quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ok, um pouco de diversão não custa nada e faz bem

Para que não fiquemos apenas entre as sombras de nossas almas, porque ninguém suporta isso por tempo demais, vamos encerrando o ano com música animada, dança e ciência.


Desejo a cada um de vocês um dia tranquilo, uma noite de celebração, uma oportunidade de reflexão, um insight de necessidade de empatia, além, é claro, muita saúde. Que haja união com seus amores, do modo que seja possível. Sejam felizes.

Retrospectiva 2020

Janeiro. Ano começou comigo de luto, passando uns dias em Santarém, ansioso em relação ao futuro.

Fevereiro. Vendo as pessoas comemorarem o carnaval enquanto o mundo falava cada vez mais do novo coronavírus.

Março. A pandemia se tornou uma realidade por aqui. Começou o isolamento nesta família e todos fomos afetados pelos serviços públicos e privados sendo descontinuados ou tornados virtuais.

Abril. Nasceu Margot, nossa segunda filha e uma alegria exuberante em meio ao caos.

Maio. Já cansado de ouvir falar em lives, mesmo tendo assistido a poucas delas. Vivi a estranha experiência do lockdown, tendo que explicar a policiais militares o que eu estava fazendo na rua (havia ido ao supermercado). Eu me senti dentro da distopia.

Junho. Lamentando a perda das festividades juninas. Aquelas comidinhas que amo, sabe?

Julho. Completei 45 anos me perguntando o que diabos estou fazendo aqui.

Agosto. Mês do desgosto? Como assim, "mês", durante um ano que já era odiado pelo mundo afora? Atividades retornando, mas não retornando exatamente.

Setembro. Administrando uma adolescente se declarando surtada pelo isolamento em casa, embora, claro, sem se dar conta dos privilégios que a vida lhe permitiu.

Outubro. Todo o respeito às pessoas que lamentaram não ver o Círio de Nossa Senhora de Nazaré nas ruas de Belém. A cidade se beneficia da energia das pessoas que vivem esse momento de união.

Novembro. Em uma eleição adiada, corremos risco real de ver nossa cidade ser entregue a mais um projeto oportunista e canalha, mas pelo menos disso escapamos. Passei o mês muito empenhado em um antigo e importante projeto pessoal.

Dezembro. Com um grande amigo internado com covid-19, em estado muito grave, vejo os brasileiros apertarem com convicção o botão do foda-se, porque não podem deixar de celebrar suas vidas miseráveis. Aguardando resignado as consequências.

Muita gente aguarda ansiosa pelo fim de 2020. O fato é que, de acordo com as convenções, o ano acabará inelutavelmente, daqui a menos de 14 horas. Mas o que esperar de 2021, se as condições são as mesmas? Vacina. Por ora, esta parece ser a única variável capaz de fazer alguma diferença.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Quero ser saudável

Jiddu Krishnamurti (1895-1986) foi um filósofo, escritor e educador indiano, cujo pensamento não chegou à maioria de nós porque, desde sempre, fomos educados para conhecer e valorizar apenas a cultura ocidental, primeiramente a europeia e, segundamente, a estadunidense. Também nada sei sobre ele. Apenas me deparei com esta lição profunda, verdadeira e perfeitamente adequada aos tempos que vivemos:

"Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente."


De repente, comecei a valorizar o fato de ter-me sentido deslocado a vida inteira.


domingo, 27 de dezembro de 2020

A fome, que retorna convicta

Vários anos atrás, quando eu era adolescente, a "revista semanal de domingo" da Rede Globo, o Fantástico, exibiu uma reportagem longa e contundente sobre a fome no Brasil. O trabalho jornalístico teve enorme repercussão e, sobre mim, um efeito devastador. À medida que a reportagem avançava, eu me sentia mais e mais sufocado, até não conseguir mais reprimir o choro. Quando terminou, eu me sentia péssimo, sobretudo por não vislumbrar nenhum prognóstico de mudança, embora estivesse claro para mim que acabar com aquela realidade era possível e, talvez, mais simples do que parecia.

Há dois dias, tomei conhecimento do documentário Histórias da fome no Brasil (dir. Camilo Tavares) lançado em dezembro de 2017. Sim, há 3 anos, mas somente agora soube dele. Provavelmente, pouca gente conhece, daí a importância de divulgá-lo. Abaixo, você pode assistir.


Impossível tocar em um assunto tão sensível sem dar margem a que as histerias ideológicas explodam, pois constitui fato objetivo que o Brasil saiu do Mapa da Fome, da Organização das Nações Unidas, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva. E também é fato objetivo que, desde 2017, quando o documentário foi lançado, o país corria o risco de retornar a ele. Agora, com a pandemia e a quase ausência de políticas de auxílio aos necessitados, o cenário é mais do que assustador.

Não farei apologias e muito menos brigarei com os fatos. Deixarei o negacionismo àqueles a quem essa doença aproveita. Só quero dizer que o documentário comprova minhas ideias adolescentes: acabar com a fome era uma questão de iniciativa. A famosa vontade política. Enfrentar a seca do Nordeste poderia ser feita com a construção de cisternas, uma tecnologia simples e barata. Não é a solução única ou definitiva, mas um exemplo de como os governantes poderiam ter agido décadas antes, se quisessem. A bilionária transposição do Rio São Francisco também é apenas um exemplo, necessário, porém não suficiente. Enfim, incontáveis vidas poderiam ter sido poupadas. Uma quantidade atroz de sofrimento poderia ter sido evitado.

Documentário recomendado. Você vê, julga e decide o que lhe parecer mais sensato.

Terminando. Ou não. Provavelmente não.

Falta pouco mais de 4 dias para 2020 terminar. Difícil encontrar quem vá sentir saudade. Muita gente por aí está dizendo que se trata do pior ano de todos, e não apenas no Brasil, embora por aqui precisemos conviver com o pesadelo permanente do nosso desgoverno genocida. Claro que essa fatura vai para a fatura do novo coronavírus, que ceifou milhões de vidas pelo planeta, isolou as pessoas e causou um sem número de danos, materiais e emocionais. É a maior emergência sanitária da História, se pensarmos no aumento da população mundial e no maior risco de contágio, devido às possibilidades de deslocamento entre os países.

Para mim, não foi o pior ano já vivido. Deixo esse demérito para 2015, com um profundo desejo de que nunca mais precise enfrentar nada parecido. Em relação às ações humanas, a maior violência que sofri remonta ao ano de 2019. Logo, 2020 ficará marcado como o ano de nascimento de minha segunda filha, tão ansiada e intensamente buscada. E mesmo que o isolamento nos tenha afetado a todos, também nos deu, no caso específico de nossa família, a oportunidade de estar em casa, ao lado dela, acompanhando o seu desenvolvimento. Finalmente, a ideia de tirar partido dos reveses funcionou para mim.

Contudo, o alerta vermelho está aceso. Neste momento em que escrevo, um grande amigo, uma das pessoas mais generosas que já conheci, encontra-se internado em UTI com covid-19, em estado grave, intubado. Passo os dias monitorando o celular, com medo de que alguma mensagem do WhatsApp traga informações de que não estamos precisando neste momento. Conheço essa sensação de medo permanente do telefone, do mensageiro. Estamos em uma grande corrente de vibrações positivas. É nisso que precisamos nos concentrar.

No mais, o ano ― essa convenção humana ― acabará em breve, porém o mundo seguirá sendo como é. E nós precisamos desesperadamente que ele mude: que haja mais decência e bondade, pois muita gente renunciou voluntariamente a esses valores, por pura escolha. Precisamos nos reencontrar com nossa humanidade. E estes eventos de fim de ano costumam ser propícios a tais reflexões. Só espero que não sejam promessas de fim de ano. Até porque não estou vendo ninguém prometer nada.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Pato Donald

É meio sem sentido comentar sobre a vida alheia, mas como este é um blog de opinião e é meu, lá vai.

Acabei de ler matéria informando que o ainda presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, iniciou mais uma aventura jurídica, desta feita perante a Suprema Corte do país, por meio da qual pretende cassar, suspender, ignorar, por para escanteio ou sei lá o quê milhões de votos, em quatro Estados nos quais, obviamente, ele perdeu, alegadamente por mudanças de regras eleitorais devido à pandemia do coronavírus (v. https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/12/09/trump-pede-que-suprema-corte-dos-eua-bloqueie-milhoes-de-votos-em-4-estados.htm). O argumento parece novidade, embora o moleque pimbudo costume resumir tudo ao argumento de "fraude", nunca comprovado.

Pessoalmente, acho ridículo o chefe de Executivo que não transmite a faixa ao seu sucessor. Tudo bem que não depende do vazante a transmissão do poder, mas considero a passagem da faixa um ato simbólico bastante educado, civilizado, que deveria transmitir a mensagem de estabilidade das instituições. Portanto, quando um molecote deixa de comparecer ao ato, mais do que evidenciar a sua babaquice, ele demonstra quão mal das pernas vão as instituições, tratadas como valhacoutos pessoais.

O caso de Trump é ainda pior, porque o mundo inteiro, literalmente ― o mundo que conta, portanto excluídas repúblicas bananeiras comandadas por escrotinhos insignificantes ―, já considera notícia velha a eleição de Joe Biden, que está prestes a ser confirmada com a votação dos delegados. Mesmo assim, o sujeito cuja aparência sempre furiosa e alaranjada já é por si só repugnante, insiste no negacionismo, hoje uma característica marcante dos ultradireitistas. A imagem que tenho comigo é a de um fulaninho tentando se agarrar na água enquanto desce por um ralo óbvio e inevitável. Eu realmente não consigo pensar em um precedente de chefe de Estado que, em ambiente democrático, vá deixar um governo tão pela porta dos fundos desse jeito  ― e por culpa exclusivamente própria.

Está feio, mas há de piorar. E aguardemos as cenas dos próximos capítulos, porque há uma certa colônia abaixo da linha do Equador que adora copiar tudo que os Estados Unidos fazem... de ruim. Ouvi dizer que, por lá, os apoiadores do tiranete agora fazem passeatas de meia dúzia de revoltados, exigindo um tal de voto impresso.

Vendo essa coisas, só consigo pensar que o coronavírus está matando as pessoas erradas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Eterna vigilância contra o inimigo

Ontem eu me deparei com uma reportagem considerando inadmissível mulheres ainda terem câncer de colo de útero. Considerei a manchete contundente e, por razões pessoais, decidi ler o texto. Por sinal, um exemplo cada vez menos frequente de matéria bem feita, porque devidamente explicada (e não reduzida a dois parágrafos, para os preguiçosos fazerem um esforço de ler), detalhada, subsidiada na Medicina e, mesmo assim, com uma linguagem leve, talvez para reduzir o incômodo do assunto. Abaixo o link:

https://www.uol.com.br/vivabem/colunas/lucia-helena/2020/12/03/nao-e-aceitavel-que-tantas-mulheres-ainda-tenham-cancer-de-colo-de-utero.htm

Como disse acima, tenho razões pessoais para me sentir mexido por esse tema.

Minha mãe morreu em decorrência de um câncer uterino. Faz 5 anos e 2 meses, agora. Ela tinha pavor de câncer. Sequer pronunciava o termo. Chamava de "aquela doença feia". A mãe dela morreu de câncer no estômago e isso aumentou o medo que ela já sentia. Ela se cuidava, fazia preventivo todos os anos. Mas só depois do diagnóstico descobrimos que o preventivo investiga apenas câncer de colo do útero, não da cavidade uterina. E o tumor dela surgiu no fundo (que, contraintuitivamente, é a parte de cima). Eis a ironia: passou anos se protegendo, mas não sabia que a proteção era meramente parcial. 

Pessoas como eu, estudadas em alguma área e com acesso às internets da vida, supõem compreender razoavelmente bem diversos assuntos. Aí vem a realidade e nos atropela, mostrando que somos bem mais ignorantes do que pensávamos. Diante disso, resolvi compartilhar a reportagem com amigos e aqui no blog, pois realmente nunca mais quero ver alguém passar por aquilo.

Cuidem-se. Saúde. Abraços.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O ano acaba, mas o pesadelo não

Ao tempo em que inicio estas mal traçadas linhas, faltam 28 dias, 1 hora e 7 minutos para o ano de 2020 terminar. Para uma quantidade imensa de brasileiros, ou pelo menos considerando aquilo que vejo, foi um ano horroroso, para muitos o pior já vivido. Claro que a pandemia do coronavírus figura como vilã preferencial dessas manifestações, pois roubou nossas vidas e acabou com a tal vida normal, impondo muitos e singulares desafios.

O problema é que 2020 acabará sem que a pandemia tenha passado. Já se fala bastante na proximidade da vacina, mas ainda não há confirmação de liberação pelas autoridades sanitárias, tampouco notícia sobre plano de vacinação. Notícia que li falava em vacinar toda a população até o final de 2021. Então tá.

Mas para quem é brasileiro, coronavírus pouco é bobagem. Nós temos o pior governo de todos os tempos e todas as dimensões, excluídos os regimes de exceção. Se você acha que Trump é pior, saiba que para ele era, supostamente, "America first". Por aqui, com certeza, é "America first". Só que nós não somos a tal America. Por aqui, o "Brasil acima de tudo" foi só um ridículo slogan de campanha, que jamais pretendeu ser verdadeiro. Aliás, a dobradinha SARS-CoV-2 e governo Bozo são a causa do número alarmante de mortos que tivemos na pandemia e de uma tal segunda onda que se confunde com a primeira.

Mas por aqui se morre a rodo por outras razões, também, Morre-se por causa da fome, de doenças facilmente tratáveis, de uma quantidade colossal de acidentes e de muita, muita violência, dentre outros fatores. E aí entra o governo, aumentando a miséria e o desemprego, não contendo a inflação, demolindo todos os sistemas de proteção de direitos ou do meio ambiente, estimulando a violência e muitas mazelas mais. Não é engano nem acidente: é projeto de morte. Basta ver que, volta e meia, a imprensa publica uma notícia no sentido de que o governo não gastou todo o orçamento disponível para certo setor. Por toda a minha vida, vi a desculpa ser dada em termos de "não temos dinheiro". Nesta era das trevas, há dinheiro, porém ele não é gasto. Fica evidente que são decisões sendo tomadas para ferrar com tudo.

Daí lembramos que 2020 terminará e o governo mais alucinado da história, não. Isso me dá mais angústia e raiva do que qualquer vírus, ainda mais quanto vemos uma tribo insistir em apoiar esse projeto, com toda a irracionalidade possível, como acabamos de rever nas recentes eleições municipais. Um fulano qualquer pode surgir dizendo que vai governar para empresários e tapar todos os canais de Belém e, ainda assim, ganha mais de 48% dos votos válidos, só porque não era de esquerda. A galera resolveu brincar de roleta russa todo dia, uma roleta russa modificada, em que há mais de uma bala no tambor.

Mas é o que temos para hoje. Precisamos de encerramentos, porque acreditamos na força dos ciclos. Pensar que estamos em um novo ano, em uma nova fase, em uma nova condição nos ajuda a disfarçar que estamos no mesmo pesadelo. Pelo menos por ora. O futuro, quem sabe?

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

As novas cores do beco

Estive em São Paulo pela última vez há pouco mais de dois anos. Era julho e tiramos alguns dias de férias. Eu estava decidido a conhecer o famoso Beco do Batman, mas seria um passeio que faria sozinho, porque caminhar olhando grafites em paredes não animou as minhas crianças. O fato é que, sendo curta a estadia e tendo algumas programações concebidas justamente para as crianças, acabei desistindo. Lamentei na época e lamento ainda mais agora.



O Beco do Batman é a típica proposta para me agradar, porque não é mainstream. Nada contra vernissages em galerias requintadas, mas a ideia de algo que não foi pré-determinado, que surgiu em um repente e foi renovado, e renovado, e que reúne uma arte popular, diversa e colorida, gerando um cenário tão bonito em um local que poderia ser simplesmente mais uma viela em um bairro não lembrado pelas sucessivas administrações tucanas. É simplesmente fantástico.

Espaço adorado pelos artistas e por um público mais despintado, ganha novas pinturas periodicamente e mobiliza a própria comunidade para garantir a conservação da galeria a céu aberto. Ou seja, é mesmo uma iniciativa para ser admirada. Sobretudo porque dá visibilidade ao grafite, técnica para a qual os ortodoxos torcem o nariz, dizendo não configurar arte. Porque arte, nós sabemos, é uma banana presa a uma parede com um x de fita crepe. Mas é justamente aí que está a mensagem: a arte popular merece estar nas ruas e ser vista por todos.

Tudo poderia ser perfeito, se não estivéssemos em um país onde a vida vale muito pouco, quase nada. Na madrugada do último sábado (28 de novembro), Wellington Copido Benfati, o NegoVila, 40, um dos artistas do beco, foi assassinado por um policial à paisana, quando tentava apartar uma briga. Morreu tentando fazer o certo. Segundo os relatos, foi uma execução. Dois tiros, um no peito. Em honra ao colega e como protesto por mais esta tragédia, os artistas pediram autorização aos colegas e cobriram as paredes do beco com tinta preta. Nelas, somente mensagens alusivas ao ocorrido, para ninguém esquecer o que houve ali.


A manifestação não durará para sempre. NegoVila era artista e certamente não ia querer isso. Ele há de preferir o beco repleto de grafites, com seus signos, seus protestos, sua esperança. Em algum momento, o Beco do Batman voltará a ser rosto colorido de um povo que resiste. Mas será um espaço bem diferente, com pinturas novas e, certamente, muitas homenagens a NegoVila, que teve sua vida desperdiçada, mas que vai virar inspiração.

É preciso coragem e desprendimento para um artista abrir mão de sua obra assim, de chofre. Mas os do beco sabem o que está em jogo e, por isso, expresso minha mais profunda admiração e respeito por eles. Estamos cansados, precisando de paz. Precisando não sentir medo, que é a essência da liberdade, segundo a cantora Nina Simone.

Meus pêsames. Força sempre.

Consultei:

  • http://cidadedesaopaulo.com/v2/atrativos/beco-do-batman/?lang=pt#:~:text=Sua%20hist%C3%B3ria%20come%C3%A7ou%20na%20d%C3%A9cada,galeria%20de%20paredes%20totalmente%20cobertas
  • https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/11/30/beco-do-batman-amanhece-de-luto-apos-artista-ser-morto-policial-foi-detido.htm

Uma nova legislatura?

Levo muito a sério a política municipal. Afinal, é no Município que vivemos. São as decisões locais que afetam de modo direto o nosso cotidiano, nas coisas mais simples e necessárias, como abastecimento dos mercados, transporte, iluminação, saneamento, etc. Por quase 4 anos, entre 1997 e 2000, fui assessor na Câmara Municipal de Belém. E por 2, entre 2001 e 2003, fui procurador jurídico do Município de Belém. Ou seja, passei cerca de 6 anos de minha vida lidando diariamente com aspectos da gestão municipal, seja no Legislativo, seja no Executivo. Fiquei muito mais interessado na questão. E conheci de perto alguns rostos e nomes.

Passados 17 anos, eu simplesmente não tenho ideia de quem são muitos dos atuais vereadores de Belém. E alguns eu só sei que existem porque foram citados aqui e ali, por alguma razão, inclusive as estúpidas, como fazer um projeto de lei instituindo o "dia do orgulho heterossexual". E olha que eu tento ser minimamente informado. Por outro lado, alguns vereadores que já estavam aboletados na Câmara Municipal nos meus tempos de assessor ainda estão por lá! Mais de duas décadas transformando a vereança em carreira, porém sem compromisso de produtividade, porque simplesmente não se escuta, não se lê, não se vê nada que esses caras tenham feito, a não ser sustentar prefeitos vergonhosos.

Veja quem são os atuais vereadores de Belém (por seus nomes parlamentares e, mesmo assim, é possível que você jamais tenho ouvido falar de vários deles): Adriano Coelho, Altair Brandão, Amaury da APPD, Bieco, Blenda Quaresma, Celsinho Sabino, Dinely, Dr. Chiquinho, Dr. Elenilson, Emerson Sampaio, Enfermeira Nazaré Lima, Fabrício Gama, Fernando Carneiro, Gleisson, Henrique Soares, Igor Andrade, Joaquim Campos, John Wayne, Lulu das Comunidades, Marciel Manão, Mauro Freitas, Moa Moraes, Nehemias Valentim, Neném Albuquerque, Nilda Paula, Paulo Queiroz, Pablo Farah, Professor Elias, Professor Wellington Magalhães, Rildo Pessoa, Sargento Silvano, Simone Kahwage, Toré Lima, Wilson Neto e Zeca Pirão.

A primeira vergonha é que só há quatro mulheres na câmara, de 35 vagas. Em azul, os que se reelegeram: são 16 no total. Eu sempre espero uma renovação maior, mas não adianta. Estar no cargo proporciona inúmeras conveniências, em alguns casos nada republicanas. No entanto, preciso destacar que há, sim, nomes cuja reeleição me deixa muito satisfeito. No geral, é bom que tenhamos uma renovação superior a 50%, com 19 calouros: Allan Pombo, Augusto Santos, Bia Caminha, Dona Neves, Emerson Sampaio, Fábio Souza, Goleiro Vinícius, João Coelho, Josias Higino, Juá Belém, Lívia Duarte, Matheus Cavalcante, Miguel Rodrigues, Renan Normando, Roni Gas, Pastora Salete, Túlio Neves, Vivi e Zeca do Barreiro.

Agora são 6 vereadoras. Uma vergonha, uma lástima. A ausência de representatividade segue a toda, ainda mais se pensarmos que tem muito classe média se metendo em política pensando em projetos pessoais, porque não possui uma verdadeira base eleitoral. Alguns só têm um curral, mesmo. E os nossos vícios permanecem: eleger jogador de futebol aposentado de time ruim, os onipresentes evangélicos, etc. Mas há o que comemorar, sem dúvida. Há candidaturas que se forjaram nas ruas e conquistaram mandato sem dinheiro de papai, de empresário, de político que não podia apoiar mas apoiou, etc. Encaro como um avanço minúsculo, mas um avanço. Só de pensar que os vereadores vintenários vão finalmente pegar o beco e, junto com eles, o sargento (bolsominion arrependido) e o truculento apresentador de programa mundo-cão. São pequenas alegrias da vida adulta, parafraseando Emicida.

Ao conceder entrevista após o anúncio de sua eleição a prefeito, Edmilson Rodrigues disse ter sido procurado por 20 vereadores eleitos, dando a entender que essa será a sua base de sustentação. Do outro lado, seriam 15 edis na oposição. É numericamente maioria, mas vale a pena lembrar que é da natureza de muitos desses partidos negociar apoio. Logo, mesmo que seja esse o cenário, Edmilson não deve governar em céu de brigadeiro. Mas já seria bem melhor do que em seus dois mandatos anteriores, sendo sabotado por todos os lados. Pessoalmente, acredito que essa tensão é positiva, porque obriga o Executivo a vigiar sempre, a escutar, a ponderar, a se justificar, a ser mais humilde. Coisa muito diferente do que fez um prefeito medíocre como Zenaldo Coutinho, sustentado por 30 vereadores. Assim se consegue tudo, mesmo que isso afunde a cidade, como afundou.

Assim como o Congresso Nacional desceu ao nível mais degradante de sua já não honorável história, a Câmara Municipal de Belém também dá vergonha. Mas tudo muda quando se tem um governo de esquerda. Os acomodados se levantam, a imprensa se torna superfiscalizadora, as instituições públicas não dormem, à caça da mínima improbidade. Enfim, as forças se alinham, tudo se conflagra para que o projeto dê errado.

Seja como for, prefiro navegar nesses mares revoltosos do que nas águas plácidas da direita. Quando o povo se cala, a imprensa finge não ver, as instituições cruzam os braços e a politicalha intenta golpes, tudo parece no lugar. Mas nós, povo, estamos perdendo. Com a esquerda no poder, ninguém dorme. E essa é a única oportunidade de algo bom acontecer para quem vive em uma cidade combalida como Belém.

Em tempo: Após esta publicação, tomei conhecimento de que a vereadora eleita Vivi Reis assumirá o mandato de Edmilson Rodrigues na Cãmara dos Deputados, pois é sua suplente. Em seu lugar, a Enfermeira Nazaré Lima assumirá um segundo mandato como vereadora. Portanto, será mantido o número de mulheres e a identidade partidária, pois ambas são do PSOL. Serão, portanto, 17 vereadores reconduzidos e 18 calouros, mas isso não mudará a relação com o futuro prefeito.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Sensação de racismo

Para quem ainda acredita que o vice-presidente da República é melhor do que o titular do cargo, hoje tivemos uma bela demonstração do erro (se é que se pode tratar como erro). Em pleno dia da consciência negra, e horas após o assassinato de mais um brasileiro preto, em uma rede de supermercados que já registra três outros casos em seu histórico, o tal fulano declarou:


A declaração foi pública e oficial. Não adianta dizer que estou compartilhando fake news. E ela bem demonstra como estão as coisas no Brasil, atualmente. Vocês se lembram do então ministro da Fazenda do Brasil, Rubens Ricúpero, em entrevista concedida no dia 1º.9.1994, dizendo: "Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde"? Sem saber que a conversa estava sendo gravada, o ministro mostrou como pensa um político padrão. A frase ganhou imensa repercussão nacional. Mas sabe o que é pior? É pensar que 1994 ainda era menos sórdido do que agora.

No Brasil de hoje, o que é ruim não é escondido: é eliminado. Todas as mazelas nacionais são resolvidas do mesmo e simplório modo: mediante uma singela negação por parte do governo. Não existe desmatamento, nem corrupção no governo, nem racismo neste país. Porque "para mim" não existe. É uma percepção minha. E as percepções dessa gente do governo prevalecem sobre qualquer realidade, mesmo a mais evidente.

Eu me pergunto como se sentiram os parentes de João Alberto Silveira Freitas, o assassinado de ontem, ao tomarem conhecimento da declaração. Como se sentiram os demais brasileiros pretos, que todos os dias experimentam o peso dessa coisa que não existe, que é apenas uma tentativa de importação ideológica, ao ponto de temerem pela própria vida. Exceto, é claro, aquele vereador de São Paulo (e olha que até ele tuitou em protesto contra o crime!) e aquele sujeito que preside atualmente a Fundação Palmares. Eu, que sou pardo, segundo a minha certidão de nascimento, e que nunca fui prejudicado por minha cor, me senti extremamente mal. Imagine os pretos.

O vice só é melhor do que o titular em capacidade intelectual, nível de instrução e educação no trato com terceiros. Mas naquilo que importa para a gestão de um país diverso e sofrido como o Brasil, eles são como escolher entre morrer de câncer no pulmão ou de câncer no cérebro. Você tem preferência?

Mas esse é o projeto eleito em 2018. Não basta defender tudo aquilo que limita, humilha, degrada e, por fim, mata as pessoas comuns, aquelas que não pertencem às elites. Porque isso muitos outros também fizeram, mas fingindo que se importavam. Negando seus reais sentimentos. Mostrando em público uma solidariedade que na verdade não existe, como o governador de São Paulo, p. ex. Essa turma aí não consegue calar a boca; não se furta de dizer coisas que tornam tudo ainda mais horrendo e inaceitável. São os piores representantes daquilo que há de pior entre os representados.

Meus pêsames às pessoas enlutadas hoje, pelo crime noticiado. Veremos qual será o nosso motivo amanhã.

PS  Sim, como você percebeu, eu não escrevo os nomes dessa canalha. Eu escrevo os nomes de seres humanos, daqueles que merecem ser lembrados. Quem extrapola o limite da indignidade não deve ser nominado em hipótese alguma, exatamente como se deve fazer em relação a terroristas e psicopatas em busca de fama. Se ninguém desse espaço a eles, não seriam eleitos.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Semiótica de painel e parabrisa

Gostaria de oferecer-lhes uma breve especulação semiótica acerca de um tema recorrente nas redes sociais. Digo especulação porque não sou especialista neste campo, então estas mal traçadas linhas não vão além de umas poucas leituras e algumas experiências de observação comportamental ao longo da vida.

Semiótica, em apertadíssima menção, é o estudo da construção de significados no processo de comunicação. Tem interesse direto para a Linguística e para a Filosofia, sendo o termo atribuído ao filósofo inglês John Locke (1632-1704), originado na raiz grega semeion (signo). Um signo é uma ideia que contém uma mensagem ou fragmento dela, composto por um significante (seu elemento material, como uma palavra, um gesto, etc.) e um significado, que varia conforme o contexto. É algo lindo e instigante, mas fiquemos por aqui. 

Painel é um termo associado à arte pictórica, mas aqui me refiro ao componente dos veículos automotores, que se situa dentro do habitáculo, à frente dos assentos dianteiros, contendo diversos equipamentos essenciais à dirigibilidade do veículo e ao conforto e à segurança dos passageiros.

Parabrisa é a peça de vidro que, instalada à frente do veículo, permite a visão do meio exterior, porém protegendo do vento (daí o nome) e da chuva, que dificultariam ou até impediriam o ato de dirigir.

Pronto: acabei de colocá-los sentados no interior de um automóvel, olhando para a frente. Agora vamos à semiótica. Vocês já devem ter visto, pelas redes sociais, imagens como esta abaixo:


Assumo a premissa, tão decantada, de que as redes sociais são a válvula de escape de pessoas cuja percepção de autovalor depende da aprovação alheia. Isto pode explicar porque elas são ilhas da fantasia, repletas de registros de felicidade, beleza, riqueza, sucesso e autorrealização. Nesse sentido, uma imagem como esta, embora quase sempre publicada como se fosse um registro espontâneo e despretensioso de um momento absolutamente corriqueiro da vida, segundo compreendo, destina-se a transmitir ao menos uma, senão mais de uma, dentre as perspectivas abaixo:

A marca do veículo, que se encontra no volante. É a intenção velada de ostentar riqueza, a depender, naturalmente, de qual seja essa marca. Não impressionamos com um Volkswagen, mas Audi, Mercedes, BMW, Land Rover e Jaguar já enchem os olhos. Cito marcas que vejo nesta cidade.

A tela da central multimídia, que exibe a música que supostamente está sendo ouvida pelo condutor. É a deixa da ostentação cultural, que pode conduzir a dois caminhos diametralmente opostos: 

  • Se colocar estilos musicais havidos por sofisticados, de acordo com os padrões hegemônicos, o sujeito quer exibir sua pretensa superioridade intelectual, seu refinamento e erudição. Quem não gosta do estilo é menosprezado por sua indigência cultural. (PS - Quem nunca viu um pseudointelectual dizer que gosta de jazz?)
  • Se colocar estilos musicais popularescos, o indivíduo quer vangloriar-se de ser descolado, livre, de não se importar com a opinião alheia, de não ceder a pressões e de privilegiar a alegria e o bem-estar. Quem não gosta do estilo é menosprezado por sua arrogância. (PS - Sabe aquela canção cuja letra parece ter sido escrita por um bebê, com música dançante e intensa exploração comercial? Pois é.)

Duvido bastante que o autor de publicações de painel de carro exponha uma música escolhida simplesmente porque gosta dela. Foi o que tentei fazer. Eu realmente escuto habitualmente heavy metal e gosto das bandas alemães, porque estudei alemão e isso me ajuda a manter contato com o idioma. Em minha tela você vê "Sie tantz allein" ("ela dança sozinha"), da banda de metal medieval Saltatio Mortis, que escuto com frequência (por sinal, sempre me lembrando de minha bailarina favorita, Ana Luiza Crispino).

O local por onde o sujeito está passando. E finalmente, porém não menos importante, o mundo exterior ao veículo, embora seja o elemento que menos conote ostentação, nas publicações que costumo ver, também pode ser usado com essa finalidade, pois o ambiente pode ser requintado, exclusivo ou exuberante. O sujeito escreve "mais um dia de trabalho", para se vender como profissional batalhador em um dia perfeitamente comum, mas quer mesmo ostentar sucesso, por exemplo exibindo um ambiente que cause admiração, por seu luxo ou tecnologia. Ou então o sujeito quer mostrar a sua profunda simplicidade e amor à natureza, mas posta aquela praia estonteante que por acaso denuncia que fez uma viagem cara.

É isso. Símbolos.

Convido você, eventual leitor, a opinar sobre meus juízos de valor nesta postagem que, como tudo mais, também possui suas intencionalidades ocultas. Mas não, não possui nenhum destinatário específico. 

domingo, 15 de novembro de 2020

E as eleições em Belém, hein?

Algum choque e muita indignação: é como me sinto após o resultado das eleições municipais de hoje. Um sujeito que, até um dia desses, eu e milhares de pessoas não sabiam sequer que existia, e que aparecia em quarto lugar nas pesquisas de intenção de voto, vai ao segundo turno com 23,05% dos votos válidos. Um sujeito cujo nome de campanha privilegia o seu cargo na segurança pública, desvelando uma modinha dos últimos anos, para angariar a simpatia da turma que acredita na violência como estratégia de coexistência social. Um fulano cujo material publicitário copiava o utilizado pelo atual presidente da República, o excrementíssimo. Dize-me com quem andas.

O sentimento é de nojo. Ficou claro que a direita em Belém, além de canalha como sempre, especializou-se na covardia: diz que vai votar nos candidatos da direita limpinha, mas vota mesmo no projeto que se apresenta alinhado à proposta fascista nacional.

Edmilson Rodrigues confirmou as pesquisas. Ficou em primeiro, com 34,26% dos votos válidos, portanto dentro da margem de erro. Com uma diferença de pouco mais de 11%, precisará trabalhar duro para se eleger, já que a máquina bolsonarista e o aparato evangélico vão tocar o terror nas próximas duas semanas. Há muito o que temer.

Priante ficou no lugar de sempre: segundo, terceiro colocado. Nunca passa disso. Não sei até quando esse inexpressivo deputado federal de carreira vai insistir em governar Belém. Ele perdeu o seu melhor momento, com o primo no governo do Estado e dispondo de ótima avaliação quanto ao seu mandato. Mas não transferiu voto. O resultado também confirmou as pesquisas... e o currículo do moço.

Os playba que se tornaram deputados estaduais catapultados pelo capital político e financeiro dos pais também malograram. Mas isso era sabido. A função desse tipo de candidatura não é se eleger, mas promover os nomes das figuras para eleições futuras. Aguarde 2022: vão tentar a Câmara Federal. A prefeitura de Belém e o governo do Estado devem estar nos planos, ou ao menos nos sonhos, mas de verdade apenas depois que derem um balão pelas esquinas de Brasília.

E os demais estavam ali cientes de que o resultado era isso mesmo. Exceto, talvez, Vavá Martins, que sempre pode contar com o rebanho para fazê-lo subir em seus projetos de poder. Se fosse um bom pastor, devia ficar na igreja, né?

Tenho ao menos a alegria de ver eleita a minha vereadora, Bia Caminha. Vai para a tenebrosa Câmara Municipal de Belém levando a voz das periferias. Espero que dê muito trabalho aos homens brancos endinheirados e aos lambaios do capital que andam por lá. 

Estamos longe da tranquilidade. Belém parece gostar de roleta russa.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Breve análise sobre um caso gravíssimo

 A pedido do grupo de pesquisa Rosas Aprisionadas, coordenado pela querida Profa. Juliana Freitas, gravei um vídeo tecendo algumas considerações sobre o assustador caso Mariana Ferrer. Pode ser assistido no seguinte link:

https://www.instagram.com/tv/CHRN4tOh8h1/?igshid=sjb2flfwhfho


Minha abordagem tem natureza penal e processual penal, por isso é apenas uma pequena fração de tudo que pode ser pensado sobre esse caso que, compreensivelmente, mexeu com os brios de todos aqueles que têm decência.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Aquela das felizes ideias

"Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada."

Henry Louis Mencken (1880-1956), jornalista estadunidense

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Embriaguez ao volante deve levar infrator à prisão

Foi publicada no Diário Oficial da União de 14.10.2020 a Lei n. 14.071, de 13.10.2020, que promove alterações importantes na Lei n. 9.503, de 1997 ― Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Uma das mais importantes, que pode afetar concretamente a vida de muitas pessoas, tem natureza penal.


Para entendermos melhor, já faz algum tempo que a legislação brasileira vem endurecendo a responsabilidade, tanto administrativa quanto criminal, por infrações às leis de trânsito. Atenção especial tem sido dada ao problema crônico da embriaguez ao volante. A questão atinge diretamente os arts. 302 e 303 do CTB, que tratam sobre homicídio e lesão corporal culposos, respectivamente, na condução de veículo automotor.

A Lei n. 12.971, de 2014, modificou diferentes tipos penais e criou hipóteses de aumento de pena para os delitos daqueles arts. 302 e 303, além de inserir uma forma qualificada de homicídio, ou seja, com pena maior, para a hipótese de o condutor estar sob o efeito de álcool ou substância capaz de provocar dependência. Posteriormente, a Lei n. 13.546, de 2017, aumentou ainda mais a pena, em caso de embriaguez, passando para os atuais 5 a 8 anos de reclusão, para o homicídio, e para 2 a 5 anos de reclusão, nos casos de lesão corporal grave ou gravíssima.

A lei publicada hoje inseriu no CTB uma norma que impede, nos casos de homicídio e lesão corporal culposos de trânsito, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. De acordo com o Código Penal, essa substituição seria possível, como regra, nos casos de crimes culposos.

Aos poucos, porém de forma clara e consistente, o legislador brasileiro está abdicando do tratamento mais brando dispensado aos casos de culpa, quando o tema seja embriaguez ao volante que deixa vítimas. Trata-se de óbvia concessão ao populismo punitivo, que viceja sem dificuldades em todos os espectros políticos, porque sempre capitaliza aprovação popular e, consequentemente, votos. Além disso, incorre no pecado tão antigo quanto o mundo de apostar na punição como forma de solução de conflitos, de modificação de comportamentos aversivos. Essa aposta tem malogrado em todos os seus contextos de aplicação, mas é uma opção mais simples do que modificar as estruturas sociais que levam ao surgimento desses conflitos e comportamentos.


As mudanças, que entrarão em vigor no dia 2.4.2021, prometem causar efeitos importantes, porque penas de reclusão podem levar o infrator ao regime fechado, em tese, mesmo quando inferiores a 8 anos e sendo o réu primário, desde que as circunstâncias concretas do caso o recomendem, o que sempre dependerá da discricionariedade judicial. E o sistema punitivo tende a se render ao mesmo populismo. 


Além disso, com a evidente intenção do legislador de responder ao problema com prisão, os juízes possivelmente se sentirão mais inclinados a decretar e a manter prisões cautelares. Por conseguinte, duas preocupações adicionais devem ser consideradas por quem realmente deseja o aprimoramento das relações humanas: o impacto que a novidade pode ter sobre a população carcerária e o risco de incremento da corrupção entre os agentes de trânsito e policiais.

Quem se contenta com leis mais duras e não pensa nas implicações está apenas fingindo ter preocupação com as vítimas e com o respeito às leis, exigência imprescindível de humanidade, a primeira, e de uma verdadeira república, de um verdadeiro Estado democrático de Direito, a segunda.


Nota originalmente publicada em http://www.silviamourao.adv.br/2020/10/14/embriaguez-ao-volante-deve-levar-infrator-a-prisao/

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Pergunta pra mim!

Nunca fui abordado por algum instituto de pesquisa, para me perguntar sobre intenção de voto. E eu realmente gostaria de participar. No final da manhã de hoje, achei que minha oportunidade chegara, mas não deu.

A pesquisadora disse que ainda precisava entrevistar uma pessoa, mas precisava ser um homem na faixa etária entre 33 e 44 anos. Completei 45 há menos de 3 meses, mas por causa disso eu não me encaixava no perfil procurado. A moça se desculpou pelo incômodo (incômodo algum) e seguiu seu caminho. Naquele calor do cão, ia de casa em casa procurando um respondente adequado. Pelo menos eu a ajudei a pular uma casa, pois sei que entre meus vizinhos da direita ninguém corresponde ao tipo procurado.

O episódio ao menos serviu para demonstrar que, ao contrário do que pensa muita gente desinformada, há sim credibilidade nas pesquisas de intenção de voto. Não me refiro, claro, àquelas pesquisas encomendadas, safadas na origem, que já ajudaram a eleger muita gente. Esse tipo de fraude ficou mais difícil, creio, tanto pela criação de maiores mecanismos de controle quanto pelos poderes fiscalizatórios da internet. Ocorre que há pessoas que duvidam da estatística em si mesma, isso antes mesmo da atual era do negacionismo científico. Por ignorância, naturalmente, pois não entendem como funciona.

Hoje, tive uma pequena demonstração de como a estatística, por meio de parâmetros de sexo, idade, condição financeira, nível de instrução, etc., vai desenhando um perfil da população investigada, que torna possível o recorte ser uma expressão mais ou menos fiel do todo. Já haviam me explicado isso, mas foi interessante ver a coisa funcionar, na prática.

Só espero que chegue o dia em que eu finalmente possa responder.

domingo, 4 de outubro de 2020

Breve sugestão aos advogados

 Na última semana, estive novamente na Turma Recursal dos Juizados Especiais, para fazer sustentação oral em processos que acompanho. Gosto de sustentar oralmente, tarefa que considero bem típica da advocacia. Também gosto da Turma Recursal, cujo ambiente, físico e humano, é mais informal e próximo.

Sessão iniciada, quatro advogados sustentaram antes de mim. Apenas um se despediu dos julgadores quando o julgamento de seu processo terminou. Ele teve sucesso parcial em sua pretensão. Todos os demais, ao verem malogrados seus pedidos, levantaram-se e saíram sem dizer uma só palavra. Notei isso no primeiro, mas pensei: "É um garoto. Coisas da juventude". Mas veio a segunda colega, que parecia estar na casa dos 30, e teve a mesma atitude. E depois daquele que se manifestou, por fim, o quarto advogado, também um rapaz com jeito de ter menos de 30, levantou-se e saiu como se estivesse só na sala.

Nesse momento, a juíza presidente comentou com seus pares que os advogados não lhes dirigiam a palavra se não vencessem a causa. Uma reclamação breve, mas justa. Eu, que raciocino e ajo como advogado, e não como juiz, pensei exatamente a mesma coisa. Quando fazemos sustentação oral, costumamos aguardar na tribuna o resultado do julgamento. Não houve uma só ocasião em que eu, ao ver finalizado o ato, não me dirigisse à corte agradecendo pela atenção que me foi dispensada e desejando um bom dia. Qualquer advogado deveria fazer isso e o motivo é muito simples: boa educação.

Pedir licença para entrar, cumprimentar, agradecer, dar explicações, desculpar-se se for o caso são atitudes que aprendíamos em casa, primeiro, e depois na escola. Ao menos na minha geração era assim. Não sei como está hoje em dia. Repassei essa lição para minha filha, hoje com 12 anos. Ainda adolescente, escutei que agir com educação é um dever, não um favor. Concordei com isso e sempre procurei agir assim, mesmo com raiva e mesmo que minha raiva fosse justa.

O Estatuto dos Advogados é uma lei que nos dá prerrogativas, tais como entrar e sair de locais onde trataremos de assuntos de nosso mister, sem precisar de autorização, e agir com independência na defesa de nossas causas. A independência pede altivez e energia. Mas eu realmente não consigo extrair daí que as regras de civilidade foram abolidas. E eu não gosto de estar em situações nas quais as regras de civilidade foram ignoradas.

Então meu conselho é bastante simples: caros colegas advogados, façam o que espero lhes tenha sido ensinado pela mamãe, talvez pela vovó, quem sabe pela tia do jardim de infância: peçam licença, cumprimentem, agradeçam, expliquem e desculpem-se, se for o caso. Isso não lhes diminui em nada o valor como profissionais. Ao contrário, segundo penso, isso lhes engrandece. Porque mostra maturidade e compreensão pelo funcionamento dos sistemas burocráticos. Maus julgamentos (se for essa a hipótese) se resolvem com recursos e até com protestos, no sentido técnico da palavra, aqueles que ficam consignados em ata. Não com raivinha de moleque pimbudo. Crescer é necessário.

Logo que passei no vestibular, e isso foi em 1992, conheci os célebres Mandamentos do advogado, de Eduardo Couture. O que mais me chamou a atenção foi o nono:

Esquece
A advocacia é uma luta de paixões. Se em cada batalha fores carregando tua alma de rancor, sobrevirá o dia em que a vida será impossível para ti. Concluído o combate, olvida tão prontamente tua vitória como tua derrota.

Aos 16 anos, não gostei desse conselho porque, no calor da necessidade de autoafirmação, quando eu achava que ia mudar o mundo, esquecer uma vitória me parecia impensável. Eu queria tripudiar um pouco do vencido. E fingir ignorar o elevado risco de estar no polo oposto. Hoje, entendo perfeitamente a lição do jurista uruguaio. Ele tem razão.

Advogue, faça o melhor que puder e, independentemente do resultado, siga adiante. Todos ganham com isso.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Pessoas que precisam ser conhecidas #2

Joshua Slocum (1844-1909), navegador e escritor canadense de nascimento, humanista, retratado no vídeo que nos serve de base como o maior marinheiro de todos os tempos, primeiro indivíduo a dar a volta ao mundo sozinho, navegando.


Não sou entusiasta de aventureiros. Mas fiquei encantado com os valores e a dignidade de Slocum, especialmente em um mundo que, quase 111 anos após sua morte, precisa mais do que nunca de valores e de dignidade.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Pessoas que precisam ser conhecidas

Maurice Hilleman (1919-2005), microbiologista estadunidense, o maior desenvolvedor de vacinas da História.



Sem espaço para os irresponsáveis que se opõem a vacinas, externo a Hilleman nossa gratidão.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Raciocínio singelo

Em matéria publicada há pouco, o portal Uol ― usando, claro, linguagem diferente  afirma que o Deus Mercado, a única entidade que deve ser ouvida quando se trata de políticas públicas, está irritado com aquele excremento que ocupa a presidência da República, e cujo nome não pronuncio, porque este, visando a reeleição em 2022, está se afastando da agenda neoliberal, que é a obsessão do ministro da Economia, Chicago boy e escroto Paulo Guedes. Eis o link da matéria: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/27/bolsonaro-agenda-liberal-guedes-desenvolvimentismo.htm

Vou-me permitir um raciocínio simplório, mas que realmente me parece lógico.

Se um candidato precisa se afastar do discurso neoliberal e adotar um tom de defesa do Estado assistencialista, como condição para se eleger, isso prova por A + B que a maioria da população brasileira, aquela que numericamente (embora não ideologicamente) decide as eleições, deseja que essas políticas assistenciais existam, e não as práticas neoliberais. A maioria da população, empobrecida de muitas maneiras diferentes, quer o programa de geração de renda, quer o microcrédito para o pequeno empreendedor, quer a escola e universidade públicas, que o Sistema Único de Saúde, etc. Ela não quer, embora talvez não saiba explicar isso, que o Estado se ausente e deixe os empresários resolverem tudo a seu bel prazer. Não quer a absoluta desregulamentação. Não quer ser exposta à tal liberdade de mercado, sem garantias.

Está provado, segundo entendo, que a ideologia neoliberal não serve ao Brasil, porque não traz desenvolvimento, nem igualdade, nem justiça. Por força de consequência, também está provado que quem se elege com um discurso e, no governo, pratica outro, comete um evidente estelionato eleitoral e deveria ser brindado, pelo eleitorado, com a derrota, o ostracismo e, quem sabe, medidas de responsabilização.

O Deus Mercado, auxiliado por uma malta hidrófoba que não arrefece sua crueldade, conseguiu usurpar o mandato de Dilma Rousseff em 2016 e colocou no posto, em 2018, aquele que estava, no momento, em melhor posição para afastar o PT. Mas eu desejo, sem querer incorrer em ingenuidade, que ele já tenha entendido que o capitão não sabe, não consegue e não pode governar. Com ele, ninguém conseguirá o que almeja  nem o mercado, pois países desenvolvidos não compram mercadorias de fornecedores sem responsabilidade ambiental, para citar apenas um exemplo.

O projeto alucinado de 2018 precisa acabar, o quanto antes, Há motivos para impeachment, há motivos para responsabilização criminal, mas não conto com nada disso. Ainda acho que a via da eleição, em 2022, segue sendo a opção mais firme, concreta e segura para se tentar resgatar o país. Mas não adianta esperar um ungido: quem quer que se eleja, estará abençoado por forças que não advêm do povo. No xadrez da realidade, há uma turma que não perde nunca.

Fiscais da "coerência"

 O oncologista Dráuzio Varella incomoda. Mesmo com sua postura contida, tornou-se um comunicador bem-sucedido, querido pelo grande público e, particularmente, dotado de credibilidade. Como médico e como escritor, tornou-se (não sei se intencionalmente) uma voz para um dos setores mais vulneráveis da sociedade: os presidiários. Mostrar empatia com a população carcerária não é o caminho mais seguro para conservar uma boa imagem perante o brasileiro médio.

Nos últimos dias, as redes sociais se encheram de postagens de gente reclamando que Varella passou o ano mandando as pessoas ficarem em casa, devido à pandemia do coronavírus, mas agora está incentivando as pessoas a serem mesários voluntários. Buscam minar sua credibilidade por suposta incoerência. 

Mas a quem interessa isso? Simples. Diante da calamidade trazida pelo coronavírus, Varella se colocou ao lado da ciência, obviamente. E ao fazê-lo, contrariou o discurso do governo genocida, que tem no negacionismo científico e no ódio aos pobres duas de suas características mais marcantes. Ridicularizar Varella é, portanto, uma estratégia da direita, que é composta basicamente por gente má, burra (ou sem receio de passar recibo) e que se comporta como bullies de ensino fundamental. É exatamente isso que estão fazendo: bullying com o médico que se opôs à cloroquina. Para piorar, gostam de frisar que Varella, lá por fevereiro, chamou a covid-19 de "gripezinha". Varella já explicou publicamente que cometeu um erro de avaliação, pediu desculpas pela manifestação e passou a recomendar todas as cautelas possíveis, inclusive o isolamento social.

Diante disso, por que a recomendação de ser mesário voluntário não é uma incoerência? A resposta, na verdade, é bem simples.

Todas as pessoas que defendem o isolamento social sempre ressalvaram a necessidade de preservar as atividades essenciais. Não podemos deixar de comprar comida e remédios, de manter em funcionamento certas atividades profissionais, etc. Alguém duvida que viabilizar as eleições seja uma tarefa essencial? Duvidar disso exigiria uma enorme capacidade de má-fé ou de ignorância, em níveis só alcançados por... apoiadores do atual governo.

Um mandato político tem data para acabar. Não podemos apenas prorrogá-lo, como se não fosse nada. Há muita coisa em jogo, especialmente para aqueles que, como nós, moradores de Belém, estão sob o jugo de um governo municipal pífio, frequentemente apontado como o pior da História. A manutenção do sistema democrático exige que as eleições aconteçam. E, para isso, precisamos de mesários. Daí que medidas foram tomadas, a maior delas sendo o adiamento das eleições. E a convocação dos mesários destaca que os voluntários não podem estar em grupos de risco para o coronavírus e que o treinamento será virtual. Já é bem difícil convencer pessoas a participar de uma tarefa tão inglória (muito trabalho, responsabilidade e riscos, com compensações menosprezadas). No contexto atual, a Justiça Eleitoral precisou apelar para um recurso mais forte: o carisma de Dráuzio Varella. Sobrou para o garoto propaganda.

Presto minha solidariedade a Varella. Se não está fácil existir neste país, pior ainda quando nos posicionamos em oposição à perversidade dessa gente ruim, que ora coloniza o governo federal, e seus apoiadores. Sem alternativa, resta persistir na lucidez, porque somente com comportamentos lúcidos poderemos resgatar este país algum dia.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

EGÍDIO



Egídio Machado Sales Filho PRESENTE!
Em: 03/08/2020

O escritório SÍLVIA MOURÃO ADVOGADAS ASSOCIADAS lamenta profundamente informar o falecimento do advogado EGÍDIO MACHADO SALES FILHO, ocorrido neste domingo (2.8.2020).

Os membros de nossa equipe tiveram em EGÍDIO, em diferentes épocas, um prestativo amigo, um notável colega de profissão, um professor de Filosofia do Direito na Universidade Federal do Pará, e de tantos outros saberes por onde passava, um mentor, um chefe no serviço público, que mantinha sua porta aberta aos colegas e ao povo.

Tivemos nele, sempre, um exemplo de cidadão, aguerrido nas lutas por justiça social, por igualdade de direitos e por assegurar voz aos vulneráveis. Mais do que palavras, EGÍDIO materializava suas convicções, por exemplo, advogando gratuitamente para famílias de vítimas da violência ― um papel que, em uma sociedade convictamente desigual, constitui um ato de doação.

Choramos hoje, porque estamos tristes com a sua partida abrupta. Mas honraremos sua memória e legado, lembrando que EGÍDIO era também um companheiro de gargalhadas, de brincadeiras sagazes e de acolhimento. Por ele, e pelos que ele defenderia, seguiremos perseguindo os sonhos que compartilhamos e brindando à vida, com um largo sorriso no rosto.

Ontem, precisei redigir a nota acima, que foi publicada no site de nosso escritório de advocacia (http://www.silviamourao.adv.br/2020/08/03/egidio-machado-sales-filho-presente/). Acabara de saber que nosso amigo Egídio falecera subitamente. Escrevi o texto supra, então, tentando falar também por meus colegas, que viveram experiências diferentes com ele.

Para mim, Egídio foi professor de Filosofia do Direito II, na Universidade Federal do Pará, na virada de 1996 para 1997. Foi um momento complicado. A disciplina deveria ter sido ofertada no nono semestre letivo, porém a carência de professores levou ao seu adiamento para o décimo, o último. Imagine a aflição que uma situação assim provoca na cabeça de concluintes. Sem falar que aumentou o número de obrigações naquela reta final, pois tínhamos uma disciplina a mais, por sinal cursada no turno da tarde (eu era da manhã). Além disso, estávamos com o calendário acadêmico arrasado por uma longa greve ocorrida em 1996. Nosso curso deveria terminar em dezembro daquele ano, mas nossa última aula ocorreu em 6 de março de 1997.

A última aula, a última obrigação acadêmica, foi justamente com Egídio.

Nosso curso não foi nada regular. Egídio estivera profundamente envolvido com a campanha de Edmilson Rodrigues a prefeito de Belém. Edmilson foi eleito e Egídio se tornou secretário de Assuntos Jurídicos. O resultado disso foi que ele ministrou poucas aulas e aplicou uns trabalhos que precisamos desenvolver em grupos, às cegas. Recordo-me das reuniões para tentar entender os textos requisitados. Estavam em Língua Portuguesa, mas eram tão incompreensíveis quanto sânscrito. Imagine concluintes de Direito, preocupados com formatura, conclusão de estágio, empregabilidade, vida futura, etc., tendo que digerir, fora da época correta e por conta própria, uns textos clássicos. Em caso de insucesso, a consequência seria, somente, não se formar. Povo da minha equipe se entreolhava e ria, mas de nervoso.

Passamos o semestre inteiro sem a devolutiva das avaliações. E assim chegamos ao dia 6 de março de 1997, último do calendário acadêmico, sem saber absolutamente nada sobre nosso futuro. Egídio confirmou aula para aquela tarde e avisou que entregaria os resultados. Quem não estivesse aprovado faria prova naquela mesma oportunidade. Ele apareceu, com seu jeito bonachão, mas acho que estava preocupado naquela tarde. As turmas reunidas naquela disciplina especial continham umas figuraças raras e os caras, sabendo que Egídio adorava uma bebida, levaram uma caneca de cerveja! Egídio ficou super sem graça. Sabia que estava ali como professor. Mas cedeu à pressão e tomou um gole da cerveja. Um só, mas rendeu gritos de comemoração. Então entregou os resultados. Dois alunos precisaram fazer prova final. Os demais, eu no meio, foram aprovados. E, com isso, estavam integralizados os nossos créditos. Podíamos nos formar. Imagine a emoção para aquele bando de garotos.

Houve festa depois, pela conclusão do curso. E a vida seguiu. Quatro anos mais tarde, meu caminho cruzou o de Egídio novamente, quando fui nomeado para o cargo em comissão de Procurador Jurídico do Município de Belém. Ele, secretário, era o chefe. Muitas vezes precisei discutir, com ele, os termos dos pareceres que elaborava na Procuradoria Administrativa. Ele tinha muita responsabilidade com o que assinaria. Mas nem por isso deixávamos de dar boas gargalhadas naqueles encontros. Em um deles, agradeci por ter-me aprovado em Filosofia do Direito. Eu realmente não sabia como consegui e acho que foi gentileza do professor. Acho que o deixei sem graça com o comentário.

Fiquei na secretaria por pouco mais de dois anos e saí para me tornar assessor no Tribunal de Justiça do Estado. Mas ainda tive uma última relação com Egídio: fui professor de seu filho Lucas, um rapaz maravilhoso. Nunca mais o vi, algo que lastimo muito. Mas sei que ele sempre esteve firmemente ligado aos colegas advogados do escritório para onde voltei em 2015, nos campos pessoal e profissional. Ou seja, sempre esteve presente. E sempre estará. Porque Egídio é dessas pessoas que, quando partem, deixam um legado, não apenas palavras.

Um brinde, Egídio. Tudo valeu muito a pena.

sábado, 1 de agosto de 2020

Tanto quanto os demais

O mês de agosto sempre padeceu de mau agouro por culpa de uma simples rima tosca: "agosto, mês do desgosto".

Falando sério, se pensarmos na experiência dos últimos meses, todos eles podem ser facilmente associados a muito desgosto. Por conseguinte, está na hora de superarmos o preconceito e de deixarmos que o oitavo mês do ano cumpra o seu papel.

Em todo caso, boa sorte para nós.

Ser livre e ter respeito absoluto pela vida

O vídeo abaixo me era recomendado pelo algoritmo do YouTube de forma recorrente e eu, sabe lá por qual razão, deixava passar. Nos últimos dias, comecei a me interessar pelos ótimos vídeos do canal da BBC Brasil e hoje, finalmente, decidi conhecer a história da família que virou fumaça.

Impossível, impossível não sofrer com a narrativa de Andor Stern, judeu brasileiro, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. Impossível, também, não ficar impressionado com a serenidade com que ele faz seu relato, sem transparecer ódio ou mágoa, enfatizando a imensa sorte que acredita ter por... estar vivo e ser livre. E, por liberdade, ele entende, simplesmente, poder ir para qualquer lado sem ser impedido.

Sensação semelhante tive ao ler o livro autobiográfico O pianista, de Wladyslaw Szpilman (1911-2000), pianista polonês que teve sua obra adaptada para o cinema, com o mesmo título (dir. Roman Polanski, 2002). Os fatos descritos são horrorosos por si sós, mas a narrativa pode, por incrível que pareça, ser desprovida de rancor e enfatizar a humanidade que nós, e não os outros, podemos desenvolver.

Gostaria de compartilhar o vídeo, pois sinto que, ao vê-lo, alguma coisa boa emerge em nós, se estivermos dispostos.


Triste é pensar que, voluntariamente, renunciamos à experiência histórica e nos conduzimos à barbárie. Mas não quero pensar nisso agora. A proposta desta postagem é enfatizar o que resulta de positivo mesmo de um enorme trauma. Ou, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, deixar que da hora mais triste surja outra, a mais bela.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Afinal, qual é o problema da rede?

Como não temos nenhum problema sério a resolver no país, o assunto que eclodiu nas redes sociais ontem e, hoje, ganhou a mídia convencional foi o caso do advogado Marcus Albuquerque, que participou de uma sessão de julgamento da 4ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia deitado em uma rede.


O vídeo divulgado mostrou um trecho curtíssimo do ato judicial e  vejam que interessante , considerando apenas o que vimos, nenhum dos juízes reclamou da conduta do advogado. Ele se dirigiu normalmente aos magistrados e, segundo reportagem que li, conseguiu provimento parcial ao recurso de sua constituinte. 

Afinal, o que faz com que um caso desses se torne notícia? Especulo que o fato de o episódio ter ocorrido na Bahia seja uma primeira explicação, dado o estereótipo do baiano como preguiçoso (algo que, para mim, não merece seguimento). O segundo motivo deve ser a suposta violação de protocolos comportamentais perante o Poder Judiciário. Este é o ponto que eu gostaria de enfrentar.

De saída, e sendo preciosista, ressalto que não existe nenhuma regra sobre participar de sessões de julgamento deitado, em uma rede ou seja onde for, simplesmente porque todos os protocolos consideram os atos judiciais como presenciais. Não passou pela cabeça de ninguém, nem quando começou a se discutir sobre atos por videoconferência, há alguns anos, que um dia seríamos forçados a ficar em nossas casas e isso afetaria o modo como as pessoas se apresentam publicamente. Em não havendo regra específica, resta questionar o ocorrido com base no bom senso.

O problema é que bom senso é algo subjetivo. Para piorar, o brasileiro médio relaciona noções como bom comportamento e respeito a padrões nobiliárquicos, empolados, solenes e severos. Em bom português, rapapés e salamaleques. Firulas. Asneiras. Já tivemos demonstrações disso aqui no blog, em estéreis discussões sobre vestimentas, pois há quem ache que advogado sem terno está faltando com o respeito ao judiciário, sem falar nos imbecis que, diante do meu argumento de que terno não deveria ser obrigatório, em cidades de calor lancinante como Belém, respondem dizendo que, daqui a pouco, iremos trabalhar de sunga. Isso nem merece resposta.

No caso ora comentado, só vemos a cabeça do advogado, apoiada em um travesseiro, em sua rede. Não sabemos como está vestido. Mas sabemos que ele se dirige respeitosamente aos magistrados. Faz o que deveria fazer. A única questão é que está deitado. E daí? Não vemos nenhuma atitude grosseira ou hostil, incapacidade técnica, nada. Tudo nos conformes. Pessoalmente, prefiro um bom advogado deitado na rede (o que também adoro fazer, quando em repouso) a um engomadinho mal-educado, arrogante, muitas vezes incompetente, porém metido em um reluzente terno caro, tendo ao fundo a parede de vidro de seu vistosa sala comercial ou o clichezão das prateleiras cobertas de livros.

Nos últimos meses, o isolamento social popularizou as reuniões on-line e, em consequência, temos visto uma profusão de gafes. É gente sem camisa, totalmente pelada, soltando flatulências, desembargador dormindo na sessão (isto, convenhamos, não é novidade da pandemia), etc. Mas nem estou preocupado com as gafes. O meu horror é às agressões.

Dois dias atrás, o reitor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro chamou de filha da puta uma pró-reitora que pedia o adiamento da reunião. Diante da reação compreensivelmente irada dos professores, desculpou-se imediatamente, dizendo que seu comentário fora "pra lá de infeliz", mas antes disse que o microfone estava aberto. Ele se desculpou porque reconheceu a má conduta ou apenas porque foi flagrado, ao esquecer o áudio aberto?

Na mesma quarta-feira (29), o desembargador José Manzi, da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, disse "isso, faz essa carinha de filha da puta", referindo-se à advogada responsável pela sustentação oral, o que despertou nota de repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina, do Instituto dos Advogados de Santa Catarina e da Associação Catarinense dos Advogados Trabalhistas.

Procurando, encontraríamos outros casos sem dificuldades. Referi os dois que me chegaram via WhatsApp quase ao mesmo tempo. E, por sinal, gostaria de destacar um aspecto que merece especial atenção: em ambos, tivemos homens em posições de poder ofendendo mulheres, em ambiente profissional, sendo que a agressão tem conotação sexual. Sintomas recorrentes de uma sociedade misógina, autoritária e que se recusa a reconhecer a dignidade do outro. Mesmo que certas posições, como a de reitor, sejam passageiras. 

Ao fim e ao cabo, o problema não é a pandemia nem as tarefas on-line. A questão continua sendo a mesma de sempre: as pessoas que somos, a sociedade que somos. Pandemia e internet apenas desnudaram o verdadeiro monstro.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Pensata

"De tudo o que nos incrimina, o que nos condena é a mudez."

Cinthia Kriemler, escritora

sexta-feira, 17 de julho de 2020

A beleza da resiliência

Eu realmente não gosto de música em estilo gospel. Todavia, durante a temporada 2018 do reality The voice, o original, o cantor Kaleb Lee interpretou "It is well with my soul". Foi quando conheci a canção e ela realmente me cativou. Talvez porque estar com a alma em paz seja uma tarefa tão urgente quanto difícil de realizar.

Passado todo esse tempo, digitei o título da canção no Google para ver o que aparecia e me deparei com a narrativa de sua origem na Wikipedia. Fiquei arrepiado.

O poema foi composto pelo advogado presbiteriano Horatio Gates Spafford (1828-1888) em 1873 e recebeu a melodia criada por Phillip Bliss em 1876. Trata-se de uma composição antiga, portanto muito anterior à mercantilização da religião. 

Sua origem tem a ver com uma sucessão de tragédias vividas por Spafford, iniciadas com a morte de seu filho (1871). Naquele mesmo ano, o "Grande incêndio de Chicago" consumiu todo o investimento que ele fizera em imóveis na cidade, arruinando quase que totalmente as suas finanças. Em 1873, eclodiu grave crise econômica. Naquele ano, Spafford decidiu passar férias com a família na Inglaterra, mas mandou esposa e filhas na frente, ficando para resolver compromissos. O navio SS Ville du Havre abalroou outra embarcação e foi a pique, matando 226 pessoas, inclusive as quatro filhas do casal (Anna, Margaret, Elizabeth e Tanetta). Anna Turbena Larsen, sua esposa, sobreviveu. Spafford então viajou para encontrá-la e, quando seu navio passava próximo ao local onde as filhas morreram, ele compôs o hino de confiança em Deus.

Os Spaffords seguiram a vida e tiveram outros três filhos, sendo que o menino Horatio morreu de escarlatina aos 4 anos. A família emigrou para Jerusalém em 1881, com amigos, e lá fundaram a Colônia Americana, uma organização filantrópica plurirreligiosa. Durante a I Guerra Mundial, exerceram um intenso serviço de assistência aos pobres.

A canção aqui referida, sendo uma composição centenária, já teve inúmeras gravações (e sofreu alterações no texto original). Abaixo, ofereço uma execução de grupo vocal, que achei muito condizente com o tema espiritual. No mais, a resiliência é mesmo uma capacidade bela e poderosa, que traz grandes benefícios aos que conseguem alcançá-la.


When peace like a river
Attendeth my way
When sorrows like sea billows roll
Whatever my lot
Thou hast taught me to say
It is well, it is well with my soul

It is well (it is well)
With my soul (with my soul)
It is well, it is well with my soul

And Lord haste the day
When my faith shall be sight
The clouds be rolled back as a scroll
The trump shall resound
And the Lord shall descend
Even so, it is well with my soul

It is well (it is well)
With my soul (with my soul)
It is well, it is well with my soul

It is well, it is well with my soul

A versão de Kaleb Lee, que me apresentou a canção: https://www.youtube.com/watch?v=x2-qwjCZUx4

Clarice tem razão

Imagem obtida em https://br.pinterest.com/pin/179229260157146351/

Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter... calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderás julgar. Cada um tem a sua própria história. Não compare a sua vida com a dos outros. Você não sabe como foi o caminho que eles tiveram que trilhar na vida.

Clarice Lispector (1920-1977)

As irretocáveis palavras de Lispector ficam ainda mais belas quando declamadas por Maria Bethania, que tem nela e em Fernando Pessoa suas principais referências poéticas.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Pequena lição de segurança no trabalho

A obra de uma clínica está quase concluída, aqui às proximidades de casa. Parado no sinal fechado, olhei para o lado e vi isto:


No alto de um andaime sem qualquer amarração, um homem desprovido de equipamentos de proteção individual pintava a parede, calculo que a pelo menos 10 metros de altura. Apoiava-se em duas tábuas. No momento em que fiz o registro, um segundo homem subiu para levar uma terceira tábua, a fim de aumentar a área disponível para pisar. Este segundo homem usava sandálias que, como bem sabemos, podem se soltar e, por isso mesmo, são proibidas até para conduzir veículos automotores.

Pena que a foto não mostre, mas havia, sim, um elemento de segurança: o segundo homem usava máscara! Um esforço para não morrer, de covid-19, ao menos.

PS ― Na eventualidade de alguma coisa despencar ― o rolo de pintura, o galão de tinta, o pintor, etc. ― havia, sim, uma boa chance de cair para além dos limites da clínica, sobre a calçada, atingindo um transeunte. Em caso de sinistro, vale lembrar que a clínica ainda não está funcionando, então seria aquela coisa romântica de sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar.

sábado, 11 de julho de 2020

Pensamentos em um sábado qualquer

Eu me recordo muito bem de 2018, com tantas pessoas dizendo "não temos opções para votar" e, no segundo turno, afirmando que os dois candidatos eram iguais, de modo que tanto fazia vencer um ou outro. Para alguns, minha perplexidade ainda perguntou se realmente acreditavam que Haddad era equivalente ao outro. Responderam-me que sim.

Cínicos. Mentirosos. E covardes, porque nunca tiveram a hombridade de reconhecer a verdade, mesmo agora.

A maioria das opções nos levaria, sim, a um governo de homens brancos e ricos, com discurso "liberal" para a economia, o que implica a implosão das normas de proteção social do trabalhador e do meio ambiente, à carência de políticas contra a desigualdade em suas diversas faces e, mesmo, à manutenção de uma agenda moral conservadora. Mas qual dentre os outros nos colocaria em um cenário em que:

  • a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos viu Jesus Cristo, o próprio, subir em uma goiabeira, mas não viu nenhuma política pública para promover minimamente os temas em sua pasta, no país com o maior número de assassinatos de mulheres, LGBTQI+, etc., no mundo?
  • o ministro da Justiça e Segurança Pública era um juiz federal contumaz em cometer violações expressas à Constituição e à legislação penal e processual penal, cujo maior feito foi ajudar a eleger o chefe e que admitiu publicamente atos ilícitos (como o pedido de pensão, pois abriu mão da carreira na magistratura)?
  • o Ministério da Cultura foi rebaixado e, para a secretaria em apreço, foi designado um entusiasta do nazismo que fez questão de demonstrar isso?
  • o Ministério da Saúde não segurou titulares porque estes contrariavam o chefe ao tentar seguir, minimamente, a ciência, além de ficar vago por dois meses, em meio a uma pandemia global?
  • a aludida pandemia é gerida com o fomento, pelo chefe do Executvo, de condutas que colocarão em risco a segurança e a vida das pessoas de um modo geral, além de que nem 30% do orçamento disponível para o combate à doença foi executado?
  • os ministros da Educação são figuras grotescas, de comportamento infantil e violento, com políticas voltadas à substituição da educação pública por um modelo religioso, com direito a disciplina física de crianças?
  • o presidente da Fundação Palmares é um dos mais aguerridos negacionistas das agendas do movimento negro?
  • o ministro das Relações Exteriores é um terraplanista, cujas declarações absurdas levam o Brasil ao ridículo internacional?
  • o governo tem um guru intelectual, que é um sujeito de trajetória pessoal irregular, a começar pelo modo como criou os filhos, sem formação alguma que se sustente, e que se limita a proclamar conspirações, negar a ciência e ofender a tudo e a todos, com uma obsessão incontrolável pelo ânus, e que mora nos Estados Unidos, segundo consta, por problemas legais no Brasil?
  • o governo foi transformado em um parquinho de diversões pelos filhinhos do presidente?
  • o presidente e seus familiares são umbilicalmente vinculados a milícias do Rio de Janeiro?
  • o presidente ofende, ameaça e intimida a imprensa, instigando apoiadores contra os profissionais do setor, além de promover ostensiva campanha de descrédito a todas as instituições democráticas nacionais, mas ao mesmo tempo governa por tuítes?
A lista é interminável. Nem dá para pensar em tudo, na verdade. Estou aqui pensando em notícias mais recentes, em meio a esse cansaço absurdo provocado por tanta violência e obscurantismo.

Gostaria que alguém me dissesse em qual outro cenário estaríamos vivendo horror semelhante. Convença-me.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Juízo final

Em 1973, o sambista carioca Nelson Cavaquinho (1911-1986) lançou seu terceiro álbum, que levava o seu nome. Ali estavam reunidos seus trabalhos que se tornaram mais célebres. A faixa de abertura era Juízo final, uma parceria com o compositor Élcio Soares.

Dois anos mais tarde, a grande Clara Nunes (1942-1983) gravou a canção em seu álbum Claridade, que se tornou o seu maior sucesso comercial. Há quem considere a gravação de Clara a versão definitiva desse belíssimo samba, que ao longo dos anos ganhou inúmeras releituras, nas vozes de diversos artistas. Ao que parece, a letra simples e curta era realmente inspirada e inspiradora.

Como no Brasil da década de 1970 não existiam videoclipes, compartilho um registro televisivo em que Clara Nunes divide o palco com Alcione (1979), a fim de lhes oferecer uma perspectiva dessa versão mais elogiada:



O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente

É o juízo final
A história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer

Mais de quatro décadas se passaram e eis que, de repente, o clima difícil e em muitos sentidos adoecido experimentado por este país inspirou outra artista a regravar a famosa canção. Ninguém menos que a nossa mulher do fim do mundo, Elza Soares, recém entrada em sua nona década de vida, acabou de lançar o single com a sua versão de Juízo final. Na verdade, graças ao YouTube fiquei sabendo que La Soares interpretou esta canção há dois anos, em dueto com a cantora Pitty, com arranjo orquestrado, durante homenagem a Marielle Franco, àquela altura assassinada há três meses. Novidade, portanto, é uma gravação em estúdio.

Puristas e chatos (o que dá basicamente no mesmo) podem desgostar e reclamar, mas nossa grande diva seguiu os caminhos trilhados em seus últimos discos e modernizou a canção, baseando-a no rock e enchendo-a de enfeites eletrônicos. De quebra, ainda veio com um videoclipe animado muito bacana.

Eu adorei e, honestamente, que me perdoe Clara Nunes, a versão atual tem mais a ver comigo. E é preciso coragem para bulir tão drasticamente com um clássico desse porte. Com vocês, um novo Juízo final:


De novo e como sempre, parabéns, Elza.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Como se fora um jornal vespertino

1

4 horas e 35 minutos. Foi o tempo transcorrido entre a publicação de minha postagem sobre o Prof. Hugo Rocha e a manifestação de um leitor, por sinal um querido amigo, viabilizando o contato. Já tenho como acessar meu mestre. A internet faz maravilhas, quando as pessoas não estão empenhadas em usá-la para o mal.

2

O calor excessivo provoca aumento na evaporação, saturação mais rápida da umidade do ar e, consequentemente, chuva. Esta última parte não estava funcionando. Esta tarde, finalmente, após dias e noites de calor inaceitável, choveu convincentemente sobre Belém. Misericórdia. Espero que o aguaceiro não tenha causado prejuízos, mas o fato é que estávamos precisando desse alento.

3

Embora milhões de brasileiros tenham feito uma opção por renunciar a elas, os funcionários do Banco Mundial estão demonstrando virtudes altamente urgentes: coerência e decência. Enviaram uma carta a seus superiores, opondo-se à nomeação, como diretor, de um dos indivíduos mais repugnantes oriundos do governo brasileiro, pelo menos até que certas posturas sejam revistas. Deixam mensagem clara: se querem ser a maior instituição financeira de desenvolvimento do mundo, seus integrantes devem ter integridade pessoal e comprometimento com as populações a serem atendidas, notadamente indígenas. Eu não passo pano para bancos. Meu elogio vai para esses funcionários. Inspirador.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Salve, Prof. Hugo Rocha!

Eu ainda me recordo de que hoje é dia do aniversário do meu antigo professor de direito penal, orientador de monitoria e corresponsável pela carreira que eu teria ao longo de 20 anos. Também me recordo de que ele nasceu no Município cearense de Russas e que trabalhou muitos anos na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), além de exercer o magistério. E que publicou dois livros, um deles sobre a catedral de Belém.

O que eu não me recordo é o número de anos que não o vejo. E isso me entristece. Homem das antigas, não é possível encontrá-lo pelas redes sociais ― ainda mais hoje em dia, em que eu mesmo já não tenho paciência para o mundo leviano das redes sociais. Fiz uma busca por seu nome no Google e não encontrei referências.

Muitos anos atrás, encontramo-nos casualmente pela rua e ele sugeriu que um dia nos reuníssemos para conversar sobre o que havia mudado no direito penal naqueles anos. Para dois professores da área, tal encontro faria todo o sentido. Mas nunca ocorreu. Foi como aquele "passa lá em casa", que é mais um modo polido de interagir. Ele sempre foi bastante reservado e eu, ainda jovem, comecei um processo de isolamento que se agrava cada vez mais. Então estou achando que o evento não sairá da intenção, mesmo. O que é uma pena. Hoje, quando tudo está tão transformado, eu aproveitaria mais do que nunca a oportunidade de receber mais algumas lições do velho mestre Hugo de Oliveira Rocha, a quem respeito e admiro.

Se alguém por aí ler estas palavras e souber como chegar ao meu querido professor, por favor, faça a gentileza de me por em contato com ele. Caso ele queira, obviamente. Vai chegando uma hora na vida em que começamos a prezar de um jeito inédito as memórias que temos. Em algum momento, elas serão tudo o que teremos.

Feliz aniversário, Prof. Hugo Rocha. Celebro e honro o seu nome, com gratidão por tudo.