domingo, 11 de setembro de 2016

Memórias com vista para o mar

Do The New York Times, edição de 31.8.1964:

Durante a abertura do Festival de Cannes, Julie Andrews, Dick Van Dyke e outros atores do filme Mary Poppins (Saving Mr. Banks) fizeram um protesto contra congressistas, a quem acusam de dar um golpe no presidente eleito, Lyndon Johnson. O diretor Robert Stevenson também participou da manifestação. Como resultado, o filme está sendo boicotado e amarga prejuízo considerável na bilheteria.

O longa é pura doutrinação comunista, feito para ridicularizar os valores supremos da tradicional família americana, representados pelo pai (que abdica do próprio bem-estar para trabalhar sem descanso, garantindo assim um padrão de vida elevado para seus familiares). Contra ele, estão a esposa que, em vez de criar os filhos, papel de toda mulher, se envolve com o movimento sufragista; e dois filhos que, embora perfeitamente brancos, odeiam a disciplina e querem que o pai abandone suas responsabilidades para viver entre folguedos inúteis. É quando chega Poppins, uma nova babá, estrangeira, vinda não se sabe de onde (alegoria para as doutrinas do bloco soviético), que usando música e mágica (recursos destinados a causar deslumbramento com as ideias marxistas), e auxiliada pelo vagabundo Bert (apologia do anarquismo), usa o amor do pai por seus filhos para corrompê-lo.

O filme achincalha o sistema bancário americano, responsável pelo desenvolvimento do país, ao mostrá-lo como uma confraria de velhos caquéticos e impiedosos que, obcecados por dinheiro, não hesitam em tomar até as moedinhas das crianças. O povo de bem deste país saberá dar o troco a essas odiosas empreitadas disfarçadas de cultura.

Ontem vi Aquarius, o filme brasileiro mais polêmico dos últimos anos. E polêmico por quê? Porque em 17 de maio passado, o elenco e o diretor do longa, ao passarem pelo tapete vermelho do 69º Festival de Cannes, ergueram cartazes, denunciando à opinião pública estrangeira, o golpe de Estado travestido de legalidade em curso no Brasil. O resto foi feito pela intellingentsia da classe média e da mídia brasileiras, que passaram a demonizar o longa e a torcer pelo seu insucesso, já que se teria tornado uma espécie de símbolo do contragolpe.

Mas Aquarius, enquanto filme, é tão apologético do pensamento de esquerda quanto o musical infantil Mary Poppins. Aliás, muito menos, porque o  produto da Disney é caricato, ao passo que a obra de Kleber Mendonça Filho prima pela delicadeza e possui, no máximo, um único diálogo que poderia contrapor ideologias de classe, mas isso em uma cena em que Clara (Sônia Braga) confronta Diego (Humberto Carrão) por todos os prejuízos que está lhe causando e ouve dele ironias, ameaças e uma alusão ao fato de ser uma "pessoa de pele um pouco mais escura". Tudo o que ela diz é que ele estudou no exterior mas não aprendeu a ter caráter; que o único caráter que ele conhece é o dinheiro.

Se separarmos o filme em si da conduta dos envolvidos em sua produção, o que resta é um filme adorável, que alia um diretor elogiado desde o seu longa de estreia (O som ao redor, 2013) e a maior diva do cinema brasileiro, Sônia Braga, que merece cada elogio que lhe foi feito por sua atuação neste projeto. Absolutamente espontânea e segura em cena, comprovou que talento se vê nas minúcias. Em duas cenas, particularmente, em vez de exageros gestuais e do apelo ao descritivismo, ela desvela sua emoção em mudanças no semblante e em olhos que ficam levemente úmidos, sendo que nós, espectadores, sequer sabemos o motivo, só podendo intuir que a personagem está recordando eventos de seu passado. Lindo.

Clara rasga, sem ler, a proposta milionária da construtora.
Aquarius é o nome do edifício antigo e de poucas unidades onde vive Clara, uma jornalista e escritora aposentada, viúva há 17 anos, que só quer viver a própria vida, em paz, em seu apartamento amplo e de frente para a praia de Boa Viagem, em Recife (cidade natal do cineasta). O problema é que uma grande construtora quer construir no local um novo empreendimento de alto padrão, obviamente com um ridículo nome em inglês, posteriormente modificado  para "Novo Aquarius" para "preservar a memória do local", como se fosse uma grande coisa. A construtora já adquiriu todos os demais apartamentos, nos últimos seis anos, pelo menos, e Clara é o único empecilho à viabilização do projeto. Por isso é pressionada (e até ameaçada) pela empresa, mas também por antigos moradores, que dependem dela para receber o que lhes foi prometido (o filme informa que o padrão de mercado é oferecer metros quadrados para os compradores, não dinheiro, o que explica Clara ser vista como uma louca egoísta).

Disfarçado de bom moço, o poder ataca diretamente e, se não funcionar,
há um plano criminoso em andamento no andar mais alto.
O que Aquarius mostra, portanto, é a luta de uma mulher de 65 anos, solitária, contra o poder econômico. O contraponto entre a ânsia de lucro, sempre apresentada com o mentiroso e odioso discurso do desenvolvimento, e o desejo de conservar as memórias, o sentimento de pertencimento a um lugar onde se esteve por gerações, além de outros valores puramente espirituais. Clara só quer conservar o cantinho onde plantou seus amigos, seus discos e livros e nada mais. Revolucionário? Qual o quê! Por todo o planeta esse tema é volta e meia explorado, inclusive entre os estadunidenses, que em 2001 deram vários prêmios de melhor atriz à mediana Julia Roberts, por sua atuação em Erin Brockovich, baseado em fatos reais, obra também indicada ao Oscar de melhor filme e melhor direção. A linha Davi contra Golias, em que o Davi é uma pessoa idealista e Golias, uma corporação ou um grupo muito mais forte, pode ser considerada um ramo do cinema mais comercial.

A questão é que Aquarius se insere nesse nicho com muita propriedade. Em que pese o cineasta ser um apoiador pessoal de Dilma Rousseff, precisamos por em contexto que a especulação imobiliária na orla de Recife é um dos principais problemas de infraestrutura daquela cidade, sendo perfeitamente compreensível que Mendonça quisesse tratar disso, qualquer que fosse a conjuntura política no país. O filme não precisaria sofrer nenhuma mudança. O que conta, portanto, é o roteiro bem construído; são os diálogos brilhantes, até mesmo nas cenas de amenidades (com destaque para a estória da mulher que foi a uma livraria comprar "três metros de livro" por recomendação de seu arquiteto!); a inserção da música como um elemento essencial da narrativa, recurso usado com sucesso em outros filmes bem recebidos pela crítica; e, inclusive, a defesa de valores importantes à sociedade, como a família. Aquarius é um filme de casamentos felizes que só terminam pela viuvez, gerando filhos e sobrinhos amados e cuidados com carinho. Veja como termina a cena de discussão entre Clara e sua filha.

A estúpida pretensão de boicote não deu muito certo.
Por tudo isso, boicotar essa joia do cinema nacional pelo ativismo da equipe deve ser tributado ao esfumaçamento da inteligência e do bom senso de uma súcia que se "instrui" nas páginas da direita hidrófoba na internet, tendo à frente canalhas notórios como o tal de Reinaldo Azevedo, que conclamou as "pessoas de bem" (sempre elas) ao boicote, apelo repercutido pela interminável legião de zumbis das redes sociais.

Não fossem os pronunciamentos do diretor e dos atores, Aquarius estaria sendo visto de acordo com os méritos que realmente possui, o que abrange ser um forte candidato a representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro, inclusive pela presença de Sônia Braga, muito benquista por aquelas bandas. Essa indicação é a nova batalha politicaloide do longa (cf. http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2016/09/aquarius-concorrera-com-15-filmes-para-representar-o-brasil-no-oscar.html). O filme indicado será conhecido amanhã.

Pessoalmente, não tenho preferência, primeiro porque considero deslumbramento com o Oscar coisa de gente colonizada; mas também porque, dos filmes indicados, Aquarius foi o único que vi, por mais que respeite e valorize o cinema nacional. Infelizmente, contudo, nem todos os títulos chegam às salas de cinema e os que chegam vêm com horários reduzidos, porque os exibidores querem mesmo lucrar com os títulos comercialoides que, no caso brasileiro, normalmente são as comédias, a que não assisto.

Em suma, se você gosta de uma bela estória, muito bem contada, veja Aquarius. E escute Maria Bethania, para mostrar que é intenso.

sábado, 10 de setembro de 2016

Aprendizagem de periferia vs. expectativas de centro

Quando pergunto a meus alunos neófitos qual é a primeira instância de socialização, a resposta vem certeira: a família. Chega a ser intuitivo, já que todos eles têm suas famílias e suas memórias mais remotas estão diretamente relacionadas ao grupo formado por pessoas que, segundo se toma como regra, estão fortemente vinculadas por sentimentos e agem movidas pelo desejo de proteger e de orientar, notadamente suas crianças.

Mas imagine que esse processo natural seja interrompido. Imagine, por exemplo, que seu pai motorista de ônibus seja assassinado e sua mãe, presa (injustamente). Você vive em uma das capitais brasileiras com os mais elevados índices de violência urbana e, de repente, está por sua própria conta. Você é uma menina de 10 anos ou um menino de 3, que ainda nem foi para a escola. O que há de acontecer doravante? O roteiro de Justiça apostou na obviedade: sete anos mais tarde, Mayara é prostituta e Jesus, a despeito do nome, tornou-se ladrão. Sua cruz saiu do meio para a lateral.

Não me concentrarei, por enquanto, em Mayara (Letícia Braga/Júlia Dalavia) porque a trama que lhe foi destinada é a da vingança contra a mulher que desgraçou sua família, projeto que lhe parece tão importante que, para consumá-lo, vale a pena seguir uma rotina de prostituição, com todos os temperos associados, tais como tomar porrada na cara. Quero me concentrar em Jesus (Bernardo Berruzo/Tobias Carrieres) e, por meio dele, divagar um pouco sobre as consequências de uma criança não receber a indispensável orientação moral, no momento adequado.

Por oportuno, destaco que existem relevantes estudos, nos campos da psicologia e, inclusive, das neurociências, acerca dos efeitos da afetividade sobre a moldagem do cérebro humano, na primeira infância, o que tende a produzir reflexos por toda a vida adulta. Sim, estou dizendo que a falta de cuidado e orientação, na fase própria, compromete o desenvolvimento da pessoa e, no futuro, isso afetará a sua capacidade de percepção do mundo, dificultando a tomada de decisões éticas, já que toda ética pressupõe alguma padronização. E só aceita os padrões quem os compreende. Mas atenção: devemos rejeitar os determinismos, sobretudo os biológicos. Estou falando de tendências, apenas.

Acredito que a trama de Jesus seja a mais propensa a irritar o brasileiro médio de classe média, com sua incapacidade de se por no lugar do outro, sua imediatidade em fazer julgamentos maniqueístas extremos, sua fé cega no livre arbítrio e na fantasia de que se pode conseguir tudo que se sonha desde que se queira com toda a força do coração. Papai Noel sorriria, se existisse.

Jesus é o membro mais jovem de um trio de trombadinhas e ajuda a assaltar Fátima. Após tanto tempo sem se verem, ela o reconhece com a ajuda da cicatriz de mordida de cachorro no braço. Ele, claro, tem dúvida. Por isso, mais tarde, pega a carteira de identidade da bolsa roubada e pede ao comparsa que leia. Reconhece o nome. Amalandrado pela vida na rua, age com precisão cirúrgica: não esboça reação. Espera um moleque ir embora e o outro tombar sob o efeito da droga, pega a bolsa e o dinheiro e volta para casa, originando aquela cena linda do reencontro de mãe e filho.

A cena apela para forte dramaticidade (e funciona muito bem). Dividido entre o amadurecimento forçado e corrompido das ruas e o fato de ser apenas uma criança, Jesus canta para Fátima uma canção que usara durante todos aqueles anos para não se esquecer dela. Sua atitude, inclusive de perguntar para Douglas como era seu falecido pai, demonstra que sente falta da família e quer o suporte de referenciais adultos. Mas ele tem as marcas da infância desassistida. Em outra cena, Fátima lhe dá um tapinha quando ele comenta que Mayara virou prostituta. Sua reação é agressiva: empurra a mãe e ameaça ir embora. Como esperar delicadeza ou respeito à autoridade de quem não foi ensinado a agir assim e, menos ainda, teve exemplos nesse sentido?

O que salva Jesus, acredito, são os três anos de amor que marcaram a primeira fase de sua vida. São eles que fazem o menino ficar com a mãe e ajudá-la em seu projeto de viver honestamente da venda de comida. Todavia, não se deleta o próprio histórico: na primeira oportunidade, o menino engana um cliente para ficar com 20 reais. A mãe descobre e os dois têm novo embate: ela ensina que não se toma o que é dos outros, nem que sejam apenas 10 centavos. Diz que não criou filho para ser ladrão. Contudo, junto com a disciplina vem o amor (isso não se aprende na rua, que só oferece a violência). Ela diz: "que bom que tu tá chorando, porque isso mostra que tu tá arrependido. Vai pro teu quarto sentir essa vergonha até o fim". Manda que ele devolva o dinheiro. E afaga sua cabeça. O menino obedece. Aprendi, quando me tornei pai, que crianças querem ser disciplinadas e nos testam com essa finalidade. Se respondemos à altura, podemos formar verdadeiros cidadãos, gente boa e solidária.

Fátima é uma fortaleza, meu personagem favorito na série. Incansável na tarefa de resgatar o filho, no capítulo 10 ela mita, como se diz hoje em dia: diz que foi presa injustamente e podia estar com o coração cheio de ódio e desejo de vingança, mas se assim agisse, a prisão teria decidido por ela. Invoca a autonomia moral: diz ao filho que, assim como ela decidiu a pessoa que quer ser, ele deve decidir a própria vida. Mas não se esquece de amarrar as pontas: fala em escolher uma profissão e, como mãe, preocupada com questões práticas, desestimula ser motorista de ônibus como o pai. "A gente tem que evoluir".

Fátima transita entre o estilo dos folhetins tradicionais (a virtude inabalável) e a inclinação ao naturalismo dos últimos anos: ela se descontrola, mata cachorro, ameaça vizinho com terçado. Mas defende seus valores e é solidária. Para mim, é totalmente plausível, o tipo de pessoa que vale a pena conhecer. O tipo de pessoa capaz de resgatar uma alma do vício, da perda, do crime (sem querer naturalizar estes termos), pois é movida por interesse sincero e educa pelo exemplo. É o oposto do Estado, que se esgota na ação punitiva, porque assim são seus agentes e, acima de tudo, assim é a sociedade.

Para mim, a trama de Fátima e Jesus serve de metáfora, pois indica o caminho a seguir se queremos salvar vidas (as de quem está em queda e as de quem pode ser machucado por estes). Entretanto, esse caminho é extremamente difícil e envolve largas doses de frustração. Se somos movidos pela pressa e, sobretudo, se não queremos ter trabalho, as soluções serão diversas: primeiro a palmada, depois a brutalização e as diferentes formas de institucionalização que, neste país, representam o amontoamento inútil dos problemas que poderíamos matar, se não houvesse uma droga da lei limitando esse desejo.

Post scriptum. Pode parecer contraditório eu mencionar autonomia moral do indivíduo quando rejeito a ideia tradicional de livre arbítrio. Esta postagem não avançará por aí. Por ora, esclareço que não nego a existência do livre arbítrio. O que rejeito é a concepção de que ele pode ser medido a partir de um consenso valorativo de toda a sociedade e que, em consequência, todas as escolhas que as pessoas fazem são plenamente livres. Esta interpretação simplista permite encarar o desviante sempre como um transgressor voluntário e, portanto, merecedor dos piores castigos. Acredito que circunstâncias existenciais que comprometem o desenvolvimento humano afetam a percepção do que é certo ou errado, dificultando ou impedindo, às vezes, que o agente corresponda às expectativas sociais. Nesse caso, sua responsabilização não poderia ser igual a de quem teve toda a assistência possível. Mas este assunto exige longa reflexão, inclusive de minha parte.

Antecedentes criminais
  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
  • Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
  • Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html
  • Capítulo 4: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/eu-que-te-amo-tanto-ponto-de-te-matar.html
  • Capítulo 5: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-caminho-do-perdao.html