domingo, 23 de outubro de 2016

Amanda Knox

Após o inesperado e estrondoso sucesso da premiada série documental Making a murderer (2015), a Netflix percebeu que documentários sobre casos criminais de grande repercussão implicam sucesso garantido. Assim, no último setembro, foi lançado Amanda Knox (2016), o qual retrata um rumoroso homicídio ocorrido em Perúgia, Itália, no ano de 2007, amplamente coberto pela imprensa internacional. Eu me recordo vagamente das reportagens da época.

A vítima foi a estudante inglesa Meredith Kercher (21), estuprada e morta a facadas em seu quarto, em uma casa que dividia com três colegas, uma delas a estadunidense Amanda Knox (20), que se tornou a principal suspeita do crime, juntamente com seu namorado, o italiano Rafaelle Sollecito. Posteriormente, foi incluído na acusação o costa-marfinense Rudy Guede, único efetivamente condenado e que cumpre pena até hoje.

Mas ao contrário do seriado sobre Steven Avery, produzido a partir de quase duas décadas de material audiovisual sobre as investigações e julgamentos, apresentado em 10 episódios, a atual produção consiste em uma peça única, com uma hora e meia de duração, de conteúdo mais jornalístico do que investigativo, centrada principalmente nos depoimentos de quatro pessoas: Knox, Sollecito, Giuliano Mignini (chefe da acusação) e Nick Pisa, um jornalista inglês que teve especial destaque na cobertura do caso.

Também ao contrário da primeira série, claramente construída para apresentar o réu como vítima de uma conspiração do sistema penal do Condado de Manitowoc, a atual não parece nos induzir juízos de culpa ou inocência. A morte de Meredith nunca foi completamente esclarecida e a série não pretende interessada em tirar coelhos da cartola.

No entanto, após ver a série, formulei algumas impressões, que gostaria de compartilhar.

Em qualquer lugar do mundo, a polícia se permite ser refém da imprensa e da opinião pública, passando a dirigir sua conduta por uma busca mais ou menos desesperada por fornecer uma resposta à sociedade, o mais rápido possível.

Quando a polícia acreditou ter solucionado o caso, já tendo efetuado três prisões (uma das quais de Patrick Lumumba, que foi totalmente inocentado em três semanas), houve a previsível entrevista coletiva, na qual as autoridades se mostraram claramente defensivas. Elas temiam ser julgadas pelo resto do mundo, já que o caso estava sendo freneticamente coberto pela imprensa internacional, então o momento foi de regozijo porque a polícia local conseguira encerrar o caso em poucos dias.

No entanto, anos depois, peritos independentes deixaram claro que a investigação, inclusive a parte da perícia forense, fora caótica e inconclusiva, marcada por erros grosseiros e primários. A perda de credibilidade das provas foi justamente o que conduziu à final absolvição de Knox e Sollecito, com direitos a críticas contundentes por parte do judiciário.

Usualmente, o que se dá é isto: a polícia, excessivamente permeável a paixões, assume uma postura de legitimar o próprio trabalho. A tão decantada busca da verdade encobre, na verdade, uma ânsia de provar que o suspeito já apontado é mesmo culpado. Ninguém quer assumir erros, então não se investigam outras possibilidades. Quase toda investigação policial não vai além de um esforço de provar aquilo em que já se acredita, mesmo que isso vá destruir algumas vidas inocentes. Quem se importa?

Um detalhe adicional: quando Knox estava na penitenciária, foi submetida a exames médicos. As autoridades mentiram que ela estava infectada por HIV, para desestabilizá-la emocionalmente. Ela escreveu um diário, revelando seus temores, que foi vazado para a imprensa e ajudou a construir a sua imagem de psicopata depravada. Podemos aceitar uma polícia que atue dessa forma?

Em qualquer lugar do mundo, o Ministério Público cede facilmente à posição de heroi e redentor da sociedade ofendida.

Giuliano Mignini foi entrevistado pelos documentaristas. É de sua própria boca que escutamos que começou a desconfiar de Knox por seu comportamento nas primeiras horas após a descoberta do cadáver. Ela e o namorado "se consolavam de maneira imprópria", trocando beijos. As imagens aparecem e não mostram nada demais. Ele também confessa sua paixão por investigações, então estar naquele turbilhão pode ter sido a realização de um sonho infantil. Ele afirma que o cadáver fora coberto, o que indicaria a participação de uma mulher, pois um homem jamais pensaria em algo assim. Fuééén!!! Errado! Cobrir o corpo pode ser um indicativo de remorso, mesmo em criminosos homens. Além do mais, tudo isso são tendências, não certezas.

Mais adiante, Mignini declara sua satisfação com o fato de andar nas ruas e ser cumprimentado e parabenizado por desconhecidos, após a condenação dos réus. Um vaidoso discreto, mas ainda assim vaidoso. Anos depois, quando os réus já estavam absolvidos, foi chamado de "ser maligno" por uma mulher. Mas ele tinha uma resposta para isso: as famosas técnicas de neutralização. Ele não parece incomodado com o fato de dois jovens terem ficado quatro anos presos (Sollecito ficou seis meses na solitária). Acusadores nunca assumem responsabilidade por eventuais erros.

Em qualquer lugar do mundo, diante de um crime brutal, a imprensa se comportará de modo sensacionalista e irresponsável, produzirá efeitos sobre a opinião pública e não assumirá responsabilidade alguma por isso.

A influência perversa da mídia sobre o campo penal é um dos assuntos mais em voga nos estudos criminológicos dos últimos anos. No caso Kercher, um dos jornalistas mais atuantes foi Nick Pisa, que não teve o menor pudor de ceder entrevista aos documentaristas, mostrando-se acintosamente leviano, debochado e insensível. Ele declara que não acredita em "julgamento pela mídia". Claro, ele é um dos sujeitos que se alimentam dessa indústria pornográfica.

Jornalistas sempre se escondem atrás da alegação de que apenas relatam fatos, com objetividade e isenção. É, provavelmente, a segunda maior mentira do mundo (não me perguntem qual é a primeira). Com essa prática amoral, fazem o que querem e se escusam de qualquer consequência, ainda que apenas ética. No entanto, Pisa informa que os repórteres caçaram na internet imagens dos réus e divulgaram as mais suspeitas que encontraram, além de popularizar uma alcunha grosseira para a acusada. É a famosa publicidade völkisch de que nos fala Zaffaroni: a deliberada exibição dos aspectos mais grosseiros possíveis, para produzir reações emocionais desfavoráveis no público. Nada a ver com objetividade, muito menos com a verdade. O importante é vender a notícia, antes dos concorrentes. Dito por Pisa.

Em qualquer lugar do mundo, uma mulher acusada de um crime grave será julgada moralmente e o desvalor moral sempre terá uma conotação sexual.

Graças ao diário de Knox, que não deveria, mas foi divulgado pelas autoridades italianas, o mundo soube que a jovem americana, até os seus 20 anos, teve relacionamentos sexuais com 7 homens. A tese da acusação? Uma predadora se aproveitou da inexperiência de Sollecito e o dominou emocionalmente graças ao sexo. Certa noite, levou para casa o namorado e um segundo homem (Rudy Guede), para uma aventura sexual. Meredith Kercher chegou e protestou. Furiosa por ser confrontada (o promotor Mignini afirmou que ela não tolerava ser questionada e não respeitava autoridade), matou a colega de quarto. Os dois homens não a impediram porque fariam tudo para satisfazê-la de todas as formas.

Misógino? O documentário não nos ajuda a responder esta pergunta. Não são apresentadas provas factuais que sustentem a tese moralista da acusação. A hipótese de Knox é que Guede, que tinha histórico de invasões domiciliares, entrara na casa para roubar e acabou estuprando e matando a mulher que encontrou lá dentro. Ele acabou condenado a 30 anos de prisão, pena reduzida para 16 anos. O judiciário insiste que há provas contra ele. Coincidência ou não, no fim, o estrangeiro negro foi o único culpado.

Em qualquer lugar do mundo, a população, diante de um crime bárbaro, reage com sede de sangue, exigindo a condenação daquele que tenha sido apontado como suspeito. 

Seres humanos se entregam a suas emoções sem qualquer cuidado, mas cheios de retórica. Uma das mais comuns expressões disso é a sede de justiça. Ninguém se atém a fatos, muito menos a meandros jurídicos. Se não há condenação exemplar, não há justiça (vingança, bem entendido) e tudo é uma vergonha. A absolvição de Knox e Sollecito gerou indignação popular. Posteriormente, ele voltaram a ser condenados (a grande falha do documentário, a meu ver, é não mostrar o que aconteceu nesse período). Mas, por fim, a Suprema Corte italiana os absolveu, usando como argumentos a imprestabilidade probatória e a ação da imprensa, que forçara a indicação de culpados!

No fim das contas, o crime segue um acontecimento sem explicação cabal. Passados 9 anos desde a morte de Meredith Kercher, Amanda Knox se tornou advogada e hoje defende pessoas indevidamente acusadas de crimes, em sua cidade natal (Seattle). Rafaelle Sollecito tem uma empresa de informática em sua cidade natal (Bari).


Em meio às incertezas, a coisa mais importante que vemos no documentário foi dita pela própria Amanda Knox: se ela for culpada, então é um monstro e as pessoas devem temê-la. Se, no entanto, for inocente, isso prova que todos somos vulneráveis a uma acusação criminal incorreta, o que também provoca medo em todos.

Minha conclusão? Ao final, tudo tem a ver com medo. Medo de termos nossas vidas destruídas por bestas humanas ou pelo Estado, aquela entidade que todos os dias nos é vendida como generosa e comprometida com o bem comum. E ambos os medos convergem para o mesmo resultado: a condenação dos suspeitos. Se forem culpados, ótimo. Se forem inocentes, ainda assim serei poupado de saber que o mundo é mais falho do que parece. Poderei dormir à noite, acreditando que a lei, a ordem, as autoridades, a justiça ou coisa que o valha cuida de mim.

Para mim, acreditar nisso é que é assustador.

Informações adicionais: 

  • http://g1.globo.com/tudo-sobre/amanda-knox (Compilação de notícias do portal G1)
  • http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/07/internacional/1475838543_510782.html (matéria após o lanlamento do documentário)


Veja também, no blog: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/01/fabricar-criminosos-faz-parte-de-um.html