terça-feira, 17 de novembro de 2020

Semiótica de painel e parabrisa

Gostaria de oferecer-lhes uma breve especulação semiótica acerca de um tema recorrente nas redes sociais. Digo especulação porque não sou especialista neste campo, então estas mal traçadas linhas não vão além de umas poucas leituras e algumas experiências de observação comportamental ao longo da vida.

Semiótica, em apertadíssima menção, é o estudo da construção de significados no processo de comunicação. Tem interesse direto para a Linguística e para a Filosofia, sendo o termo atribuído ao filósofo inglês John Locke (1632-1704), originado na raiz grega semeion (signo). Um signo é uma ideia que contém uma mensagem ou fragmento dela, composto por um significante (seu elemento material, como uma palavra, um gesto, etc.) e um significado, que varia conforme o contexto. É algo lindo e instigante, mas fiquemos por aqui. 

Painel é um termo associado à arte pictórica, mas aqui me refiro ao componente dos veículos automotores, que se situa dentro do habitáculo, à frente dos assentos dianteiros, contendo diversos equipamentos essenciais à dirigibilidade do veículo e ao conforto e à segurança dos passageiros.

Parabrisa é a peça de vidro que, instalada à frente do veículo, permite a visão do meio exterior, porém protegendo do vento (daí o nome) e da chuva, que dificultariam ou até impediriam o ato de dirigir.

Pronto: acabei de colocá-los sentados no interior de um automóvel, olhando para a frente. Agora vamos à semiótica. Vocês já devem ter visto, pelas redes sociais, imagens como esta abaixo:


Assumo a premissa, tão decantada, de que as redes sociais são a válvula de escape de pessoas cuja percepção de autovalor depende da aprovação alheia. Isto pode explicar porque elas são ilhas da fantasia, repletas de registros de felicidade, beleza, riqueza, sucesso e autorrealização. Nesse sentido, uma imagem como esta, embora quase sempre publicada como se fosse um registro espontâneo e despretensioso de um momento absolutamente corriqueiro da vida, segundo compreendo, destina-se a transmitir ao menos uma, senão mais de uma, dentre as perspectivas abaixo:

A marca do veículo, que se encontra no volante. É a intenção velada de ostentar riqueza, a depender, naturalmente, de qual seja essa marca. Não impressionamos com um Volkswagen, mas Audi, Mercedes, BMW, Land Rover e Jaguar já enchem os olhos. Cito marcas que vejo nesta cidade.

A tela da central multimídia, que exibe a música que supostamente está sendo ouvida pelo condutor. É a deixa da ostentação cultural, que pode conduzir a dois caminhos diametralmente opostos: 

  • Se colocar estilos musicais havidos por sofisticados, de acordo com os padrões hegemônicos, o sujeito quer exibir sua pretensa superioridade intelectual, seu refinamento e erudição. Quem não gosta do estilo é menosprezado por sua indigência cultural. (PS - Quem nunca viu um pseudointelectual dizer que gosta de jazz?)
  • Se colocar estilos musicais popularescos, o indivíduo quer vangloriar-se de ser descolado, livre, de não se importar com a opinião alheia, de não ceder a pressões e de privilegiar a alegria e o bem-estar. Quem não gosta do estilo é menosprezado por sua arrogância. (PS - Sabe aquela canção cuja letra parece ter sido escrita por um bebê, com música dançante e intensa exploração comercial? Pois é.)

Duvido bastante que o autor de publicações de painel de carro exponha uma música escolhida simplesmente porque gosta dela. Foi o que tentei fazer. Eu realmente escuto habitualmente heavy metal e gosto das bandas alemães, porque estudei alemão e isso me ajuda a manter contato com o idioma. Em minha tela você vê "Sie tantz allein" ("ela dança sozinha"), da banda de metal medieval Saltatio Mortis, que escuto com frequência (por sinal, sempre me lembrando de minha bailarina favorita, Ana Luiza Crispino).

O local por onde o sujeito está passando. E finalmente, porém não menos importante, o mundo exterior ao veículo, embora seja o elemento que menos conote ostentação, nas publicações que costumo ver, também pode ser usado com essa finalidade, pois o ambiente pode ser requintado, exclusivo ou exuberante. O sujeito escreve "mais um dia de trabalho", para se vender como profissional batalhador em um dia perfeitamente comum, mas quer mesmo ostentar sucesso, por exemplo exibindo um ambiente que cause admiração, por seu luxo ou tecnologia. Ou então o sujeito quer mostrar a sua profunda simplicidade e amor à natureza, mas posta aquela praia estonteante que por acaso denuncia que fez uma viagem cara.

É isso. Símbolos.

Convido você, eventual leitor, a opinar sobre meus juízos de valor nesta postagem que, como tudo mais, também possui suas intencionalidades ocultas. Mas não, não possui nenhum destinatário específico. 

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