terça-feira, 12 de maio de 2009

Rememorando o caso dos emasculados de Altamira

Fui trabalhar no Tribunal de Justiça do Estado, atendendo ao convite do Des. João Maroja, em julho de 2003. Um ano depois, enfrentei o primeiro e, até hoje, maior desafio que essa função já me proporcionou: o caso dos meninos emasculados de Altamira.

Os crimes, horrendos, aconteceram entre 1989 e 1993 e apresentavam características de rituais satânicos. Na época, circulava pela região uma certa Valentina de Andrade Muñoz, líder de um mal explicado grupo chamado Lineamento Universal Superior, surgido na Argentina, defensor de peculiares ideias sobre o bem e o mal, particularmente uma segundo a qual todas as crianças nascidas após 1981 (salvo engano, o ano era esse) teriam uma origem perversa e, por isso, nociva ao mundo.

O caso mostrou o que é o Brasil: acusados influentes (dois médicos, sendo um deles envolvido com política, e supostamente outras pessoas endinheiradas) e vítimas pobres. Ou seja, as autoridades não deram a menor importância. As famílias dos mortos não foram ouvidas, apesar de seus intensos apelos. Já na década de 1990, a mobilização de grupos de defesa dos direitos humanos conseguiu atrair a atenção da Polícia Federal. Foi só com a entrada da PF na história que a polícia paraense resolveu levar a sério as investigações, até uma conclusão. Surgiu, assim, a ação penal. Mas o passar do tempo fez com que apenas cinco crimes fossem objeto do processo. Os demais serão sempre uma dor para as famílias, em vão.

As idas e vindas do processo foram intensas. Anos e anos se passaram até que os réus foram finalmente levados a julgamento, em Belém, devido a um desaforamento que tentava eliminar influências indevidas no tribunal do júri. As sessões de julgamento entraram para a história, com suas patuscadas advocatícias, destacando-se o advogado Cláudio Dalledone Jr., com sua raiva juvenil e eterna cara de limãozinho azedo. Quando entrava no gabinete, só se dirigia ao desembargador. Nós outros éramos invisíveis. Foi ele o responsável por mais do que duplicar o número de volumes dos autos (chegamos a 68 volumes), injetando documentos absolutamente inúteis, cuja leitura posteriormente exigiu em plenário, fazendo com que, na primeira semana de julgamento, não acontecesse quase nada de relevante e exaurindo os jurados, cujas comunicações entre si e com o mundo exterior causaram a posterior anulação do julgamento da ré.

Dalledone teve sucesso com Valentina de Andrade, mas não com o médico Césio Brandão, por fim condenado a 56 anos de reclusão. Mas teve seus 15 minutos de fama, que lhe permitiram ganhar duas causas importantes na cidade (uma delas, a defesa de Rafael Cândido Lobato da Silva, condenado pelas mortes de dois jovens num acidente automobilístico), como se aqui ele fosse se tornar o mais bem sucedido advogado criminal do Centro-Sul. Mas em ambos os casos acabou derrotado, o que deve ter alertado aos interessados quanto à desnecessidade de buscar advogados do Centro-Sul Maravilha, quando aqui dispomos de tantos nomes valorosos. O fato é que não se ouve mais falar do rapaz por estas bandas.

Debrucei-me nos intermináveis autos processuais para preparar o julgamento das seis apelações (uma de cada réu condenado, uma do Ministério Público, uma da assistência de acusação). Foram meses de trabalho árduo. E assim o classifico pela imensa responsabilidade que representava, com o plus representado pelas pressões dos advogados e cobranças da opinião pública. Só para redigir o voto de 92 laudas gastamos cerca de quatro meses. Somando-se a isso o tempo de tramitação processual, altamente prejudicado por manobrinhas da defesa, posso assegurar que fiquei muito feliz quando a coisa terminou, um julgamento com várias horas de duração.

Na sessão do dia 28.4.2005, o TJE manteve a sentença dos quatro réus condenados em primeira instância e mandou recolher à prisão os três que respondiam em liberdade. Foram presos mas, posteriormente, ganharam do STF a possibilidade de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos, salvo o ex-soldado da Polícia Militar Carlos Alberto dos Santos Lima que, envolvido em outros crimes, esteve preso o tempo inteiro. Como sempre, quem realmente se deu mal foi o mais vulnerável do grupo ou a raia miúda, como se diz no popular.

Com o trânsito em julgado, todos deveriam ser presos, mas a essa altura, claro, estavam foragidos. Ontem, após ser preso no Maranhão, retornou a Belém o médico Anísio Ferreira de Souza, condenado à maior pena (77 anos). Com isso, ele passa a ser o segundo condenado a cumprir sua pena. Césio Flávio Caldas Brandão e Amailton Madeira Gomes permanecem em paradeiro desconhecido.

Valentina de Andrade, quando esteve
presa aqui em Belém
Quanto a Valentina de Andrade, supostamente a mais perigosa do grupo, representa a crônica de uma impunidade anunciada. Quando absolvida pelo júri, já se podia imaginar que o Judiciário nunca conseguiria julgar todos os recursos cabíveis, incluindo perante o STF, antes que ocorresse a prescrição, para ela reduzida à metade (10 anos), por ser maior de 70 anos. E assim foi. Não se sabe por onde anda. Mas temos certeza que está vivendo luxuosamente.

Com a notícia da prisão de Anísio de Souza, lembrei aqueles tempos e as fotografias horrorosas que instruíam os autos. Lembrei de mim mesmo me perguntando como alguém pode ser capaz de fazer aquilo.
Não creio que haja uma resposta suficiente para essa questão.

13 comentários:

Gabriel Parente disse...

1 - O dia em que a polícia do Pará fizer alguma coisa produtiva, além de mudar o guarda-roupas, eu me calo.

2 - Os soldados sempre servem de laranjas (vide Tiradentes).

3 - Sempre me disseram que tem advogado que só faz enxer os autos com coisas inúteis, e depois reclamam que o judiciário demora pra julgar.

Frederico Guerreiro disse...

"Quando entrava no gabinete, só se dirigia ao desembargador. Nós outros éramos invisíveis". Conheço alguém que é invisível até pelos serventuários. Mas não pelos seguranças, que lhe param para revistar lá no Fórum, olhar sua pasta, seus documentos...
Qualquer dia, esse meu amigo vai entrar no Fórum e algum juiz vai passar através dele no corredor, de tão invisível que ele é.

O que o Dalledone fez foi tumultuar e ganhar tempo.

Espero que, com a repercusão que o caso teve, pelo menos tenham sido evitados outros.

Yúdice Andrade disse...

Gabriel:
1 - Acho que, par afazer maior justiça, devemos relacionar o teu comentário às cúpulas. Afinal, a maior parte da polícia é composta por trabalhadores que não são tratados dignamente nem dentro da própria corporação. O vício é de origem.
2 - O caso de Eldorado do Carajás é um exemplo curioso, porque nesse caso sobrou para oficiais. Mas, confirmando a regra, não para o superior dos oficiais.
3 - São estratégias. Alguns colegas acham que todas, sem exceção, são legítimas. Eu discordo.

Fred, espero não ter que esbarrar nesse tipo que descreves.

Yúdice Andrade disse...

Querida Rita, atendi ao teu pedido. Minha solidariedade.

Anônimo disse...

O caso mostrou o que é o Brasil: acusados influentes..., vítimas pobres, justiça de costas perante 10 anos, mídia sedenta de sangue misturada de telenovela de terror aportada por um PF quase expulso do Sul.

Sim, o caso mostrou o que é o Brasil.

Quanto a Valentina de Andrade, é pouco (ou nada) o que sabe, quem deve fazer honor ao posto público que ostenta, e de quem opina. Se faze uma pesquisa no Google se encontrará com www.valentinadeandrade.com.br onde poderá fazer perguntas diretas em vez de ter "certeza" de aquilo que não tem.

PD: A inveja não é boa amiga de quem deve decidir com a cabeça fria.

Yúdice Andrade disse...

Comentário publicado, das 20h29. Acessei o sítio que você gentilmente me recomendou. Agora que sei melhor quem é Valentina de Andrade, de cabeça muito fria, fico mais à vontade para manter minhas opiniões.
Até ia transformar este seu reproche numa postagem, mas simplesmente não vale a pena.

Anônimo disse...

Sou gilberto Denko, librepensador.
Lei com atenção sua nota, e tambien navegue intensamente a pagina www.valentinadeandrade.com.br
Encontre ainda mais interessante a publicação realizada pelo jornalista no Blog: http://josecaldas.wordpress.com/
Sigo o caso desde o começo e até tive a oportunidade de conhecer à Sra. De Andrade.
Só quem tenta a verdade a encontra.
Esta claro que o caso foi um ridiculo juridico, mediatico e institucional.
A Sra. De Andrade é inocente.
Só quem não quer o ver pode seguir manifestando o contrário.

Erlon Andrade disse...

Como fica essa história se o mecânico Francisco da Chagas confessou 12 assassinatos no Pará? Mesma época em que os supostos assassinos estavam sendo cassados.

http://www.oquedeustemfeitoemtuavida.net/2013/02/dr-cesio-flavio-caldas-brandao.html

Yúdice Andrade disse...

Erlon, o mecânico confessou mortes no Pará, naquela época, e consumiu tempo e esforços das autoridades com pistas falsas e inconclusivas. Foi amplamente divulgado pela imprensa que, no lugar apontado como sendo uma das covas, foram encontrados ossos de cachorro, não de humanos.
O caso é que, mesmo ele tendo feito vítimas por aqui, não há nada que mostre ser ele um único emasculador em Altamira, naquela época. Ele matou uns, outras pessoas fizeram vítimas diferentes. Lembre que a postagem informa sobre estarem sendo analisados apenas 5 crimes. Apenas 5. Em relação àqueles 5 meninos, realmente acreditamos que o grupo condenado tem culpa.

Erlon Andrade disse...

Obrigado pela atenção.

Unknown disse...

E se eu te disser que nada neste inquérito é verdade e que o assasino é o maranhense Francisco? Vc acreditaria no Delegado de polícia que participou das investigaçóes do último crime pois era o Delegado de Altamira? Acreditaria que o Delegado Geral de polícia civil em 2003, a mando do Governador Simão Jatene, designou um delegado da Dioe para interrogar Francisco e que ficou convencido pelas provas ser ele o culpado? E que o governador mandou sumir com as provas e calr a boca dos que sabiam a verdade? Se quiser a verdade, eu sei e provo.

Yúdice Andrade disse...

Caro Roberto Macedo, para as pessoas mais próximas, a solução de seus dramas é necessário para virar a página e seguir adiante. Para a sociedade como um todo, a verdade é indispensável para nos conhecermos enquanto povo e termos uma perspectiva mais clara de nossas próprias vidas. É por isso (também) que se discute tanto a questão da verdade histórica em relação à ditadura civil-militar brasileira.
O mesmo raciocínio, contudo, pode ser aplicado em relação a crimes comuns, mormente quando de grande repercussão. Por isso, meu amigo, é da maior importância que você apresente as provas que possui. Não para mim, que sou apenas um cidadão que gosta de observar o mundo em redor. São todos os brasileiros que precisam conhecer essa verdade. Sobretudo porque, como você diz, envolve decisões de governo.
Aguardo com interesse a revelação desses fatos. Abraço.

Ludson disse...

HAHAHA FOI PRESA NO PARANA, https://www.google.com.br/amp/g1.globo.com/pr/norte-noroeste/noticia/2016/10/policia-federal-faz-operacao-contra-lavagem-de-dinheiro-em-londrina.amp