4.2015 em http://emporio-do-direito.jusbrasil.com.br/noticias/178668000/a-ultima-aula-por-juarez-tavares

O Prof. Juarez Tavares veio a Belém para a VI Conferência de Direitos Humanos da OAB, que infelizmente não pude acompanhar. Mas, segundo meu amigo Vladimir Koenig, ele continua defendendo a revolução contra a opressão. Bom saber.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Prisão domiciliar para cuidar de filha adolescente

Na postagem anterior, falei sobre caso decidido pelo juiz da Vara de Execução Penal de Joinville (SC), o Sr. João Marcos Buch. Não o conheço, nada sei a seu respeito, mas estou vendo que se trata de um magistrado corajoso e profundamente humano, duas virtudes extremamente necessárias em nosso mundo, notadamente em sua área de atuação.

Ao ler a matéria sobre o caso da detenta que ganhou prisão domiciliar porque estava doente terminal, em dezembro de 2014 aquele juiz proferiu outra importante decisão graças a sua sensibilidade e capacidade de usar o direito para enfrentar problemas concretos, com os olhos claramente postos na realidade e não nos meandros legais, que não devem ser a prioridade.

Se fosse cumprir a lei em sentido estrito, Buch jamais teria deferido prisão domiciliar para uma detenta que, fora dos requisitos do art. 117 da Lei de Execução Penal, precisava no entanto cuidar de sua filha de 14 anos, que estava sem referências familiares, eis que seu pai também era presidiário. Informe-se sobre o caso lendo aqui.

A deliberação de Buch pode ser interpretada como a lembrança de que o princípio da intranscendência da pena é uma falácia: na verdade, toda pena passa da pessoa do condenado, a menos que ele não tenha ninguém no mundo. A seu modo, a adolescente cumpria as penas do pai e da mãe, com o detalhe nada irrelevante de que ela mesma não cometera delito algum. Por isso, "o Estado" deveria fazer algo por ela, em atenção aos ditames da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que consagram a doutrina da proteção integral aos menores de 18 anos. Isto em termos positivados. Mais importante é tomar tais atitudes porque é o certo a se fazer.

Louvando-se em estudo social realizado para o caso concreto, e não em fórmulas jurídicas vazias, maneirismos judiciais, presunções tolas, ela decidiu o que certamente será melhor para aquela família. Ele deu uma chance. Fico na torcida para que dê muito certo e a turma da lei e ordem tenha que engolir mais essa, em vez de ganhar argumentos para suas verberações de ódio.

Parabéns ao juiz João Marcos Buch. Tenha meu respeito.

Era muito importante almoçar com ela

Graças ao amigo Renan Trindade, a quem agradeço, tomei conhecimento da história de um menino de apenas 11 anos, que escreveu ao juiz da Vara de Execuções Penais de Joinville (SC), para fazer um importante agradecimento. A reportagem está aqui.

A história é mais um desses dramas brasileiros que não viram enredo de novelas ou de filmes. Trata-se de um casal em que tanto o homem quanto a mulher foram presos diversas vezes1. Ganhavam a liberdade, delinquiam novamente e retornavam à prisão. Mas a mulher contraiu HIV2 e a doença minou o seu corpo. Em fins de 2014, estava com metade do corpo paralisado devido a lesões cerebrais, algemada sobre uma cama de hospital3. A criança e sua avó foram fazer seu apelo ao juiz.

E o juiz escutou. O primeiro ato elogiável que realizou foi diligenciar no hospital, para ver com os seus próprios olhos a verdade. Constatando a situação degradante da presa e, por consequência, a existência de fundamentos legais4, que entretanto outros magistrados poderiam não enxergar, ele concedeu a prisão domiciliar.

A família então se reuniu. Quis a Providência que, também no fim do ano, o pai do garoto obtivesse o livramento condicional e começasse a trabalhar. Naturalmente, outra decisão do mesmo juiz. E assim aquela família pode fazer coisas extraordinárias, tais como passar junta as festas de fim de ano ou almoçar junta (aqui nesta outra matéria). Aspirações gigantescas para quem não teve tais oportunidades5.

Este enredo não tem lances açucarados de novelas globais. Criança e avó sempre souberam que a mulher estava para morrer e queriam não mais do que isto: favorecer-lhe uma morte digna. E foi assim que se deram os fatos. No último dia 25 de março, ela fechou seus olhos sob os cuidados de quem se importava.

E o que fica? Fica uma criança parcamente letrada e ela mesma soropositiva6, que se deu ao trabalho de escrever ao juiz, por meio do Facebook, hipotecando-lhe sua gratidão e demonstrando o impacto que essa decisão judicial teve sobre sua vida. Em suas linhas finais, ele diz uma verdade que costuma aterrorizar os "cidadãos de bem" que nos cercam por todos os lados: ele sabe que tem direito a fazer escolhas e pretende exercitar esse direito.

Quando o vejo anunciar seu desejo de ser um homem honesto7, recordo-me daquela belíssima cena de Os miseráveis, em que o padre tem a oportunidade de mandar Jean Valjean de volta à cadeia, provavelmente para sempre, mas em vez disso, sem se perturbar, mente aos policiais dizendo que dera de presente os objetos que na verdade haviam sido furtados. Depois, sendo questionado pela ladrãozinho sobre o motivo de assim agir, admoesta: use esse dinheiro para se tornar um homem de bem!

E Valjean se tornou um homem de bem. Se é que já não era antes de ser degradado pela prisão, para a qual fora mandado devido ao furto de um pão durante situação de penúria. Fico pensando no que pode se tornar o protagonista deste nosso drama, se ele conseguir superar as terríveis oportunidades diárias de morte que enfrentamos e que fazem Zaffaroni considerar o cenário da América Latina como um ambiente de genocídio8. Tornar-se-á ele um médico ou será tragado por este nosso mundinho de perdas?

Provavelmente, jamais saberemos. Findas estas linhas, o menino retorna a sua invisibilidade. Mas ele inspirou o meu dia e me fez lembrar de outras histórias já publicadas aqui no blog, que merecem ser conhecidas, para a advertência dos vivos. Ao menos daqueles seres vivos que não cabem nas notas de rodapé desta postagem.

Sobre justiça restaurativa e a necessidade de perdão: 
http://yudicerandol.blogspot.com.br/2013/02/justica-restaurativa.html

Sobre as presidiárias capixabas que doaram cabelo em benefício de doentes de câncer:
http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/08/apenas-um-gesto.html

Sobre adolescentes em conflito com a justiça, mas com desejo de mudar:
http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/02/vantagem-da-experiencia-pessoal.html

Sobre a necessidade de projetos educacionais para detentos:
http://yudicerandol.blogspot.com.br/2011/09/e-isso-que-queremos.html

Sobre o genocídio na opinião de Zaffaroni, quando esteve aqui em Belém:
http://yudicerandol.blogspot.com.br/2010/09/os-criminosos-nao-sao-de-papel.html

Sobre as oportunidades que surgem quando o Estado cumpre o seu dever:
http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/08/e-se-tivessem-desistido-de-carolina.html

******
1 Fala o cientista político do Facebook: Então são dois bandidinhos vagabundos, que têm mais é que mofar na cadeia, mesmo!

2 Fala o cidadão de bem sentado em seu sofá: Com certeza é droga. Esse bando de vagabundo vive se drogando a roubando a gente que trabalha.

3 Fala o reprodutor automático dos discursos-clichê: Tá com pena?! Leva pra tua casa!

4 O art. 117 da Lei n. 7.210, de 1984 (Lei de Execução Penal) determina que o recolhimento domiciliar pode ser deferido ao beneficiário do regime aberto, o que não era o caso da personagem desta história, na hipótese de ser maior de 70 anos, portador de doença grave ou, se mulher, se possuir filho menor ou com deficiência física ou mental, ou ainda se gestante. Como vi em várias ocasiões durante meu tempo de serventuário de justiça, pedidos de prisão domiciliar tendem a ser negados, sob o argumento de que o Estado tem o dever de garantir a assistência à saúde do preso, então se não houver condições de tratamento na própria casa penal, ele poderá ser conduzido à rede hospitalar, quando necessário e de acordo com as exigências legais. Aham, senta lá, Cláudia.

5 Fala de novo o colonizado pelos empresários morais: Não teve oportunidade porque não quis. Se estivesse trabalhando ou na igreja, rezando, não iria para a cadeia!

6 Fala o cristão piedoso que vai à missa comungar: Isso também é culpa dessa mãe desgraçada!

7 Profetiza o sujeito que hostiliza sociólogos (intelectuais de esquerda) e a "turma dos direitos humanos": Papo furado. Vai ser vagabundo também e colocar a culpa na sociedade que foi má para ele!

8 Como referência principal, a obra Em busca das penas perdidas.