sábado, 28 de outubro de 2017

Jogos para perder

Seriados e filmes com temáticas criminais sempre fizeram grande sucesso, porque o público em geral sente atração pelo mundo-cão. Em outubro de 2000, foi lançada a série que revolucionou a linguagem nesse tipo de programa, CSI, posteriormente CSI: Las Vegas, que abriu uma franquia longeva e bem sucedida (e produtos assemelhados, como NCIS), até a fórmula se esgotar. O motivo do sucesso foi apresentar tramas sob um viés explicativo, de base científica. De repente, ao invés de apenas assistir a uma estória, o público se viu levado para dentro da investigação criminal, recebendo explicações didáticas sobre ciências forenses.


Sucesso gera audiência, que gera dinheiro, que gera... novos produtos! Em setembro de 2005 estreou Criminal minds, que explora outro filão, agora o das ciências psi aplicadas ao universo criminal. Outro grande sucesso, permanece em exibição (e também gerou spin-offs). O fato é que, nessas quase duas décadas, desenvolveu-se um público fortemente interessado em programas que exploram o universo do crime e da atividade persecutória por dentro. Se precisávamos dar mais um passo, ele foi dado quando o mundo conheceu a Netflix.


A par da revolução comercial provocada pelos serviços de streaming, a Netflix possui uma proposta audaciosa quanto à qualidade de seus programas originais. Não apenas o investimento é elevado, como existe um claro desejo de explorar temas polêmicos, questões sensíveis e, inclusive, fazer revisão das bagunças que as pessoas adorariam enfiar embaixo do tapete. Foi assim que tiveram a felicíssima ideia das séries documentais. Lançaram Making a murderer e, como se diz hoje em dia, quebraram a internet.


O sucesso da série sobre a possível armação da polícia do Condado de Manitowoc contra Steven Avery rendeu uma anunciada segunda temporada, mas trouxe a reboque vários outros produtos. São tantos, que é difícil listá-los, mas este blog já explorou, além do próprio Making a murderer, Amanda Knox, além de séries que não são do acervo próprio da Netflix, mas que ela exibe, tais como Kids for cash (clique nos links para ler as postagens).


Não cheguei a escrever sobre, mas vi e recomendo fortemente The keepers, sobre o nunca esclarecido assassinato de uma freira que pode ter sido morta por querer revelar um escândalo de pedofilia em uma escola administrada pela Arquidiocese de Baltimore; Deep web, sobre a investigação criminal em torno do suposto criador do Silk Road, sítio utilizado para a prática de diversos crimes; e, claro, o poderoso, célebre e premiado 13ª emenda.


O fato é que esse caldeirão de títulos nos permite um vigoroso mergulho no universo criminal e, se você é iniciado nesse campo, e quer ir além do simples entretenimento, pode aprender muito com eles. Vou incluir na lista a série antológica de drama criminal American crime, do canal AXN, que já está na terceira temporada.


Contudo, as lições aprendidas são profundamente angustiantes. O sistema de justiça criminal dos Estados Unidos é monstruoso. Ele claramente funciona para promover um violento controle sobre minorias sociais, que naquele país são representadas por uma maioria populacional (atualmente), composta por negros, chicanos e outros imigrantes. Uma nação colonizada por brancos de religião puritana aprendeu a ser cruel com aqueles que não considera semelhantes. Para piorar, o individualismo excessivo, o culto por armas de fogo, a privatização das prisões e as políticas de "tolerância zero" e de guerra às drogas, além da deturpação da utilidade da ciência para fins criminais, são ingredientes que tornam o direito estadunidense uma prática corretamente classificável como um jogo. Só que é um jogo no qual você não tem chances de ganhar.

Isso nos leva ao seriado criminal do momento, novamente da Netflix: Mindhunter. Produzido pelo aclamado cineasta David Fincher e pela premiada e respeitada atriz Charlize Theron, a partir do livro do agente do FBI John Douglas, escrito com o pesquisador Mark Olshaker, o programa mostra uma abordagem sobre fatos reais, em torno do nascimento da ciência comportamental como técnica forense, naquela agência. Demonstra o gosto dos americanos por pesquisa empírica, o que é bom, mas sofre a má influência da visão cartesiana de mundo que eles possuem. Eles acreditam ser possível objetivar conceitos, classificações e padrões de comportamento e, com isso, produzir métodos confiáveis de predição de riscos.


Graças a entrevistas com famosos serial killers (na série, há uma cena na qual os personagens decidem usar essa terminologia), o grupo tenta identificar as causas do comportamento criminoso mais violento (a velha obsessão etiológica!) e, com isso, desenvolver manuais para que todo e qualquer policial possa aplicar na sua comunidade e, com isso, possa prevenir crimes, salvar vidas e talvez o mundo. Eles só se esquecem de combinar com o resto do mundo e as coisas não saem exatamente dentro do esperado. Exemplo contundente disso é o recente massacre em Las Vegas, que resultou em 58 mortes e mais de 500 feridos. O atirador Stephen Paddock era um homem branco, de ótima condição financeira, tinha 64 anos (a maioria dos "criminosos" é jovem), sem relações conhecidas com grupos extremistas ou com atividades ilícitas. Era o perfeito cidadão de bem e seria aprovado com louvor em qualquer análise de perfil made in USA.

Para ilustrar como a vida real não cabe nas idealizações e nas simplificações dos sistemas de "justiça" criminal, temos mais uma série documental a recomendar, novamente da Netflix: The confession tapes. São seis histórias reais, nas quais pessoas foram condenadas por homicídios após terem confessado os crimes. Posteriormente, entretanto, elas negaram essas confissões e disseram ter sido induzidas, pelos policiais, a assumir culpas inexistentes.


Situo, por fim, a minha crítica ao sistema estadunidense. Como se pode ver em Making a murderer, em American crime (primeira temporada) e em The confession tapes (refiro-me, em especial, ao episódio 3), tornou-se uma prática absolutamente rotineira e legitimada, nas polícias daquele país, usar técnicas psicológicas, desenvolvidas por causa dos métodos que se veem em Mindhunter e mesmo em Criminal Minds, nas quais o poder público mente, engana, trapaceia, desestabiliza deliberadamente o suspeito, levando-o a uma situação de perturbação mental cuja finalidade é obter uma confissão.

Na Idade Média, considerava-se a confissão como regina probatorum. Para obtê-la, tudo era válido, inclusive a tortura. Se o acusado confessasse, não fariam a menor diferença as circunstâncias dessa confissão. Existe uma lógica estúpida, mística, segundo a qual se uma pessoa admite algo que a prejudica, está falando a verdade. Por isso, ontem como hoje, se o suspeito diz que é culpado, acreditamos. Se alega inocência, duvidamos. Só que o poder público faz de tudo para encontrar um meio de levá-lo à confissão. Ou seja, não existe presunção de inocência, declaradamente uma das principais garantias individuais penais. Embora se diga que o processo se destina a descobrir a verdade, ninguém quer a verdade; querem apenas um culpado. Serve qualquer um, preferencialmente o primeiro suspeito a aparecer.

O que as séries acima mostram é que, até hoje, não evoluímos tanto assim. Apenas substituímos o misticismo religioso pela ilusão da ciência, mas continuamos tão desonestos e crueis como sempre. E isso é um problema particularmente grave nos Estados Unidos, cuja "justiça" criminal é deliberadamente concebida para decidir os processos mediante acordos, sem levar as causas a julgamento. O réu é pressionado de todas as formas a assumir alguma culpa, em troca de uma pena menor. É a aplicação forense da teoria dos jogos, na qual o indivíduo busca sofrer o menor prejuízo possível, mesmo que a custos pesados. O risco de ser condenado à morte, prisão perpétua ou de longuíssima duração, em um sistema com poucas chances de acolhimento das teses defensórias, além de extremamente caro, leva as pessoas a aceitar condenações, muitas vezes porque não podem pagar pelo acesso ao judiciário. E assim a profecia se autorrealiza: disseram que o sujeito era culpado e ele é mesmo, porque confessou. Ele vai para a cadeia por um bom tempo, a tal "justiça" é alcançada e todos se regozijam.

Não duvide: para mim, isso já é uma sociedade distópica o suficiente. Não é o mundo em que desejo viver.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Decida quem você é

A facilidade de externar opiniões a qualquer público, graças à internet, trouxe à tona uma população de psicopatas convictos. Já estamos tão acostumados a isso que, possivelmente, nem nos damos mais conta do quão errado e doentio isso é. De minha parte, não sei se por autocrítica ou se por ter voltado à terapia, tenho tentado manter alguma coerência e não disseminar discursos de ódio, haja vista que os condeno nos outros.

Ontem, foi divulgado que o presidente usurpador e para sempre golpista Michel Temer sofreu uma obstrução urinária, cuja causa mais comum é o aumento da próstata. Rapidamente, começaram a surgir boatos e, inclusive, especulações sobre câncer. Muitos comemoraram.

Mesmo tendo ódio ao PT ou às esquerdas, uma pessoa que conservasse um mínimo de lucidez, ao olhar o que Temer fez em apenas um ano e meio, teria todos os motivos do mundo para odiá-lo e para querer vê-lo apeado de todo e qualquer cargo e de toda e qualquer convivência comunitária. Mas desejar-lhe o mal, a doença, a morte, é mesmo uma atitude adequada? Nem falo por ele. A pergunta seria descer a esse padrão é bom para você?

Já convivi com câncer na família e, honestamente, não acho que isso seja motivo de brincadeira. Não desejo isso para ninguém. Nem mesmo para Temer. Ou para Gilmar Mendes. Ou para qualquer um desses aí. Não quero deixar de ser quem sou para mergulhar nessa espiral de violência. Se tudo desabar, quero ao menos ter a possibilidade de dizer que continuei sendo a pessoa que era, sem me deixar arrastar para esse lodaçal. Descer ao nível dos fascitoides de todos os matizes da internet.

Quero Temer e toda a sua camarilha alijados dos poderes públicos para sempre. Quero-os responsabilizados por tudo que fizeram. De acordo com o ordenamento jurídico vigente. E o resto não me cabe. Xô, caô.