O Congresso Nacional não chegou a apreciar a Proposta de Emenda à Constituição n. 439/2014, que será arquivada daqui a três dias (31 de janeiro), devido ao encerramento da legislatura. Contudo, qualquer um dos autores do projeto, que tenha sido reeleito, pode mandar desarquivá-la. E qual o motivo do interesse?
A intenção é de modificar o art. 109 da Constituição de 1988, por meio da transferência para a competência da Justiça Federal dos "crimes sexuais praticados contra vulnerável". Assim, todo e qualquer caso de estupro ou de exploração sexual contra crianças, adolescentes e portadores de transtornos mentais ou retardo mental sairia da Justiça estadual para o novo foro. Diga-se de passagem, a esmagadora maioria dos processos sobre crimes sexuais, que é enorme, envolve vulneráveis.
Caso a proposta fosse aprovada, os juízes e os tribunais estaduais respirariam aliviados, por perderem uma grande demanda. Por outro lado, a Justiça Federal, que possui uma estrutura muito menor, sofreria com a quantidade de novos feitos. A consequência óbvia será a maior demora em julgar esses processos, em relação à situação atual, ampliando o problema de impunidade efetiva.
Desde a Constituição de 1988, volta e meia se fala em federalização de crimes, em clara demonstração de desconfiança contra o judiciário no âmbito dos Estados. No caso vertente, isto é expressamente declarado pelos próprios autores do projeto, membros da CPI que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes, que abrem a justificação do mesmo com estas palavras:
"O objetivo desta proposta é afastar a impunidade nos crimes sexuais praticados contra vulnerável. Esta CPI constatou, em suas investigações, que muitos exploradores sexuais de crianças e adolescentes gozam de prestígio em suas regiões, por serem políticos, empresários, policiais, juízes, membros do Ministério Público ou parentes de autoridades.
Dessa forma, esses criminosos são blindados, os processos ficam engavetados até prescrever o crime ou os agentes são simplesmente absolvidos e ficam livres para continuarem praticando esses crimes.
Em outros casos, essas redes de exploração sexual de jovens exerce forte coação, com ameaças ou até mesmo com a execução de testemunhas, de delatores e de autoridades envolvidas na investigação e punição de tais crimes."
Sem meias palavras, o que os parlamentares afirmaram é que o judiciário dos Estados é conivente, ou no mínimo leniente, com tais crimes, permitindo-se verdadeiro compadrio com os malfeitores, inclusive por relações pessoais. Note-se que não há nenhuma referência a eventual caráter interestadual ou internacional dos delitos, o que poderia justificar a intenção de federalização. Idêntica crítica à omissão dos Estados ensejou a PEC 45/2004, no particular em que federalizou "as causas relativas a direitos humanos" (art. 109, V-A), instituindo um constrangimento hermenêutico por causa da imprecisão do conceito de direitos humanos.
Não me parece que a transferência de ações penais para a já sobrecarregada Justiça Federal representaria avanço na luta contra a impunidade. E outros problemas surgiriam. Veja-se o caso do Pará, Estado de dimensões colossais: há varas federais e/ou juizados em Belém, Castanhal, Marabá, Redenção, Paragominas, Santarém, Itaituba, Altamira e Tucuruí. Não sei se todas estão instaladas. E são 144 Municípios no Estado. Com a federalização, muitas causas seriam processadas bem longe dos locais dos crimes, dificultando a instrução processual. Só a distância já é um grande problema, mas temos a malha rodoviária ruim, problemas nos serviços de internet, etc. Os nobres parlamentares não pensaram nisso? Ou simplesmente desconhecem o país onde vivem?
Também não vejo como solução dizer à justiça estadual que ela é inconfiável. Nem podemos tomar isso como um fato, uma realidade pura e simples, e ainda por cima imodificável. Não podemos construir políticas sobre exemplos, tão somente. Até porque pressões e influência econômica e política também existem em nível federal. Por isso, penso que a proposta é ingênua e escapista. O que precisamos mudar não é a competência jurisdicional, mas o modo de agir das autoridades públicas como um todo, não apenas as judiciais.
Sobretudo, não podemos fechar os olhos ao abuso sexual contra vulneráveis. Não podemos tolerar certas práticas apenas porque sempre existiram ou porque não queremos nos envolver. Perceba que, agora, já não estou falando do poder público. É cada cidadão que precisa se comprometer com a proteção de nossa juventude. O número de crimes pode diminuir se começarmos a levar o assunto mais a sério.
Ver a PEC e sua justificação: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=34F5A01122AA9EB9A7C7C71019642A98.proposicoesWeb1?codteor=1292330&filename=PEC+439/2014
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
Dias inócuos
Quando foi promulgada a lei instituindo o Dia Nacional do Macarrão (Lei n. 13.050, de 8.12.2014), as redes sociais se encheram de críticas à presidente reeleita, com as quais os bem informados brasileiros pretendiam responsabilizá-la por uma ação tola e inútil. Escrevi uma postagem tentando alguns esclarecimentos (leia aqui).
Mas, independentemente de mim, os críticos pararam de se preocupar com a produção legislativa brasileira. Neste ano de 2015, já foram publicadas 22 leis. Destas, nada menos que 9 instituem o dia de alguma coisa.
Foram instituídos os dias do humorista, do pedagogo, do fisioterapeuta e do terapeuta ocupacional, de atenção à dislexia, da conquista do voto feminino no Brasil, da vigilância sanitária, do técnico agrícola, da parteira tradicional e do milho. Antes disso, ainda em 2014, mas depois do macarrão, tivemos leis criando datas comemorativas para os direitos fundamentais da pessoa com transtornos mentais, para os agentes de combate às endemias, para a Língua Brasileira de Sinais e para os profissionais da educação.
Em comum, esses diplomas têm o fato de apenas criarem as tais datas e nada mais. Alguns deles, como no caso do técnico agrícola ou dos portadores de transtornos mentais, contêm um artigo determinando que setores públicos promovam algum tipo de atividade alusiva ou, às vezes, que as escolas realizem atividades de esclarecimento ou que o tema seja lembrado para fins de elaboração de políticas públicas, etc.
No fundo, tudo inócuo. Como podemos perceber, essas leis envolvem basicamente três áreas. As duas primeiras dizem respeito a categorias profissionais e à produção agropecuária ou industrial. Basicamente, um deputado federal ou senador, ligado de algum modo a essas áreas ou a seus representantes, faz uma proposta que é uma espécie de afago no ego. Vejo um certo apelo publicitário nisso, para retornar sob a forma de dividendos eleitorais. Mas a ideia chega com um valoroso envoltório, que é honrar uma classe profissional cujos méritos não seria decente minimizar.
A terceira hipótese pertine aos dias que homenageiam alguma espécie de direito humano, denotando uma certa postura ativista. Na lista acima, é o caso da dislexia, do voto feminino, dos transtornos mentais e da LIBRAS. As leis, assim, funcionam como um esforço para dar visibilidade a essas causas, que precisam de maior atenção da sociedade e dos poderes públicos. O problema, aqui, é a improvável capacidade de tais leis produzirem algum efeito prático concreto, o que seria de todo desejável.
As leis sobre dias comemorativos revelam-se, assim, como sintomas de uma sociedade claudicante no que tange à valorização do trabalho e dos direitos humanos, porque ainda precisa de manifestações formais e ostensivas desse tipo. Se determinadas categorias profissionais e certos direitos já tivessem alcançado o patamar de prestígio e assimilação social que merecem, não precisaríamos dar declarações sobre isso. Principalmente declarações que mais não são do que palavras ao vento.
Mas, independentemente de mim, os críticos pararam de se preocupar com a produção legislativa brasileira. Neste ano de 2015, já foram publicadas 22 leis. Destas, nada menos que 9 instituem o dia de alguma coisa.
Foram instituídos os dias do humorista, do pedagogo, do fisioterapeuta e do terapeuta ocupacional, de atenção à dislexia, da conquista do voto feminino no Brasil, da vigilância sanitária, do técnico agrícola, da parteira tradicional e do milho. Antes disso, ainda em 2014, mas depois do macarrão, tivemos leis criando datas comemorativas para os direitos fundamentais da pessoa com transtornos mentais, para os agentes de combate às endemias, para a Língua Brasileira de Sinais e para os profissionais da educação.
Em comum, esses diplomas têm o fato de apenas criarem as tais datas e nada mais. Alguns deles, como no caso do técnico agrícola ou dos portadores de transtornos mentais, contêm um artigo determinando que setores públicos promovam algum tipo de atividade alusiva ou, às vezes, que as escolas realizem atividades de esclarecimento ou que o tema seja lembrado para fins de elaboração de políticas públicas, etc.
No fundo, tudo inócuo. Como podemos perceber, essas leis envolvem basicamente três áreas. As duas primeiras dizem respeito a categorias profissionais e à produção agropecuária ou industrial. Basicamente, um deputado federal ou senador, ligado de algum modo a essas áreas ou a seus representantes, faz uma proposta que é uma espécie de afago no ego. Vejo um certo apelo publicitário nisso, para retornar sob a forma de dividendos eleitorais. Mas a ideia chega com um valoroso envoltório, que é honrar uma classe profissional cujos méritos não seria decente minimizar.
A terceira hipótese pertine aos dias que homenageiam alguma espécie de direito humano, denotando uma certa postura ativista. Na lista acima, é o caso da dislexia, do voto feminino, dos transtornos mentais e da LIBRAS. As leis, assim, funcionam como um esforço para dar visibilidade a essas causas, que precisam de maior atenção da sociedade e dos poderes públicos. O problema, aqui, é a improvável capacidade de tais leis produzirem algum efeito prático concreto, o que seria de todo desejável.
As leis sobre dias comemorativos revelam-se, assim, como sintomas de uma sociedade claudicante no que tange à valorização do trabalho e dos direitos humanos, porque ainda precisa de manifestações formais e ostensivas desse tipo. Se determinadas categorias profissionais e certos direitos já tivessem alcançado o patamar de prestígio e assimilação social que merecem, não precisaríamos dar declarações sobre isso. Principalmente declarações que mais não são do que palavras ao vento.
sábado, 24 de janeiro de 2015
As crianças mortas na canção
Renato Russo era um poeta trágico. Consta que sequer se considerava um poeta, e sim um "letrista", mas suspeito que era uma concessão à modéstia, ainda que ensaiada. Duvido que ele desconhecesse a força de sua obra, ainda mais com o "messianismo" (a expressão é de Arthur Dapieve, na biografia Renato Russo: o trovador solitário) instilado nos fãs, numa época em que o sucesso musical ainda continha componentes de mérito autoral e não (apenas ou predominantemente) de inserção midiática, que os empresários do ramo de entretenimento, hoje, conseguem atribuir até a retardados mentais.
Quanto a ser trágico, isto era consequência de seus tumultos íntimos, que não eram poucos. Ele se inquietava com o comportamento das pessoas, com as ações das autoridades e, como se não fosse pouco, com os próprios dilemas. Não à toa me identifico com ele, infelizmente sem contar com o seu talento. O fato é que essas amarguras ponteavam em suas composições, muitas vezes através de alegorias duras de escutar. Uma dessas alegorias, recorrente na obra do compositor, tinha a ver com crianças mortas.
Já no primeiro disco da Legião Urbana (autointitulado, 1984), na canção "O reggae", Renato desabafa: "Tentava ver o que existia de errado/ Quantas crianças Deus já tinha matado".
É preciso perceber que, nesta canção, ele critica os valores da sociedade que, dependendo do teórico consultado, pode ser chamada de pós-moderna, moderna recente, pós-fordista e uma leva de outras nomenclaturas, mas que em síntese é a sociedade capitalista que mede os seres humanos pela fortuna ou pelo acesso ao consumo, subvertendo os valores humanistas pelo individualismo exacerbado, pela busca incessante da satisfação pessoal e pelo abandono do senso crítico, dentre outras perdas. Segundo Eduardo Rezende, editor do blog O Livro dos Dias - Análises e interpretações, esta canção foi feita para criticar o governo Collor, como o próprio Renato teria deixado claro em shows (leia aqui).
O fato de escrever em primeira pessoa reforça o sentimento de perplexidade do poeta ao descrever a primeira e mais importante instância de socialização depois da família, a escola, como um espaço autoritário que não existe para ensinar sobre o mundo, mas sobre como você deve se comportar nele, para agradar aos outros. Um processo de subjetivação disciplinar nos moldes denunciados por Michel Foucault. Sem ter o que aprender com a escola e mesmo com as pessoas que tanto amava, o poeta busca a realidade, ainda que pelo jornal da TV, momento em que aprende "a roubar para vencer".
É quando luta para "descobrir a verdade, no meio das mentiras da cidade", que o poeta se depara com as crianças mortas por Deus. Na verdade, o objetivo aí não era causar nenhum mal estar religioso, mas dizer que muitos malefícios são causados em nome das melhores intenções (declaradas, porque de melhores não têm nada). Todos os mecanismos de controle social buscam legitimação em razões valorosas mas, quando se olha de perto, o que se constata é o objetivo de controlar corpos e almas com objetivos escusos.
No terceiro disco (Que país é este - 1978/1987, 1987), na famosa e cinematográfica "Faroeste caboclo", Renato narra a saga do perigoso bandido João de Santo Cristo, que certo dia é procurado por um senhor de alta classe com dinheiro na mão. Ignoramos a proposta indecorosa feita pelo rico delinquente, mas João a recusa com raiva e revela que tem princípios: "Não boto bomba em banca de jornal/ Nem em colégio de criança/ Isso eu não faço não".
Na sociedade pós-fordista, regida pela ideologia neoliberal, o homem é entendido como um ser racional, dotado de cálculo prospectivo e que toma as suas decisões baseado em uma criteriosa análise de custo-benefício. Por isso, todo mundo acredita que as pessoas tornam-se criminosas simplesmente porque querem, porque são imorais, amorais ou crueis. Esta regra seria ainda mais evidente em relação a criminosos contumazes e violentos, justamente o caso de João de Santo Cristo (que na canção é descrito com uma ferocidade muito superior à mostrada no filme de René Sampaio). Aí vem o inusitado: o bandido de alta classe procura o psicopata porque está convencido de que este lhe fará o trabalho sujo. Mas nada disso: Renato parece estar gritando que ninguém pode calar a liberdade (de expressão, no caso) nem roubar o futuro das crianças.
No quarto disco (As quatro estações, 1989), em "1965 (Duas tribos)", Renato ataca uma das maiores tragédias da história recente do país, a tortura. A certa altura, diz: "Mataram um menino/ Tinha arma de verdade/ Tinha arma nenhuma/ Tinha arma de brinquedo".
É novamente no blog de Eduardo Rezende (aqui) que encontramos uma interpretação autêntica, na transcrição de comentário feito por Renato durante show no Jockey Club do Rio de Janeiro em 1990: "Esta é a música mais política de todas no disco. Fala de tortura e é sobre aquela época em que fazíamos redação sobre o país maravilhoso que o Brasil seria no futuro e em que achávamos que os presidentes eram o maior barato." Para entender parte do título da canção, 1965 foi o ano do Ato Institucional n. 2, que acabou com as eleições diretas, cassou partidos políticos, suspendeu direitos políticos e suprimiu garantias da magistratura.
Como o tema da canção é muito específico, percebemos que "mataram um menino" simboliza a violência de Estado contra todas as vítimas do sistema, em sua maioria jovens. A arma de verdade deve aludir aos que efetivamente resistiram ao regime de exceção, inclusive pela luta armada. A arma nenhuma, assim como a de brinquedo, parecem-me alusões ao fato de que se torturava e matava com base em meras suspeições ou às vezes se atacava inocentes como forma de acessar parentes e amigos procurados. Por conseguinte, não adiantava não ter arma alguma: você seria moído pela máquina de todo jeito, se agarrado por ela.
Vale lembrar que a atuação contemporânea da polícia brasileira, a que mais mata no mundo todo, é simples variação dos procedimentos adotados pelos agentes da repressão durante a ditadura. Não se trabalha mais com a figura do "subversivo" nem existe mais uma ameaça comunista. Mas os inimigos, as classes perigosas continuam existindo e sempre existirão, sob outros pretextos. E o modo de as autoridades interagirem com elas subsiste e ganha novas justificações, inclusive o apoio popular.
Nesta canção, Renato faz uma de suas mais fortes e belas provocações, que me comove bastante. Depois de falar na luta do bem contra o mal, ele indaga: "E você, de que lado está?" Isto nos remete diretamente à última faixa do disco anterior, "Mais do mesmo", uma letra tão importante que quase deu nome ao disco e que fala sobre um "menino branco" que sobe o morro para tentar se divertir, ou seja, conseguir drogas. Aí vem a pergunta: "Quando tem chacina de adolescente/ Como é que você se sente?"
Aqui, a letra parece destacar a diferença entre as classes sociais e as funções que lhe são atribuídas, com evidente caráter racista. O menino que tem dinheiro para comprar é branco e sai do espaço que lhe é próprio para ir ao morro, símbolo da pobreza. E mesmo em uma ação ilícita, ele se impõe sobre a população local: "Mas já disse que não tem/ E você ainda quer mais/ Por que você não me deixa em paz?"
Seguem-se queixumes sobre uma vida sem oportunidades, ao mesmo tempo em que somos cobrados a ser e a ter muitas coisas, na lógica insana de nossa sociedade meritocrática ("E agora você quer que eu fique assim igual a você/ É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui?"). É nesse momento que o poema insere a pergunta sobre chacina. Canção da banda que menciona expressamente o titulo, pouco comum para a Legião, o "mais do mesmo" representa ciclos de violência sem fim.
No sexto disco (O descobrimento do Brasil, 1993), são duas as menções. Em "A fonte", a pergunta direta denuncia um drama frequente: "Quantas crianças foram mortas dessa vez?"
No artigo "A representação das minorias na obra da Legião Urbana" (Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades, n. 8, maio-outubro 2011) o historiador Gustavo dos Santos Prado insere a canção em um tópico intitulado "O Estado e sua relação com as minorias: a leitura e denúncia do descaso expressos nas obras da banda". Para ele, o objetivo é criticar a falência do Estado de Bem Estar Social, causa de um profundo desalento no indivíduo. Com isso, nosso próprio país vira um "campo inimigo" e "você finge que vê, mas não vê".
Extrai-se, portanto, uma crítica também aos cidadãos, que permitem uma situação dessas. Inevitável pensar nas jornadas de junho de 2013, quando se ouvia tanto que indignação de brasileiro é fogo de palha. Pensar no brasileiro médio que espuma de ódio contra os políticos corruptos enquanto compra a carteira de motorista e busca jeitinhos para tudo. Realmente, é desalentador. Nesta canção, enfim, a morte das crianças não é metáfora e está posta de modo bastante literal. Uma morte que não é apenas assassinar, mas sobretudo um deixar morrer, por inércia e indiferença.
E na minha canção favorita da banda, "Perfeição", uma sequência de ironias destinada a chocar o público diante da contradição que seria comemorar tantas tragédias, o objetivo geral do poeta era criticar a omissão e a indiferença do brasileiro frente a tantas mazelas, em um momento da história brasileira em que as esperanças da primeira eleição direta pós-redemocratização haviam escoado pelo ralo de Fernando Collor e seu inoperante sucessor, Itamar Franco. Em uma das alegorias, o trovador propõe "Celebrar a juventude sem escola/ As crianças mortas".
Ao longo de 68 versos, Renato promove verdadeira compilação de categorias de tragédias humanas, desde a guerra até à solidão. Como diz Arthur Dapieve (p. 140): "Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato, O descobrimento trazia também um impressionante retrato do país, filme queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a Fernando Collor de Mello, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O Brasil que sobrara para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na quarta faixa, 'Perfeição', incrivelmente amarga mas, no final das contas, otimista. Ninguém era poupado."
Na letra, quase como se fizesse uma tempestade cerebral e se lembrasse aos poucos de tudo que o atormentava, Renato menciona a morte diretamente ao menos três vezes, em diferentes circunstâncias: nas estradas, por falta de hospitais e a de crianças, logo nos primeiros versos. Há críticas ao "Estado que não é nação", à polícia, à mídia e a diferentes formas de violência, intercalando as chicanas perpetradas por autoridades com aquelas que nós mesmos produzimos, em nossas vidas pessoais: desunião, tristeza, vaidade, ganância, difamação, preconceitos, hipocrisia, indiferença, inveja, intolerância, incompreensão, falta de bom senso.
Em que pese podermos atribuir um sentido literal à morte das crianças, o fato de a menção imediatamente anterior ser à "juventude sem escola" sugere que o autor não se refere somente à morte física, mas também à incapacitação do indivíduo pela ausência de educação formal, que inviabiliza a autorrealização individual, ainda no começo da vida.
Não podemos esquecer que, também no sexto disco, em "Love in the afternoon", Renato filosofa sobre a estranheza de os bons morrerem jovens ou morrerem antes. Como informa seu biógrafo, a canção fora inspirada pela morte de amigos do poeta, inclusive Tavinho Fialho, baixista que os acompanha na turnê do disco V (p. 141).
Imagino que poucas tragédias provocam reações tão acres quanto a morte de crianças. Veja-se que já assumo como tragédia, instintivamente. Um adulto adoece e morre: é uma fatalidade. Grave, sem dúvida, ainda mais em uma época em que septuagenários têm sido considerados "novos", ao menos para morrer. Se é uma criança, contudo, trata-se de uma tragédia, porque viola uma concepção que já trazemos conosco: crianças não deviam morrer. Deveria existir uma espécie de ordem natural, que impedisse esse tipo de acontecimento. Quando elas se vão, parece que nos foge um pouco do futuro, das falsas obviedades às quais nos agarramos no cotidiano. Daí que, em um poema, é uma alegoria terrível, que não passa despercebida.
Renato precisava muito nos sacudir e por isso voltava sempre a essa metáfora. Concluo lembrando, todavia, que a despeito das datas de lançamento dos discos da Legião Urbana, muitas dessas canções, inclusive algumas aqui referidas, haviam sido compostas anos antes. O trovador dizia que eram "letras antigas, adolescentes" (Dapieve, p. 100).
Eu queria que mais adolescentes se preocupassem tanto com o mundo como Renato Russo. E que, graças a isso, as crianças pudessem viver.
Com informações extraídas de DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. Sobre o livro, escrevi esta postagem em 2012.
"A" banda. |
Já no primeiro disco da Legião Urbana (autointitulado, 1984), na canção "O reggae", Renato desabafa: "Tentava ver o que existia de errado/ Quantas crianças Deus já tinha matado".
É preciso perceber que, nesta canção, ele critica os valores da sociedade que, dependendo do teórico consultado, pode ser chamada de pós-moderna, moderna recente, pós-fordista e uma leva de outras nomenclaturas, mas que em síntese é a sociedade capitalista que mede os seres humanos pela fortuna ou pelo acesso ao consumo, subvertendo os valores humanistas pelo individualismo exacerbado, pela busca incessante da satisfação pessoal e pelo abandono do senso crítico, dentre outras perdas. Segundo Eduardo Rezende, editor do blog O Livro dos Dias - Análises e interpretações, esta canção foi feita para criticar o governo Collor, como o próprio Renato teria deixado claro em shows (leia aqui).
O fato de escrever em primeira pessoa reforça o sentimento de perplexidade do poeta ao descrever a primeira e mais importante instância de socialização depois da família, a escola, como um espaço autoritário que não existe para ensinar sobre o mundo, mas sobre como você deve se comportar nele, para agradar aos outros. Um processo de subjetivação disciplinar nos moldes denunciados por Michel Foucault. Sem ter o que aprender com a escola e mesmo com as pessoas que tanto amava, o poeta busca a realidade, ainda que pelo jornal da TV, momento em que aprende "a roubar para vencer".
É quando luta para "descobrir a verdade, no meio das mentiras da cidade", que o poeta se depara com as crianças mortas por Deus. Na verdade, o objetivo aí não era causar nenhum mal estar religioso, mas dizer que muitos malefícios são causados em nome das melhores intenções (declaradas, porque de melhores não têm nada). Todos os mecanismos de controle social buscam legitimação em razões valorosas mas, quando se olha de perto, o que se constata é o objetivo de controlar corpos e almas com objetivos escusos.
No terceiro disco (Que país é este - 1978/1987, 1987), na famosa e cinematográfica "Faroeste caboclo", Renato narra a saga do perigoso bandido João de Santo Cristo, que certo dia é procurado por um senhor de alta classe com dinheiro na mão. Ignoramos a proposta indecorosa feita pelo rico delinquente, mas João a recusa com raiva e revela que tem princípios: "Não boto bomba em banca de jornal/ Nem em colégio de criança/ Isso eu não faço não".
Na sociedade pós-fordista, regida pela ideologia neoliberal, o homem é entendido como um ser racional, dotado de cálculo prospectivo e que toma as suas decisões baseado em uma criteriosa análise de custo-benefício. Por isso, todo mundo acredita que as pessoas tornam-se criminosas simplesmente porque querem, porque são imorais, amorais ou crueis. Esta regra seria ainda mais evidente em relação a criminosos contumazes e violentos, justamente o caso de João de Santo Cristo (que na canção é descrito com uma ferocidade muito superior à mostrada no filme de René Sampaio). Aí vem o inusitado: o bandido de alta classe procura o psicopata porque está convencido de que este lhe fará o trabalho sujo. Mas nada disso: Renato parece estar gritando que ninguém pode calar a liberdade (de expressão, no caso) nem roubar o futuro das crianças.
No quarto disco (As quatro estações, 1989), em "1965 (Duas tribos)", Renato ataca uma das maiores tragédias da história recente do país, a tortura. A certa altura, diz: "Mataram um menino/ Tinha arma de verdade/ Tinha arma nenhuma/ Tinha arma de brinquedo".
É novamente no blog de Eduardo Rezende (aqui) que encontramos uma interpretação autêntica, na transcrição de comentário feito por Renato durante show no Jockey Club do Rio de Janeiro em 1990: "Esta é a música mais política de todas no disco. Fala de tortura e é sobre aquela época em que fazíamos redação sobre o país maravilhoso que o Brasil seria no futuro e em que achávamos que os presidentes eram o maior barato." Para entender parte do título da canção, 1965 foi o ano do Ato Institucional n. 2, que acabou com as eleições diretas, cassou partidos políticos, suspendeu direitos políticos e suprimiu garantias da magistratura.
Como o tema da canção é muito específico, percebemos que "mataram um menino" simboliza a violência de Estado contra todas as vítimas do sistema, em sua maioria jovens. A arma de verdade deve aludir aos que efetivamente resistiram ao regime de exceção, inclusive pela luta armada. A arma nenhuma, assim como a de brinquedo, parecem-me alusões ao fato de que se torturava e matava com base em meras suspeições ou às vezes se atacava inocentes como forma de acessar parentes e amigos procurados. Por conseguinte, não adiantava não ter arma alguma: você seria moído pela máquina de todo jeito, se agarrado por ela.
Vale lembrar que a atuação contemporânea da polícia brasileira, a que mais mata no mundo todo, é simples variação dos procedimentos adotados pelos agentes da repressão durante a ditadura. Não se trabalha mais com a figura do "subversivo" nem existe mais uma ameaça comunista. Mas os inimigos, as classes perigosas continuam existindo e sempre existirão, sob outros pretextos. E o modo de as autoridades interagirem com elas subsiste e ganha novas justificações, inclusive o apoio popular.
Nesta canção, Renato faz uma de suas mais fortes e belas provocações, que me comove bastante. Depois de falar na luta do bem contra o mal, ele indaga: "E você, de que lado está?" Isto nos remete diretamente à última faixa do disco anterior, "Mais do mesmo", uma letra tão importante que quase deu nome ao disco e que fala sobre um "menino branco" que sobe o morro para tentar se divertir, ou seja, conseguir drogas. Aí vem a pergunta: "Quando tem chacina de adolescente/ Como é que você se sente?"
Aqui, a letra parece destacar a diferença entre as classes sociais e as funções que lhe são atribuídas, com evidente caráter racista. O menino que tem dinheiro para comprar é branco e sai do espaço que lhe é próprio para ir ao morro, símbolo da pobreza. E mesmo em uma ação ilícita, ele se impõe sobre a população local: "Mas já disse que não tem/ E você ainda quer mais/ Por que você não me deixa em paz?"
Seguem-se queixumes sobre uma vida sem oportunidades, ao mesmo tempo em que somos cobrados a ser e a ter muitas coisas, na lógica insana de nossa sociedade meritocrática ("E agora você quer que eu fique assim igual a você/ É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui?"). É nesse momento que o poema insere a pergunta sobre chacina. Canção da banda que menciona expressamente o titulo, pouco comum para a Legião, o "mais do mesmo" representa ciclos de violência sem fim.
No sexto disco (O descobrimento do Brasil, 1993), são duas as menções. Em "A fonte", a pergunta direta denuncia um drama frequente: "Quantas crianças foram mortas dessa vez?"
No artigo "A representação das minorias na obra da Legião Urbana" (Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades, n. 8, maio-outubro 2011) o historiador Gustavo dos Santos Prado insere a canção em um tópico intitulado "O Estado e sua relação com as minorias: a leitura e denúncia do descaso expressos nas obras da banda". Para ele, o objetivo é criticar a falência do Estado de Bem Estar Social, causa de um profundo desalento no indivíduo. Com isso, nosso próprio país vira um "campo inimigo" e "você finge que vê, mas não vê".
Extrai-se, portanto, uma crítica também aos cidadãos, que permitem uma situação dessas. Inevitável pensar nas jornadas de junho de 2013, quando se ouvia tanto que indignação de brasileiro é fogo de palha. Pensar no brasileiro médio que espuma de ódio contra os políticos corruptos enquanto compra a carteira de motorista e busca jeitinhos para tudo. Realmente, é desalentador. Nesta canção, enfim, a morte das crianças não é metáfora e está posta de modo bastante literal. Uma morte que não é apenas assassinar, mas sobretudo um deixar morrer, por inércia e indiferença.
E na minha canção favorita da banda, "Perfeição", uma sequência de ironias destinada a chocar o público diante da contradição que seria comemorar tantas tragédias, o objetivo geral do poeta era criticar a omissão e a indiferença do brasileiro frente a tantas mazelas, em um momento da história brasileira em que as esperanças da primeira eleição direta pós-redemocratização haviam escoado pelo ralo de Fernando Collor e seu inoperante sucessor, Itamar Franco. Em uma das alegorias, o trovador propõe "Celebrar a juventude sem escola/ As crianças mortas".
Ao longo de 68 versos, Renato promove verdadeira compilação de categorias de tragédias humanas, desde a guerra até à solidão. Como diz Arthur Dapieve (p. 140): "Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato, O descobrimento trazia também um impressionante retrato do país, filme queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a Fernando Collor de Mello, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O Brasil que sobrara para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na quarta faixa, 'Perfeição', incrivelmente amarga mas, no final das contas, otimista. Ninguém era poupado."
Na letra, quase como se fizesse uma tempestade cerebral e se lembrasse aos poucos de tudo que o atormentava, Renato menciona a morte diretamente ao menos três vezes, em diferentes circunstâncias: nas estradas, por falta de hospitais e a de crianças, logo nos primeiros versos. Há críticas ao "Estado que não é nação", à polícia, à mídia e a diferentes formas de violência, intercalando as chicanas perpetradas por autoridades com aquelas que nós mesmos produzimos, em nossas vidas pessoais: desunião, tristeza, vaidade, ganância, difamação, preconceitos, hipocrisia, indiferença, inveja, intolerância, incompreensão, falta de bom senso.
Em que pese podermos atribuir um sentido literal à morte das crianças, o fato de a menção imediatamente anterior ser à "juventude sem escola" sugere que o autor não se refere somente à morte física, mas também à incapacitação do indivíduo pela ausência de educação formal, que inviabiliza a autorrealização individual, ainda no começo da vida.
Não podemos esquecer que, também no sexto disco, em "Love in the afternoon", Renato filosofa sobre a estranheza de os bons morrerem jovens ou morrerem antes. Como informa seu biógrafo, a canção fora inspirada pela morte de amigos do poeta, inclusive Tavinho Fialho, baixista que os acompanha na turnê do disco V (p. 141).
Imagino que poucas tragédias provocam reações tão acres quanto a morte de crianças. Veja-se que já assumo como tragédia, instintivamente. Um adulto adoece e morre: é uma fatalidade. Grave, sem dúvida, ainda mais em uma época em que septuagenários têm sido considerados "novos", ao menos para morrer. Se é uma criança, contudo, trata-se de uma tragédia, porque viola uma concepção que já trazemos conosco: crianças não deviam morrer. Deveria existir uma espécie de ordem natural, que impedisse esse tipo de acontecimento. Quando elas se vão, parece que nos foge um pouco do futuro, das falsas obviedades às quais nos agarramos no cotidiano. Daí que, em um poema, é uma alegoria terrível, que não passa despercebida.
Renato precisava muito nos sacudir e por isso voltava sempre a essa metáfora. Concluo lembrando, todavia, que a despeito das datas de lançamento dos discos da Legião Urbana, muitas dessas canções, inclusive algumas aqui referidas, haviam sido compostas anos antes. O trovador dizia que eram "letras antigas, adolescentes" (Dapieve, p. 100).
Eu queria que mais adolescentes se preocupassem tanto com o mundo como Renato Russo. E que, graças a isso, as crianças pudessem viver.
Com informações extraídas de DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. Sobre o livro, escrevi esta postagem em 2012.
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
Aquamans
A crescente incompetência dos jornalistas brasileiros, exteriorizada pela péssima qualidade de seus textos, com erros crassos de português, rende alguns resultados curiosos.
Em matéria sobre o povo Bajau, um dos últimos nômades e único a viver exclusivamente no mar, publicada no site EcoViagem, o redator, já na legenda da primeira imagem (reproduzida aí ao lado), sai com esta: "Encontrados entre a Indonésia e as Filipinas, os Bajaus têm origem no século IX e desde então, alternam entre morar em pequenas canoas que foram transformadas em casas ou bangalôs à beira-mar, mas sempre sob a água". Detalhe: faltou uma vírgula antes da expressão "desde então", que deveria ser intercalada.
"Ah, mas foi só um descuido!", poderiam dizer aqueles que sempre tentam apaziguar o inaceitável. Contudo, o texto começa, até bastante vigoroso, para concluir o primeiro parágrafo assim: "Os Bajaus, de origem malaia, são a última população nômade que vivem sob as águas." Aqui a coisa piora: os Bajaus são (correto) a última população nômade que vivem (errado: agora a concordância é com "população nômade" e, portanto, o verbo "viver" deveria estar no singular. Não me venha falar que o verbo está concordando com o sujeito, pois o pronome relativo inicia um novo segmento da ideia).
E ainda tem mais: "os Bajaus têm origem no século IX e desde então, alternam entre morar em pequenas canoas que foram transformadas em casas ou bangalôs à beira-mar, mas sempre sob a água." De novo, faltou vírgula antes de "desde então" e o jornalista persiste em sua convicção de que aquelas pessoas têm guelras e respiram embaixo d'água.
Acabou? Não, ele insiste: "muitos Bajaus vêm optando por viverem em baías ou construírem seus casebres sob um espelho d'água, nos litorais". Aqui, vê-se que o autor mudou a redação, mas persistiu no erro. Então não foi apenas um deslize, não é?
Felizmente, os culpados já devem estar informados do enorme tropeço, porque os comentaristas da matéria não perdoaram. E não deviam, mesmo. Imagine uma criança se interessando por um assunto instigante como esse e lendo a matéria: vai aprender errado. E vai, de boa fé, supor que o texto está correto. E de erro em erro, vamos terminando de assassinar a Língua Portuguesa, com o amplo beneplácito daqueles que insistem que o importante é comunicar.
A matéria pode ser lida aqui: http://ecoviagem.uol.com.br/noticias/turismo/turismo-internacional/ultimo-povo-nomade-que-vive-no-mar-esta-a-beira-da-extincao-veja-fotos-18231.asp
PS - Sei que o plural de "man" é "men", mas o título alude não a um Aquaman e sim a vários deles. Por isso não escrevi "Aquamen". Se meu entendimento estiver errado, tudo bem: encare como uma ironia.
Em matéria sobre o povo Bajau, um dos últimos nômades e único a viver exclusivamente no mar, publicada no site EcoViagem, o redator, já na legenda da primeira imagem (reproduzida aí ao lado), sai com esta: "Encontrados entre a Indonésia e as Filipinas, os Bajaus têm origem no século IX e desde então, alternam entre morar em pequenas canoas que foram transformadas em casas ou bangalôs à beira-mar, mas sempre sob a água". Detalhe: faltou uma vírgula antes da expressão "desde então", que deveria ser intercalada.
"Ah, mas foi só um descuido!", poderiam dizer aqueles que sempre tentam apaziguar o inaceitável. Contudo, o texto começa, até bastante vigoroso, para concluir o primeiro parágrafo assim: "Os Bajaus, de origem malaia, são a última população nômade que vivem sob as águas." Aqui a coisa piora: os Bajaus são (correto) a última população nômade que vivem (errado: agora a concordância é com "população nômade" e, portanto, o verbo "viver" deveria estar no singular. Não me venha falar que o verbo está concordando com o sujeito, pois o pronome relativo inicia um novo segmento da ideia).
E ainda tem mais: "os Bajaus têm origem no século IX e desde então, alternam entre morar em pequenas canoas que foram transformadas em casas ou bangalôs à beira-mar, mas sempre sob a água." De novo, faltou vírgula antes de "desde então" e o jornalista persiste em sua convicção de que aquelas pessoas têm guelras e respiram embaixo d'água.
Acabou? Não, ele insiste: "muitos Bajaus vêm optando por viverem em baías ou construírem seus casebres sob um espelho d'água, nos litorais". Aqui, vê-se que o autor mudou a redação, mas persistiu no erro. Então não foi apenas um deslize, não é?
Felizmente, os culpados já devem estar informados do enorme tropeço, porque os comentaristas da matéria não perdoaram. E não deviam, mesmo. Imagine uma criança se interessando por um assunto instigante como esse e lendo a matéria: vai aprender errado. E vai, de boa fé, supor que o texto está correto. E de erro em erro, vamos terminando de assassinar a Língua Portuguesa, com o amplo beneplácito daqueles que insistem que o importante é comunicar.
A matéria pode ser lida aqui: http://ecoviagem.uol.com.br/noticias/turismo/turismo-internacional/ultimo-povo-nomade-que-vive-no-mar-esta-a-beira-da-extincao-veja-fotos-18231.asp
PS - Sei que o plural de "man" é "men", mas o título alude não a um Aquaman e sim a vários deles. Por isso não escrevi "Aquamen". Se meu entendimento estiver errado, tudo bem: encare como uma ironia.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
A hora da pena de morte
A pena de morte, que tecnicamente não constitui uma pena no sentido clássico do tripé retribuição-prevenção-ressocialização, deve ser executada daqui a dois dias em um brasileiro (há outro na fila) que se encontra preso na Indonésia há mais de uma década. Ambos foram condenados por tráfico de drogas, delito que, naquela república insular, é reprimido por uma das legislações mais inclementes do mundo. O governo brasileiro bem que tentou obter a indulgentia principis, mas foi em vão (veja).
Antes que a turba que espuma pela boca de ódio do PT bote mais um fracasso na conta de Dilma Rousseff, é preciso serenidade para perceber que, embora a execução dos brasileiros possa chocar a nossa suscetibilidade, não está acontecendo nada além do cumprimento da legislação criminal indonésia. São as regras do jogo, cumpridas dentro do próprio território. Regras que podemos repudiar, mas que exprimem a soberania de um país. Segundo consta, os brasileiros receberam um julgamento justo, no plano da legalidade.
A possibilidade de o chefe do Estado cassar uma decisão judicial legítima é uma antiquíssima medida de equidade, reconhecida e praticada, ao menos em tese, na maior parte do mundo. Mas é uma mera faculdade e, como é óbvio, gera custos políticos para o titular dessa prerrogativa. E, numa república, esses custos políticos se traduzem em votos que ninguém quer perder. Vale ressaltar que o atual presidente, Joko Widodo, tomou posse no ano passado prometendo absoluta intolerância contra os narcotraficantes (veja). Por conseguinte, se ele atendesse ao pedido do Brasil, sofreria o repúdio de seus compatriotas que, é bom que se diga, aprova com entusiasmo a dureza da lei antidrogas local. Provavelmente por isso Widodo demorou até a atender a ligação de nossa presidente. Logicamente, ele sabia do que se tratava.
Além do mais, há o fator cultural: se governo e povo indonésios falam a mesma língua no que tange ao rigor da punição ao narcotráfico, nada mais natural que o presidente daquele país não encontre margem justamente em um caso desses para exercitar a clemência. Essa prerrogativa costuma ser mais aplicada a situações excepcionais e o caso do brasileiro, ao que parece, deve ser rotineiro em um contexto de rigorosa repressão. Outrossim, a clemência soberana se destina a depurar a dureza da lei penal mas, para isso, é preciso que a percepção social sobre o caso aponte para essa dureza, o que não é o contexto.
Por conseguinte, é tolice acusar o governo brasileiro de fracasso. Mas o assessor especial para assuntos internacionais do Brasil, Marco Aurélio Garcia, também exagera ao dizer que houve "insensibilidade" por parte do governo indonésio. Como dito acima, prevaleceram os valores locais.
Compreensível que o governo brasileiro se tenha movimentado, para atender ao pedido da família de Marco Archer. Faz parte de suas atribuições diplomáticas e atende ao sentido ético (ao menos o declarado) da concepção criminal formal de nosso país, que repudia a pena de morte. Mas me pergunto o que meus concidadãos estão pensando a respeito. Afinal, somos um povo ultramoralista — para julgar os outros, bem entendido. Não me dei ao trabalho de procurar manifestações pela grande rede, a fim de saber se estão aplicando o menosprezo do "bem feito"/"quem-mandou-traficar-cocaína-para-lá" ou se resta solidariedade a Archer.
Recordo, entretanto, que a maioria do povo brasileiro é favorável à pena de morte. Talvez não para o narcotraficante, que a bem da verdade atende aos interesses clandestinos de gente em todos os níveis e classes sociais. Mas para os criminosos violentos e patrimoniais, com certeza absoluta. A meu ver, existe um enorme descompasso entre a busca por clemência para Archer e a facilidade com que o brasileiro médio aprova, aplaude e clama não apenas por pena de morte, mas também por execuções sumárias, linchamentos, tortura, etc. A facilidade com que se legitima cotidianamente a barbárie.
Tudo indica que, por volta das 15 horas do próximo sábado, horário de Brasília, Marco Archer deixará a vida por fuzilamento, um método de execução que o Ocidente, quase que totalmente, substituiu por procedimentos supostamente humanizados, como injeções letais (o que não escamoteia as críticas contra esses métodos alegadamente mais suaves e a própria e invencível contradição entre assassinar com o beneplácito do Estado e agir de forma humanizada). O fato de ser um brasileiro e de aqui não vermos a execução higienizada pelo sistema de justiça criminal pode nos causar alguma estranheza. Mas deveria provocar, isto sim, uma reflexão mais profunda: a questão não é se devemos matar um estrangeiro ou matar pelo crime A ou B. A questão é velha: o Estado de direito pode mesmo conviver com a pena de morte?
E nós, queremos conviver com ela?
Antes que a turba que espuma pela boca de ódio do PT bote mais um fracasso na conta de Dilma Rousseff, é preciso serenidade para perceber que, embora a execução dos brasileiros possa chocar a nossa suscetibilidade, não está acontecendo nada além do cumprimento da legislação criminal indonésia. São as regras do jogo, cumpridas dentro do próprio território. Regras que podemos repudiar, mas que exprimem a soberania de um país. Segundo consta, os brasileiros receberam um julgamento justo, no plano da legalidade.
A possibilidade de o chefe do Estado cassar uma decisão judicial legítima é uma antiquíssima medida de equidade, reconhecida e praticada, ao menos em tese, na maior parte do mundo. Mas é uma mera faculdade e, como é óbvio, gera custos políticos para o titular dessa prerrogativa. E, numa república, esses custos políticos se traduzem em votos que ninguém quer perder. Vale ressaltar que o atual presidente, Joko Widodo, tomou posse no ano passado prometendo absoluta intolerância contra os narcotraficantes (veja). Por conseguinte, se ele atendesse ao pedido do Brasil, sofreria o repúdio de seus compatriotas que, é bom que se diga, aprova com entusiasmo a dureza da lei antidrogas local. Provavelmente por isso Widodo demorou até a atender a ligação de nossa presidente. Logicamente, ele sabia do que se tratava.
Além do mais, há o fator cultural: se governo e povo indonésios falam a mesma língua no que tange ao rigor da punição ao narcotráfico, nada mais natural que o presidente daquele país não encontre margem justamente em um caso desses para exercitar a clemência. Essa prerrogativa costuma ser mais aplicada a situações excepcionais e o caso do brasileiro, ao que parece, deve ser rotineiro em um contexto de rigorosa repressão. Outrossim, a clemência soberana se destina a depurar a dureza da lei penal mas, para isso, é preciso que a percepção social sobre o caso aponte para essa dureza, o que não é o contexto.
Por conseguinte, é tolice acusar o governo brasileiro de fracasso. Mas o assessor especial para assuntos internacionais do Brasil, Marco Aurélio Garcia, também exagera ao dizer que houve "insensibilidade" por parte do governo indonésio. Como dito acima, prevaleceram os valores locais.
Compreensível que o governo brasileiro se tenha movimentado, para atender ao pedido da família de Marco Archer. Faz parte de suas atribuições diplomáticas e atende ao sentido ético (ao menos o declarado) da concepção criminal formal de nosso país, que repudia a pena de morte. Mas me pergunto o que meus concidadãos estão pensando a respeito. Afinal, somos um povo ultramoralista — para julgar os outros, bem entendido. Não me dei ao trabalho de procurar manifestações pela grande rede, a fim de saber se estão aplicando o menosprezo do "bem feito"/"quem-mandou-traficar-cocaína-para-lá" ou se resta solidariedade a Archer.
Recordo, entretanto, que a maioria do povo brasileiro é favorável à pena de morte. Talvez não para o narcotraficante, que a bem da verdade atende aos interesses clandestinos de gente em todos os níveis e classes sociais. Mas para os criminosos violentos e patrimoniais, com certeza absoluta. A meu ver, existe um enorme descompasso entre a busca por clemência para Archer e a facilidade com que o brasileiro médio aprova, aplaude e clama não apenas por pena de morte, mas também por execuções sumárias, linchamentos, tortura, etc. A facilidade com que se legitima cotidianamente a barbárie.
Tudo indica que, por volta das 15 horas do próximo sábado, horário de Brasília, Marco Archer deixará a vida por fuzilamento, um método de execução que o Ocidente, quase que totalmente, substituiu por procedimentos supostamente humanizados, como injeções letais (o que não escamoteia as críticas contra esses métodos alegadamente mais suaves e a própria e invencível contradição entre assassinar com o beneplácito do Estado e agir de forma humanizada). O fato de ser um brasileiro e de aqui não vermos a execução higienizada pelo sistema de justiça criminal pode nos causar alguma estranheza. Mas deveria provocar, isto sim, uma reflexão mais profunda: a questão não é se devemos matar um estrangeiro ou matar pelo crime A ou B. A questão é velha: o Estado de direito pode mesmo conviver com a pena de morte?
E nós, queremos conviver com ela?
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
Elegia pela Nigéria
O que vou dizer pode ser algo óbvio e repetitivo, mas também é verdade e também é uma percepção restrita: há uma gigantesca diferença na importância mundialmente dada ao ataque terrorista contra o jornal francês Charlie Hebdo e o massacre perpetrado pelo grupo terrorista Boko Haram, no norte da Nigéria.
Vidas são vidas e toda crueldade deve ser repudiada, mas é impossível escapar dos números para pensar na gravidade de certas situações. No atentado à sede do jornalístico, no último dia 7, houve 12 mortes e o ingrediente especial a entornar o caldo dos debates é a liberdade de expressão. Na Nigéria, ao longo de apenas cinco dias deste mesmo mês de janeiro, mais de 2 mil pessoas foram mortas, na cidade de Baga, além de ataques em cidades vizinhas. Note-se que estamos falando de um recorte temporal, pois o Boko Haram existe desde 2002, segundo consta, e é alarmante o número de vítimas feitas nesse período.
Naturalmente injustificável, o motivo do ataque ao Charlie Hebdo foi uma retaliação às constantes publicações satirizando o islamismo. Um grupo específico de pessoas, certamente ligado a uma organização fundamentalista, levou a cabo a missão isolada em nome da verdade. Mas o Boko Haram, igualmente em nome de sua verdade, age sistematicamente com o objetivo de instalar uma ditadura teocrática que pretende combater toda e qualquer educação e cultura não islâmica, pois o ocidente, e particularmente o catolicismo, são considerados como causas de todos os males do mundo. O entorno do caldo dos debates é o tratamento conferido às mulheres, que devem ser servas castas, ou seja, são totalmente dessubjetivadas. Além disso, os métodos do grupo são tão terríveis que custa crer que alguém chegue a esse ponto.
Não quero falar de religião e muito menos das conotações de direita-esquerda que têm permeado o noticiário e as redes sociais. Quero apenas destacar que nossas sociedades ocidentais não conseguem disfarçar o seu interesse focalizado em quem reconhece como parte da tribo. Franceses de boa condição financeira geram comoção mundial; africanos pobres não. O ataque à liberdade de expressão é tratado como a maior violência possível, mas o que dizer de sequestrar meninas e submetê-las a estupros coletivos até que "aceitem" a fé islâmica, o que implica em abdicar de todo e qualquer direito? O que dizer de mutilações sexuais e homicídios indiscriminados?
Para confirmar o que digo, basta acessar os noticiários da internet: compare a quantidade de notícias sobre os temas. Compare o destaque dado a elas. Pense no que significa todo santo dia haver a renovação de notícias sobre os franceses e já não haver novidades sobre os nigerianos. Para me inteirar melhor do ocorrido, hoje, busquei a página da Organização das Nações Unidas (aqui) e Anistia Internacional (aqui). Sintomático, não?
Angustiam-me sobremaneira a solidariedade seletiva, a indignação seletiva, as cobranças seletivas. Líderes mundiais fizeram juntos uma caminhada, ao lado do povo francês, clamando por liberdade, mas ninguém caminhou em favor dos nigerianos. Mesmo a ONU promete fazer o quê? Nada. Apenas insta as autoridades nigerianas a restaurar a ordem e a proteger as pessoas. Dê seu jeito. Nós mesmos nada faremos. Deve ser por causa da soberania nacional, não é?
Olhando de perto, as grandes tragédias conseguem ficar ainda maiores.
Vidas são vidas e toda crueldade deve ser repudiada, mas é impossível escapar dos números para pensar na gravidade de certas situações. No atentado à sede do jornalístico, no último dia 7, houve 12 mortes e o ingrediente especial a entornar o caldo dos debates é a liberdade de expressão. Na Nigéria, ao longo de apenas cinco dias deste mesmo mês de janeiro, mais de 2 mil pessoas foram mortas, na cidade de Baga, além de ataques em cidades vizinhas. Note-se que estamos falando de um recorte temporal, pois o Boko Haram existe desde 2002, segundo consta, e é alarmante o número de vítimas feitas nesse período.
Naturalmente injustificável, o motivo do ataque ao Charlie Hebdo foi uma retaliação às constantes publicações satirizando o islamismo. Um grupo específico de pessoas, certamente ligado a uma organização fundamentalista, levou a cabo a missão isolada em nome da verdade. Mas o Boko Haram, igualmente em nome de sua verdade, age sistematicamente com o objetivo de instalar uma ditadura teocrática que pretende combater toda e qualquer educação e cultura não islâmica, pois o ocidente, e particularmente o catolicismo, são considerados como causas de todos os males do mundo. O entorno do caldo dos debates é o tratamento conferido às mulheres, que devem ser servas castas, ou seja, são totalmente dessubjetivadas. Além disso, os métodos do grupo são tão terríveis que custa crer que alguém chegue a esse ponto.
Não quero falar de religião e muito menos das conotações de direita-esquerda que têm permeado o noticiário e as redes sociais. Quero apenas destacar que nossas sociedades ocidentais não conseguem disfarçar o seu interesse focalizado em quem reconhece como parte da tribo. Franceses de boa condição financeira geram comoção mundial; africanos pobres não. O ataque à liberdade de expressão é tratado como a maior violência possível, mas o que dizer de sequestrar meninas e submetê-las a estupros coletivos até que "aceitem" a fé islâmica, o que implica em abdicar de todo e qualquer direito? O que dizer de mutilações sexuais e homicídios indiscriminados?
Para confirmar o que digo, basta acessar os noticiários da internet: compare a quantidade de notícias sobre os temas. Compare o destaque dado a elas. Pense no que significa todo santo dia haver a renovação de notícias sobre os franceses e já não haver novidades sobre os nigerianos. Para me inteirar melhor do ocorrido, hoje, busquei a página da Organização das Nações Unidas (aqui) e Anistia Internacional (aqui). Sintomático, não?
Angustiam-me sobremaneira a solidariedade seletiva, a indignação seletiva, as cobranças seletivas. Líderes mundiais fizeram juntos uma caminhada, ao lado do povo francês, clamando por liberdade, mas ninguém caminhou em favor dos nigerianos. Mesmo a ONU promete fazer o quê? Nada. Apenas insta as autoridades nigerianas a restaurar a ordem e a proteger as pessoas. Dê seu jeito. Nós mesmos nada faremos. Deve ser por causa da soberania nacional, não é?
Olhando de perto, as grandes tragédias conseguem ficar ainda maiores.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Bodas de estanho
Exatos dez anos atrás, a uma hora dessas, eu estava aproveitando a praia de Alter-do-Chão, junto a minha mãe e meu irmão. Mas não era exatamente um dia de lazer: era a única oportunidade de ir àquele belíssimo cenário, que os dois não conheciam. E, para mim, era um relaxamento, enquanto aguardava o evento da noite, nada mais nada menos do que o meu casamento com uma filha daquela pundonorosa terra.
Naquela noite, desposei Polyana na até então mais longa cerimônia religiosa de casamento que já vira. Mas estava ocupado demais para me dar conta disso. Dois dias depois, dissemos "sim" novamente, agora em uma cerimônia civil conduzida pela juíza de direito e minha amiga pessoal Ana Patrícia Fernandes, aqui em Belém.
E lá se foram dez anos! Não vemos o tempo passando e, quando paramos para prestar atenção, até nos assustamos. Em dez anos muita coisa acontece e muita coisa aconteceu, ora boas, ora ruins, mas todas elas mostram o que é construir uma família de verdade. E a mais importante delas, obviamente, é nossa filha Júlia, nossa mais sublime realização.
Agradecimentos e mimos pessoais serão feitos pessoalmente, como devem ser. Aqui, na publicidade do blog, fica o registro sob a forma de uma doce canção de minha cantora favorita, Adriana Calcanhotto, que fala sobre o amor real, não aquele idealizado de filmes e livros. Como as coisas mais importantes, é algo que acontece.
E lá se foram dez anos! Não vemos o tempo passando e, quando paramos para prestar atenção, até nos assustamos. Em dez anos muita coisa acontece e muita coisa aconteceu, ora boas, ora ruins, mas todas elas mostram o que é construir uma família de verdade. E a mais importante delas, obviamente, é nossa filha Júlia, nossa mais sublime realização.
Agradecimentos e mimos pessoais serão feitos pessoalmente, como devem ser. Aqui, na publicidade do blog, fica o registro sob a forma de uma doce canção de minha cantora favorita, Adriana Calcanhotto, que fala sobre o amor real, não aquele idealizado de filmes e livros. Como as coisas mais importantes, é algo que acontece.
Aconteceu quando a gente não esperava
Aconteceu sem um sino pra tocar
Aconteceu diferente das histórias
Que os romances e a memória
Têm costume de contar
Aconteceu sem que o chão tivesse estrelas
Aconteceu sem um raio de luar
O nosso amor foi chegando de mansinho
Se espalhou devagarinho
Foi ficando até ficar
Aconteceu sem que o mundo agradecesse
Sem que rosas florescessem
Sem um canto de louvor
Aconteceu sem que houvesse nenhum drama
Só o tempo fez a cama
Como em todo grande amor
PS - Cabe, entretanto, um importante reparo: nesta história, houve, sim, um raio de luar. E ele fez toda a diferença.
Um Globo de Ouro para as mulheres
[Não me responsabilizo por spoilers.]
Dois dos personagens mais queridos do maravilhoso seriado Downton Abbey (exibido no Brasil pela GNT, ora na 5ª temporada) são John Bates (Brendan Coyle) e sua esposa Anna (Joanne Froggatt). Eles conquistaram o público logo de início, vivendo uma delicada paixão que evoluiu para um casamento, marcado entretanto por graves sofrimentos. Tudo isso serviu para mostrar a força da relação entre eles, que aparentemente não poderia ser abalada. Exceto por um estupro.
No terceiro episódio da 4ª temporada, durante uma festa no fabuloso castelo da família Crawley, Anna é estuprada pelo lacaio de um dos hóspedes. A cena, embora sem excessos de violência visual, choca a começar pelo fato de que não se esperava algo do gênero. E em uma sociedade marcada por imensos pudores, em que fatos constrangedores não são comentados nem sequer no círculo mais íntimo, doi ver a desesperada Anna, varrida por uma culpa devastadora, pedir socorro à governanta, Sra. Hughes (Phyllis Logan), com o adendo de que seu marido não poderia saber do ocorrido. Bates é um bom homem, mas tem um passado sombrio e escapou de uma condenação por homicídio, contra a primeira esposa. Se soubesse do caso, certamente mataria o estuprador e acabaria condenado à forca.
Para poupar o amado, Anna mergulha em silêncio, mas se sente suja e por isso se afasta do marido, que sofre por não saber o que fez para ser tratado daquela forma. Enfim, o objetivo aqui não é comentar o episódio ou a série. Digo apenas que, após graves acontecimentos, a reconciliação do casal Bates é daqueles momentos em que a TV pode ser inspiradora e provocar sorrisos suspirosos.
Sucesso de crítica e detentora de um público fiel, Downton Abbey já recebeu alguns prêmios, inclusive o Screen Actors Guild de melhor elenco em série dramática, o que é facílimo de entender. No entanto, comenta-se que as premiações são menos frequentes do que o seriado merece, pela qualidade de sua trama, pelas interpretações e pela primorosa reconstituição de época. Há dois dias, as láureas aumentaram quando a adorável Joanne Froggatt recebeu o Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante em série/minissérie/telefilme.
Em seu discurso de agradecimento, a atriz comentou ter recebido algumas cartas de mulheres agradecendo a ela pela dignidade com que interpretou a personagem, dando credibilidade ao tumulto sentimental vivido por quem sofreu violência sexual. Classificando essas mulheres como sobreviventes, a atriz desejou que, de algum modo, aquela publicidade pudesse dar a elas a sensação de, finalmente, terem sido ouvidas.
Considerado um dos momentos mais impactantes da cerimônia, o discurso de Froggatt rapidamente ganhou muitos elogios nas redes sociais e foi assunto em diversas reportagens. Recomendo esta aqui, do Daily Mail (em inglês), por ser muito detalhada e conter inclusive o vídeo do belo discurso, mostrando as reações do público presente.
No mais, se você não vê Downton Abbey, não sabe o que está perdendo. Conhecendo a trama e os personagens, fica mais fácil entender porque Joanne Froggatt é uma excelente porta-voz para a luta contra a violência sexual contra a mulher.
A noite teve mais para as mulheres, contudo.
Ao ser premiada como melhor atriz em minissérie ou telefilme, por The honorable woman, a também adorável Maggie Gyllenhaal desmistificou a ideia de personagens classificáveis como "mulheres poderosas". Para ela, as mulheres atuais, podem ou não ser fortes, sensuais ou tantas outras coisas. O importante é que se está abrindo espaço a uma visão menos idealizada da mulher na sociedade (ver matéria aqui).
Ela tem razão. Muitas mulheres sofrem pela imposição de serem heroicas, dotadas de superpoderes e capazes dos maiores sacrifícios e abnegação, quando na verdade são apenas seres humanos, com seus medos, desejos e mesmo mesquinharias. A pressão social é tão forte para adequação a esse ideal inalcançável que as próprias mulheres o assumem e muitas vezes adoecem, de culpa ou até fisicamente, por não conseguirem (ou acharem que não conseguem) fazer o bastante.
E para terminar, a dupla de apresentadoras, Tina Fey e Amy Poehler, foi extremamente feliz ao inverter a lógica previsível e não falar na mulher de George Clooney: elas sintetizaram o impressionante currículo de Amal Clooney como advogada internacional de direitos humanos e disseram que ela fora ao evento acompanhada "de seu marido, George". Conhecido pelo tipo bonitão e cafajeste, solteirão convicto até um dia desses, Clooney vale muito mais por suas preocupações humanitárias, que se revelam não apenas em seus trabalhos no cinema, mas também em ativismo pessoal (chegou a ser preso e algemado em seu próprio país, em 2012, durante protesto contra o genocídio no Sudão).
Clooney escolheu uma mulher não exatamente à altura: ela está acima dele. Conheça um pouco dessa advogada libanesa lendo este perfil.
Dois dos personagens mais queridos do maravilhoso seriado Downton Abbey (exibido no Brasil pela GNT, ora na 5ª temporada) são John Bates (Brendan Coyle) e sua esposa Anna (Joanne Froggatt). Eles conquistaram o público logo de início, vivendo uma delicada paixão que evoluiu para um casamento, marcado entretanto por graves sofrimentos. Tudo isso serviu para mostrar a força da relação entre eles, que aparentemente não poderia ser abalada. Exceto por um estupro.
No terceiro episódio da 4ª temporada, durante uma festa no fabuloso castelo da família Crawley, Anna é estuprada pelo lacaio de um dos hóspedes. A cena, embora sem excessos de violência visual, choca a começar pelo fato de que não se esperava algo do gênero. E em uma sociedade marcada por imensos pudores, em que fatos constrangedores não são comentados nem sequer no círculo mais íntimo, doi ver a desesperada Anna, varrida por uma culpa devastadora, pedir socorro à governanta, Sra. Hughes (Phyllis Logan), com o adendo de que seu marido não poderia saber do ocorrido. Bates é um bom homem, mas tem um passado sombrio e escapou de uma condenação por homicídio, contra a primeira esposa. Se soubesse do caso, certamente mataria o estuprador e acabaria condenado à forca.
Para poupar o amado, Anna mergulha em silêncio, mas se sente suja e por isso se afasta do marido, que sofre por não saber o que fez para ser tratado daquela forma. Enfim, o objetivo aqui não é comentar o episódio ou a série. Digo apenas que, após graves acontecimentos, a reconciliação do casal Bates é daqueles momentos em que a TV pode ser inspiradora e provocar sorrisos suspirosos.
Sucesso de crítica e detentora de um público fiel, Downton Abbey já recebeu alguns prêmios, inclusive o Screen Actors Guild de melhor elenco em série dramática, o que é facílimo de entender. No entanto, comenta-se que as premiações são menos frequentes do que o seriado merece, pela qualidade de sua trama, pelas interpretações e pela primorosa reconstituição de época. Há dois dias, as láureas aumentaram quando a adorável Joanne Froggatt recebeu o Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante em série/minissérie/telefilme.
Em seu discurso de agradecimento, a atriz comentou ter recebido algumas cartas de mulheres agradecendo a ela pela dignidade com que interpretou a personagem, dando credibilidade ao tumulto sentimental vivido por quem sofreu violência sexual. Classificando essas mulheres como sobreviventes, a atriz desejou que, de algum modo, aquela publicidade pudesse dar a elas a sensação de, finalmente, terem sido ouvidas.
Considerado um dos momentos mais impactantes da cerimônia, o discurso de Froggatt rapidamente ganhou muitos elogios nas redes sociais e foi assunto em diversas reportagens. Recomendo esta aqui, do Daily Mail (em inglês), por ser muito detalhada e conter inclusive o vídeo do belo discurso, mostrando as reações do público presente.
No mais, se você não vê Downton Abbey, não sabe o que está perdendo. Conhecendo a trama e os personagens, fica mais fácil entender porque Joanne Froggatt é uma excelente porta-voz para a luta contra a violência sexual contra a mulher.
A noite teve mais para as mulheres, contudo.
Ao ser premiada como melhor atriz em minissérie ou telefilme, por The honorable woman, a também adorável Maggie Gyllenhaal desmistificou a ideia de personagens classificáveis como "mulheres poderosas". Para ela, as mulheres atuais, podem ou não ser fortes, sensuais ou tantas outras coisas. O importante é que se está abrindo espaço a uma visão menos idealizada da mulher na sociedade (ver matéria aqui).
Ela tem razão. Muitas mulheres sofrem pela imposição de serem heroicas, dotadas de superpoderes e capazes dos maiores sacrifícios e abnegação, quando na verdade são apenas seres humanos, com seus medos, desejos e mesmo mesquinharias. A pressão social é tão forte para adequação a esse ideal inalcançável que as próprias mulheres o assumem e muitas vezes adoecem, de culpa ou até fisicamente, por não conseguirem (ou acharem que não conseguem) fazer o bastante.
E para terminar, a dupla de apresentadoras, Tina Fey e Amy Poehler, foi extremamente feliz ao inverter a lógica previsível e não falar na mulher de George Clooney: elas sintetizaram o impressionante currículo de Amal Clooney como advogada internacional de direitos humanos e disseram que ela fora ao evento acompanhada "de seu marido, George". Conhecido pelo tipo bonitão e cafajeste, solteirão convicto até um dia desses, Clooney vale muito mais por suas preocupações humanitárias, que se revelam não apenas em seus trabalhos no cinema, mas também em ativismo pessoal (chegou a ser preso e algemado em seu próprio país, em 2012, durante protesto contra o genocídio no Sudão).
Clooney escolheu uma mulher não exatamente à altura: ela está acima dele. Conheça um pouco dessa advogada libanesa lendo este perfil.
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
399 anos
Belém vive entre o esforço de autoafirmação, as lembranças de um belo passado e as agressões cotidianas ao seu próprio espaço e ao seu povo, que também é o responsável por essas agressões. Culpar os políticos e os gestores é fácil, mas não são eles que perpetram as mazelas de incivilidade que nos afrontam todo santo dia. O trânsito, a condição das feiras, a prestação de serviços públicos, etc., tudo poderia ser melhor se houvesse uma preocupação real, moral, em proporcionar isso. Não precisaríamos de políticos e não custaria um centavo sequer, de modo que poderia ser implementado imediatamente, sem licitação.
Aos políticos, deixamos outras reclamações, tais como a incapacidade crônica de realizar obras ou de concluí-las, quando acontecem. Veja-se, por exemplo, que o tal prolongamento da Av. Independência (que agora nem mais se chama assim) deveria ter sido entregue em setembro, ainda antes das eleições, embora o governo se tenha esquecido da prometida alça ligando a nova via à BR-316. Houve até teste em julho, com as pessoas sentindo o gostinho do trânsito desafogado para, depois, tirarem o pirulito da criança. Até hoje, nem notícia da inauguração.
Outro exemplo são as obras de duplicação da Av. Perimetral, atrasadas, e que de novo só geraram os protestos e bloqueios da semana passada, porque os moradores não aguentam mais transtorno sem resultado. E se é para falarmos de atraso, que tal a mais importante obra tucana: o prolongamento da Av. João Paulo II? Imensamente atrasada, tecnicamente questionada e sem data para conclusão.
Temos também o portentoso Aquário da Amazônia, anunciado, prometido e esquecido. Ficaria no Parque do Utinga, cujas obras de qualificação do espaço para recebimento do público igualmente não aconteceram. Nada além da construção de uma guarita. Enquanto isso, ninguém sequer vê o prefeito. Com ele, sem ele, tanto faz.
Comemorar o aniversário de Belém, assim, gera esse sentimento paradoxal, uma alegria triste, pelo tanto que poderíamos ter e não temos, ser e não somos. Incomoda-me, sobremaneira, viver reclamando, porque realmente não pretendo cultivar a síndrome de vira-lata nem me fazer de coitadinho. Mas vivo nesta cidade desde sempre, então é sintomático que sempre haja do que reclamar. Uma pena.
Desejo tempos melhores para a nossa cidadezinha, da qual gosto de verdade. Acho que eu poderia recomeçar em outro lugar, mas não tenho vontade. Prefiro ficar por aqui. Gosto de estar em vivem minhas raízes. Quem sabe qualquer hora dessas alguma coisa frutifica.
Aos políticos, deixamos outras reclamações, tais como a incapacidade crônica de realizar obras ou de concluí-las, quando acontecem. Veja-se, por exemplo, que o tal prolongamento da Av. Independência (que agora nem mais se chama assim) deveria ter sido entregue em setembro, ainda antes das eleições, embora o governo se tenha esquecido da prometida alça ligando a nova via à BR-316. Houve até teste em julho, com as pessoas sentindo o gostinho do trânsito desafogado para, depois, tirarem o pirulito da criança. Até hoje, nem notícia da inauguração.
Outro exemplo são as obras de duplicação da Av. Perimetral, atrasadas, e que de novo só geraram os protestos e bloqueios da semana passada, porque os moradores não aguentam mais transtorno sem resultado. E se é para falarmos de atraso, que tal a mais importante obra tucana: o prolongamento da Av. João Paulo II? Imensamente atrasada, tecnicamente questionada e sem data para conclusão.
Temos também o portentoso Aquário da Amazônia, anunciado, prometido e esquecido. Ficaria no Parque do Utinga, cujas obras de qualificação do espaço para recebimento do público igualmente não aconteceram. Nada além da construção de uma guarita. Enquanto isso, ninguém sequer vê o prefeito. Com ele, sem ele, tanto faz.
Comemorar o aniversário de Belém, assim, gera esse sentimento paradoxal, uma alegria triste, pelo tanto que poderíamos ter e não temos, ser e não somos. Incomoda-me, sobremaneira, viver reclamando, porque realmente não pretendo cultivar a síndrome de vira-lata nem me fazer de coitadinho. Mas vivo nesta cidade desde sempre, então é sintomático que sempre haja do que reclamar. Uma pena.
Desejo tempos melhores para a nossa cidadezinha, da qual gosto de verdade. Acho que eu poderia recomeçar em outro lugar, mas não tenho vontade. Prefiro ficar por aqui. Gosto de estar em vivem minhas raízes. Quem sabe qualquer hora dessas alguma coisa frutifica.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
Começou para valer
Não dá para negar que 2015 começou para valer. Dois caminhões bateram e geraram um belíssimo engarrafamento para começar o dia, aumentando bastante o tempo de locomoção em um trajeto pequeno, como o que faço entre minha casa e o trabalho. Mas como bom belenense, dependente da lógica do mal menor, fiquei feliz ao constatar que se tratava de uma colisão (sem vítimas!), porque assim posso sonhar com um trânsito um pouco melhor nos dias vindouros. Passar pela mesma coisa todo santo dia seria desesperador...
Não que seja surpreendente, claro. Afinal, por aqui ninguém toma medidas decentes para melhorar o tráfego. A única coisa que se faz é instalar semáforos e, agora, radares, o que garante um deslocamento mais lento e uma arrecadação mais generosa para os cofres do órgão de trânsito. Nenhum investimento em educação, nenhuma ação disciplinar efetiva sobre os infratores (algo que, p. ex., impeça a prática cotidiana de travar cruzamentos), nenhuma melhoria do transporte público, etc. E vamos assim, sem sequer um bispo para nos queixarmos.
E olha que eu tinha prometido a mim mesmo reclamar menos este ano. Juro que vou tentar, mas...
Em todo caso, desejo uma ótima semana (ou resto dela) para todos. E lhes mando um grande abraço.
Não que seja surpreendente, claro. Afinal, por aqui ninguém toma medidas decentes para melhorar o tráfego. A única coisa que se faz é instalar semáforos e, agora, radares, o que garante um deslocamento mais lento e uma arrecadação mais generosa para os cofres do órgão de trânsito. Nenhum investimento em educação, nenhuma ação disciplinar efetiva sobre os infratores (algo que, p. ex., impeça a prática cotidiana de travar cruzamentos), nenhuma melhoria do transporte público, etc. E vamos assim, sem sequer um bispo para nos queixarmos.
E olha que eu tinha prometido a mim mesmo reclamar menos este ano. Juro que vou tentar, mas...
Em todo caso, desejo uma ótima semana (ou resto dela) para todos. E lhes mando um grande abraço.
domingo, 4 de janeiro de 2015
Especulando nos albores de 2015
Bom dia. São quase 11 da manhã do dia 4 de janeiro deste novo ano. Meio à toa na internet, resolvi dar uma passadinha por aqui, por este blog quase abandonado. Não posso queixar-me de não ter mais a boa audiência de outras épocas. Se nem eu venho aqui com habitualidade, quem mais viria?
Razões pessoais muito importantes explicam a situação do blog. Em primeiro lugar, o mestrado, que acabou em setembro último. Em segundo lugar, e mais decisivo, a doença de minha mãe, drama que nos acompanha já há mais de um ano. Neste caso, o problema não é falta de tempo, mas de alma. O pensamento, o sentimento, a necessidade se transferiram para outros lugares. E a luta está bem no começo de uma nova fase.
Penso, entretanto, que também é verdade que a fase áurea dos blogs acabou. Há alguns anos, quase todo mundo que estivesse conectado queria ter um blog. Era a descoberta do prazer de escrever qualquer coisa e ter a possibilidade de ser lido em qualquer lugar do mundo, de dialogar, de conhecer pessoas que também produziam. Podia-se mergulhar numa miscelânea de mundos e de ideias que não paravam de borbulhar. Mas o tempo passou e os blogs foram perdendo espaço.
Considerando a minha própria experiência, há o fator Facebook: aquela ideia súbita, aquela manifestação breve e urgente que nos acometia passou a ser publicada na rede social de Zuckerberg. Feita a postagem, a ansiedade passava, mas o blog não era alimentado. A interação com terceiros era mais rápida, também, porque beneficiada pela atualização das timelines. Quem tinha interesse em você o encontrava na rede social, dispensada a busca pelas novidades do blog. Com o tempo, ficou claro que replicar a postagem do blog no Facebook era a melhor maneira de lhe dar publicidade.
Mas não apenas o Facebook: o Twitter, com seus deprimentes 140 caracteres, estava mais de acordo com manifestações breves e desfundamentadas. O tipo de ação que mais interessa à média dos internautas de hoje. Tempos líquidos, diria Zygmunt Bauman: nada feito para durar. E também o Instagram, cenário para a exibição visual dos loucos por atenção. Aí não precisa escrever sequer os irrisórios 140 caracteres: basta publicar a foto que mostra como você é feliz.
Minha necessidade de atenção é limitada. Levei "muito" tempo para aderir ao Facebook porque já possuía uma conta no Orkut e considerava excessivo participar de duas redes sociais. Excessivo e sintomático. Quando se tornou evidente que no Orkut não haveria mais atividade, migrei para a nova rede. Migrei. Não queria duas contas. Não desativei o meu perfil no Orkut para não perder o seu conteúdo, porém nunca mais fui lá, até ser anunciada a sua morte.
Jamais tive conta no Twitter ou no Instagram. Nem tenho vontade. Fui cooptado à força pelo Google+, porém não o utilizo. Minha resistência à pluralidade de redes é tanta que nunca aceitei nenhum convite para participar da LinkedIn. Talvez devesse, mas nunca fui lá sequer para saber como é.
E mesmo assim o blog foi parando. O fogo cessou. Não apenas o meu: outros blogueiros conhecidos pararam de escrever. Ou o fazem muito esporadicamente. Penso que estamos ressignificando o uso dessas ferramentas em nossas vidas.
O marasmo do blog, todavia, não é necessariamente um mal. Antes, escrevíamos muito porque tínhamos necessidade de fazê-lo. Agora que esse sentimento autoimposto sumiu, podemos escrever mais devagar e com mais qualidade. Tenho vários rascunhos de postagens aguardando o dia que finalmente vou concluí-las. Temas que considero interessantes e, mesmo assim, não tenho a menor pressa em finalizar a tarefa. Quando der vontade, pesquiso um pouco mais e concluo. Se ficarem prontas, podem tornar-se textos interessantes. Quem sabe um estímulo para participar do site colaborativo Obvious?
Enfim, queridos leitores que talvez, quem sabe, eventualmente leiam este texto (por sinal, grande demais para ser lido até o final, por supuesto), continuamos por aqui. Pode não parecer, mas continuamos. Não vou desistir. Escreverei quando der vontade (e com mais qualidade, tomara). Encaro o blog, agora, como um espelho de momentos de minha vida e suponho que isso terá um grande valor para mim, no futuro, quando eu não for mais que uma sombra do que sou hoje. Ou talvez seja útil para minha filha saber quem eu era, quando for capaz de ler e entender estas mais de 5 milhares de postagens.
Abraço vocês e lhes desejo um ótimo ano de 2015. Sejam felizes. Força sempre.
Razões pessoais muito importantes explicam a situação do blog. Em primeiro lugar, o mestrado, que acabou em setembro último. Em segundo lugar, e mais decisivo, a doença de minha mãe, drama que nos acompanha já há mais de um ano. Neste caso, o problema não é falta de tempo, mas de alma. O pensamento, o sentimento, a necessidade se transferiram para outros lugares. E a luta está bem no começo de uma nova fase.
Penso, entretanto, que também é verdade que a fase áurea dos blogs acabou. Há alguns anos, quase todo mundo que estivesse conectado queria ter um blog. Era a descoberta do prazer de escrever qualquer coisa e ter a possibilidade de ser lido em qualquer lugar do mundo, de dialogar, de conhecer pessoas que também produziam. Podia-se mergulhar numa miscelânea de mundos e de ideias que não paravam de borbulhar. Mas o tempo passou e os blogs foram perdendo espaço.
Considerando a minha própria experiência, há o fator Facebook: aquela ideia súbita, aquela manifestação breve e urgente que nos acometia passou a ser publicada na rede social de Zuckerberg. Feita a postagem, a ansiedade passava, mas o blog não era alimentado. A interação com terceiros era mais rápida, também, porque beneficiada pela atualização das timelines. Quem tinha interesse em você o encontrava na rede social, dispensada a busca pelas novidades do blog. Com o tempo, ficou claro que replicar a postagem do blog no Facebook era a melhor maneira de lhe dar publicidade.
Mas não apenas o Facebook: o Twitter, com seus deprimentes 140 caracteres, estava mais de acordo com manifestações breves e desfundamentadas. O tipo de ação que mais interessa à média dos internautas de hoje. Tempos líquidos, diria Zygmunt Bauman: nada feito para durar. E também o Instagram, cenário para a exibição visual dos loucos por atenção. Aí não precisa escrever sequer os irrisórios 140 caracteres: basta publicar a foto que mostra como você é feliz.
Minha necessidade de atenção é limitada. Levei "muito" tempo para aderir ao Facebook porque já possuía uma conta no Orkut e considerava excessivo participar de duas redes sociais. Excessivo e sintomático. Quando se tornou evidente que no Orkut não haveria mais atividade, migrei para a nova rede. Migrei. Não queria duas contas. Não desativei o meu perfil no Orkut para não perder o seu conteúdo, porém nunca mais fui lá, até ser anunciada a sua morte.
Jamais tive conta no Twitter ou no Instagram. Nem tenho vontade. Fui cooptado à força pelo Google+, porém não o utilizo. Minha resistência à pluralidade de redes é tanta que nunca aceitei nenhum convite para participar da LinkedIn. Talvez devesse, mas nunca fui lá sequer para saber como é.
E mesmo assim o blog foi parando. O fogo cessou. Não apenas o meu: outros blogueiros conhecidos pararam de escrever. Ou o fazem muito esporadicamente. Penso que estamos ressignificando o uso dessas ferramentas em nossas vidas.
O marasmo do blog, todavia, não é necessariamente um mal. Antes, escrevíamos muito porque tínhamos necessidade de fazê-lo. Agora que esse sentimento autoimposto sumiu, podemos escrever mais devagar e com mais qualidade. Tenho vários rascunhos de postagens aguardando o dia que finalmente vou concluí-las. Temas que considero interessantes e, mesmo assim, não tenho a menor pressa em finalizar a tarefa. Quando der vontade, pesquiso um pouco mais e concluo. Se ficarem prontas, podem tornar-se textos interessantes. Quem sabe um estímulo para participar do site colaborativo Obvious?
Enfim, queridos leitores que talvez, quem sabe, eventualmente leiam este texto (por sinal, grande demais para ser lido até o final, por supuesto), continuamos por aqui. Pode não parecer, mas continuamos. Não vou desistir. Escreverei quando der vontade (e com mais qualidade, tomara). Encaro o blog, agora, como um espelho de momentos de minha vida e suponho que isso terá um grande valor para mim, no futuro, quando eu não for mais que uma sombra do que sou hoje. Ou talvez seja útil para minha filha saber quem eu era, quando for capaz de ler e entender estas mais de 5 milhares de postagens.
Abraço vocês e lhes desejo um ótimo ano de 2015. Sejam felizes. Força sempre.
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