Em uma faculdade privada localizada em uma cidade muito distante daqui, esta semana a funcionária responsável pelo processamento dos pedidos de financiamento estudantil (FIES) desabafou na sala dos professores. Estava indignada com a quantidade de safadezas praticadas no programa. Destacou, em especial, a grande quantidade de pedidos formulados por pessoas que simplesmente não precisam dessa política pública.
As malinagens são de todo tipo. Gente que é filho de fazendeiro, por exemplo, indica no formulário que é filho de agricultor e aponta um endereço lá no meio do mato. E como o governo federal coloca toda a carga da investigação sobre as instituições de ensino, são estas que precisam se certificar de que está tudo correto. Felizmente, essa valorosa brasileira leva muito a sério o seu trabalho e não dá sossego aos vigaristas.
Em um caso peculiar, um sujeito, titular de uma boa posição na Aeronáutica, não podia ocultar sua renda mensal superior a 8 mil reais. Que fez ele? Indicou no formulário um monte de dependentes, incluindo a sogra e sobrinhos. Como a legislação do FIES permite que a instituição requisite qualquer documento capaz de comprovar a situação socioeconômica do requerente, nossa zelosa brasileira requisitou a declaração de ajuste anual do cara. Queria, é óbvio, confirmar que aquele batalhão de dependentes também havia sido declarado à Receita Federal.
A funcionária, então, começou a receber telefonemas de alguém em Brasília, exigindo explicações sobre por que o processo do requerente não havia sido solucionado ainda. E acusando-a de estar aplicando mal a lei, porque o sujeito não seria obrigado a apresentar sua declaração de rendimentos. Mas nossa valorosa brasileira primeiro questionou por que uma pessoa estranha ao processo estava intervindo nele (e não recebeu explicação sobre isso). Depois, esclareceu que se o requerente não apresentasse a declaração de ajuste anual, o seu pedido seria indeferido e ele poderia, nos termos da lei, recorrer, se quisesse.
Como você já pode imaginar, o requerente não comprovou os seus dependentes, teve indeferido o seu pedido, mas não recorreu. Ele simplesmente sumiu. Sabe por quê? Porque nos precisos termos do art. 299 do Código Penal, inserir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante constitui crime de falsidade ideológica, passível de 1 a 5 anos de reclusão, se o documento for público, ou 1 a 3 anos, se privado, além de multa.
E é assim, para dar apenas um exemplo, que pessoas comuns renovam, todo dia, a infatigável capacidade do brasileiro de se locupletar de tudo, transformando qualquer boa iniciativa em bandalheira.
O pequeno provocador que existe em mim está gritando aqui no meu ouvido que esse fulano da Aeronáutica, com certeza, é um dos milhões de brasileiros que esbraveja contra a corrupção dos políticos ou dos servidores públicos em geral, que se diz farto de tanta criminalidade, que exige leis penais mais duras e a redução da maioridade penal, que comemora a existência de uma "bancada da bala" no Congresso Nacional, que repete a cantilena imbecilizante do "bandido bom é bandido morto" e se enche de menosprezo para aludir ao "pessoal dos direitos humanos".
E já que estou falando de um fato ocorrido sabe-se lá onde e sabe-se lá quando (só confirmo que é verídico e recente), ouso especular que esse cidadão de bem que tentou fraudar o programa FIES também é um dos milhões de brasileiros que sente nojo das políticas de transferência de renda ou de cotas nas universidades, implantados ou ampliados de 2003 para cá. Considera-os prejudiciais porque negam a meritocracia e criam uma legião de malandros que viverão para sempre pendurados no produto do esforço dos ditos cidadãos de bem. Como cereja do bolo, ele provavelmente repercutiu, no Facebook, o meme sobre o esgotamento de recursos para o FIES, agora em 2015, como uma prova cabal de que a atual presidente aplicou um estelionato eleitoral.
O canalha somente se esqueceu do estelionato particular, aquele ocorrido dentro de seu próprio raio de ação, que provavelmente ele não viu como nada demais. Afinal de contas, todo mundo faz, né? Que que tem? Então deixa eu ir ali falar mal do governo.
sábado, 30 de maio de 2015
A aprovação do autor
A postagem anterior a esta, "Os frutos do nosso dinheirim", rendeu um inesperado e simpático comentário, escrito pelo jornalista a que eu me referi nela, responsável pelo trabalho de levantamento de informações legislativas. Escreveu-me Rodolfo Viana:
Que bacana ver meu humilde box repercutido aqui! :)
Excelentes considerações, Yúdice. Eu também fico bastante consternado quando pesquiso os projetos de leis que são apresentados por nossos parlamentares. Alguns são bem interessantes -- a desoneração de pessoas com determinadas doenças crônicas, por exemplo, é um tema recorrente no plenário. Por outro lado, também são bastante comuns projetos que visam armar a sociedade, dar poderes absolutos às polícias etc. Estes, sim, me preocupam muito.
Mas não podemos perder a esperança. E não podemos parar de lutar. Afinal, "o que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética; o que me preocupa é o silêncio dos bons".
Abraços.
Agradeço muito pela gentileza do comentário. E para os que passarem por aqui, informo que Rodolfo Viana é um jornalista e escritor de 34 anos, sobre quem você pode saber mais em seu site.
Que bacana ver meu humilde box repercutido aqui! :)
Excelentes considerações, Yúdice. Eu também fico bastante consternado quando pesquiso os projetos de leis que são apresentados por nossos parlamentares. Alguns são bem interessantes -- a desoneração de pessoas com determinadas doenças crônicas, por exemplo, é um tema recorrente no plenário. Por outro lado, também são bastante comuns projetos que visam armar a sociedade, dar poderes absolutos às polícias etc. Estes, sim, me preocupam muito.
Mas não podemos perder a esperança. E não podemos parar de lutar. Afinal, "o que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética; o que me preocupa é o silêncio dos bons".
Abraços.
Agradeço muito pela gentileza do comentário. E para os que passarem por aqui, informo que Rodolfo Viana é um jornalista e escritor de 34 anos, sobre quem você pode saber mais em seu site.
quinta-feira, 28 de maio de 2015
Os frutos do nosso dinheirim
Na edição n. 346 da revista SuperInteressante, publicada este mês, o jornalista Rodolfo Viana assinou um box chamado "Você paga este político para". Veja só este pouquinho de Brasil, ai, ai:
"Alberto Fraga, deputado federal pelo DEM-DF, para que ele defenda que, quando um policial mata alguém, o ato seja sempre considerado legítima defesa."
"Décio Lima, deputado federal pelo PT-SC, para que ele proíba funcionários do Ministério Público e juízes de postarem coisas na internet."
"João Rodrigues, deputado federal pelo PSD-SC, para que seja liberado o porte de armas a caminhoneiros e taxistas."
Com isso, meus alunos podem ter uma pequena demonstração de por que eu critico tanto, mas tanto e sempre, os parlamentares brasileiros.
Sobre o tolo projeto do petista, trata-se apenas de uma violação à liberdade de expressão, como se juízes e membros do MP não possuíssem o direito de interagir com terceiros, de um modo absolutamente disseminado hoje em dia. Além de uma agressão à individualidade, parte do pressuposto de que todos são irresponsáveis e postarão informações capazes de trazer prejuízo às funções desempenhadas.
Mas os outros dois projetos são de matar. Com trocadilho.
O projeto do demo não é o primeiro a pressupor que é possível forçar os fatos a caberem na lei, quando na verdade somente se pode adequar a lei aos fatos. Anos atrás, outro debiloide propôs que todos os fatos de trânsito fossem considerados como instruídos por dolo eventual. Ou seja, a forceps, ele queria acabar com a culpa e redefinir o elemento subjetivo do crime por lei, não mais pela intenção do agente.
Agora, o demo quer que a legítima defesa deixe de depender dos requisitos constantes do art. 25 do Código Penal e passe a ser uma condição natural do agente, desde que policial. Nem os famigerados autos de resistência, que supostamente exigem prova da regularidade da ação policial, foram tão longe no objetivo de liberar as execuções sumárias por policiais.
Por fim, o sequelado que pretende liberar o porte de arma para caminhoneiros e taxistas. Já imagino o argumento: para que essas categorias, tão expostas à violência, possam se defender. O projeto já é imbecil por acreditar, como muitos acreditam, que o cidadão comum ter uma arma ajudaria no combate à violência, ao invés de fomentá-la. E ignora totalmente a realidade. Imagine os caminhoneiros do Brasil, que seja lá pelo motivo que for, trabalham muitas horas por dia, alimentam-se mal e se entopem de rebite para não dormir, andando por aí armados. Ou os taxistas, na sandice do trânsito urbano, que gera tantos conflitos.
Minha esposa me perguntou se um deputado propõe um negócio desses para ganhar visibilidade e votos. Minha suposição é que ele tenha ligações pessoais ou tenha recebido doação de campanha da indústria armamentista. Esse compadrio espúrio é a origem de muitos projetos de lei abusivos. Que o digam Eduardo Cunha e os planos de saúde.
Você tem medo do mundo como está? Eu tenho medo do mundo projetado.
"Alberto Fraga, deputado federal pelo DEM-DF, para que ele defenda que, quando um policial mata alguém, o ato seja sempre considerado legítima defesa."
"Décio Lima, deputado federal pelo PT-SC, para que ele proíba funcionários do Ministério Público e juízes de postarem coisas na internet."
"João Rodrigues, deputado federal pelo PSD-SC, para que seja liberado o porte de armas a caminhoneiros e taxistas."
Com isso, meus alunos podem ter uma pequena demonstração de por que eu critico tanto, mas tanto e sempre, os parlamentares brasileiros.
Sobre o tolo projeto do petista, trata-se apenas de uma violação à liberdade de expressão, como se juízes e membros do MP não possuíssem o direito de interagir com terceiros, de um modo absolutamente disseminado hoje em dia. Além de uma agressão à individualidade, parte do pressuposto de que todos são irresponsáveis e postarão informações capazes de trazer prejuízo às funções desempenhadas.
Mas os outros dois projetos são de matar. Com trocadilho.
O projeto do demo não é o primeiro a pressupor que é possível forçar os fatos a caberem na lei, quando na verdade somente se pode adequar a lei aos fatos. Anos atrás, outro debiloide propôs que todos os fatos de trânsito fossem considerados como instruídos por dolo eventual. Ou seja, a forceps, ele queria acabar com a culpa e redefinir o elemento subjetivo do crime por lei, não mais pela intenção do agente.
Agora, o demo quer que a legítima defesa deixe de depender dos requisitos constantes do art. 25 do Código Penal e passe a ser uma condição natural do agente, desde que policial. Nem os famigerados autos de resistência, que supostamente exigem prova da regularidade da ação policial, foram tão longe no objetivo de liberar as execuções sumárias por policiais.
Por fim, o sequelado que pretende liberar o porte de arma para caminhoneiros e taxistas. Já imagino o argumento: para que essas categorias, tão expostas à violência, possam se defender. O projeto já é imbecil por acreditar, como muitos acreditam, que o cidadão comum ter uma arma ajudaria no combate à violência, ao invés de fomentá-la. E ignora totalmente a realidade. Imagine os caminhoneiros do Brasil, que seja lá pelo motivo que for, trabalham muitas horas por dia, alimentam-se mal e se entopem de rebite para não dormir, andando por aí armados. Ou os taxistas, na sandice do trânsito urbano, que gera tantos conflitos.
Minha esposa me perguntou se um deputado propõe um negócio desses para ganhar visibilidade e votos. Minha suposição é que ele tenha ligações pessoais ou tenha recebido doação de campanha da indústria armamentista. Esse compadrio espúrio é a origem de muitos projetos de lei abusivos. Que o digam Eduardo Cunha e os planos de saúde.
Você tem medo do mundo como está? Eu tenho medo do mundo projetado.
sábado, 23 de maio de 2015
"Há mortes..."
Na madrugada de hoje, assaltantes tomaram de assalto um ônibus parado em um posto de combustível, durante abastecimento, e um deles, sabe-se lá com qual intuito, alvejou uma vítima indefesa. Com isso, provocou a morte de Lucas Silva da Costa, de apenas 19 anos, estudante de Fisioterapia da Universidade da Amazônia. Lucas era um dos aproximadamente 60 universitários que deixaram suas casas rumo à comunidade de Algodoalzinho, Município de Magalhães Barata, a aproximadamente 160 Km de Belém. Dada a distância a percorrer, precisaram madrugar e se expuseram à insegurança das ruas de nossa cidade.
Esses valorosos jovens participam do Rota Solidária, programa de extensão do CESUPA, interdisciplinar e interinstitucional, que leva assistência social e à saúde para comunidades carentes. Esta particularidade tinge de cores ainda mais horrendas o episódio, pois é a perda de uma vida generosa, preocupada com o semelhante e em plena ação pelo bem alheio. Além disso, esta tragédia traz o sofrimento para dentro de nossas casas.
Não conheci Lucas. Mas a minha página do Facebook está se enchendo de mensagens de pessoas que o conheceram. Era amigo de alunos meus, de filhos de amigos meus e estava colaborando com a instituição onde eu leciono. Acima de tudo, era o filho de alguém. O irmão e o namorado de alguém. A esperança de muitos.
Nesta quadra da vida, em que ando profundamente sensibilizado, por razões familiares, o sofrimento e a perda me doem muito particularmente. Eu gostaria de poder fazer algo que mudasse os fatos, mas é impossível. Eu gostaria de dizer algo que fizesse a família e os amigos de Lucas se sentirem melhor, mas não sei se consigo. Há alguns anos, estive no velório de um jovem basicamente da mesma idade e me recordo de como me senti impactado de ver tanta gente jovem, pouco mais do que crianças, sofrendo de um jeito absurdo. Ali, houvera um acidente; hoje, para piorar, alguém decidiu que podia suprimir uma vida. A dor vem com notas de revolta. É tudo grave e triste demais.
Em seu livro Em busca das penas perdidas, Zaffaroni nos fala de um genocídio em ato, na América Latina. E faz uma angustiante lista de motivos pelos quais seres humanos morrem (são mortos!!) por modos que tornam o Estado responsável em alguma medida. E é um sentimento semelhante que tenho visto em algumas das manifestações que li: as pessoas estão assustadas e revoltadas porque a omissão estatal quanto à segurança pública nos coloca sob risco permanente.
Para além de toda dor, devemos lembrar que o crime e a violência jamais serão eliminados, enquanto nós formos o tipo de humanidade que somos. Mesmo no mais organizado, honesto e proativo dos mundos, sempre haverá quem provoque dor. Contudo, nesse mundo ideal tais atos seriam a exceção. A nossa angústia é pensar que, por aqui, as tragédias se sucedem sem trégua e não enxergamos alento no horizonte.
Só posso desejar que Lucas vá com Deus e que sua família e amigos encontrem paz. E que ninguém mais precise passar por experiência tão traumática. Tal desejo, no entanto, é mais uma questão de fé. Então que haja fé para aqueles que choram.
Esses valorosos jovens participam do Rota Solidária, programa de extensão do CESUPA, interdisciplinar e interinstitucional, que leva assistência social e à saúde para comunidades carentes. Esta particularidade tinge de cores ainda mais horrendas o episódio, pois é a perda de uma vida generosa, preocupada com o semelhante e em plena ação pelo bem alheio. Além disso, esta tragédia traz o sofrimento para dentro de nossas casas.
Não conheci Lucas. Mas a minha página do Facebook está se enchendo de mensagens de pessoas que o conheceram. Era amigo de alunos meus, de filhos de amigos meus e estava colaborando com a instituição onde eu leciono. Acima de tudo, era o filho de alguém. O irmão e o namorado de alguém. A esperança de muitos.
Nesta quadra da vida, em que ando profundamente sensibilizado, por razões familiares, o sofrimento e a perda me doem muito particularmente. Eu gostaria de poder fazer algo que mudasse os fatos, mas é impossível. Eu gostaria de dizer algo que fizesse a família e os amigos de Lucas se sentirem melhor, mas não sei se consigo. Há alguns anos, estive no velório de um jovem basicamente da mesma idade e me recordo de como me senti impactado de ver tanta gente jovem, pouco mais do que crianças, sofrendo de um jeito absurdo. Ali, houvera um acidente; hoje, para piorar, alguém decidiu que podia suprimir uma vida. A dor vem com notas de revolta. É tudo grave e triste demais.
Em seu livro Em busca das penas perdidas, Zaffaroni nos fala de um genocídio em ato, na América Latina. E faz uma angustiante lista de motivos pelos quais seres humanos morrem (são mortos!!) por modos que tornam o Estado responsável em alguma medida. E é um sentimento semelhante que tenho visto em algumas das manifestações que li: as pessoas estão assustadas e revoltadas porque a omissão estatal quanto à segurança pública nos coloca sob risco permanente.
Para além de toda dor, devemos lembrar que o crime e a violência jamais serão eliminados, enquanto nós formos o tipo de humanidade que somos. Mesmo no mais organizado, honesto e proativo dos mundos, sempre haverá quem provoque dor. Contudo, nesse mundo ideal tais atos seriam a exceção. A nossa angústia é pensar que, por aqui, as tragédias se sucedem sem trégua e não enxergamos alento no horizonte.
Só posso desejar que Lucas vá com Deus e que sua família e amigos encontrem paz. E que ninguém mais precise passar por experiência tão traumática. Tal desejo, no entanto, é mais uma questão de fé. Então que haja fé para aqueles que choram.
sexta-feira, 22 de maio de 2015
Aquela do copo meio cheio, meio vazio
Existe uma metáfora que tenta indicar se você é do tipo otimista ou pessimista: é aquela pergunta se, ao olhar para um copo pela metade, você o vê meio cheio ou meio vazio. O pano de fundo é enfatizar a questão do foco: você classifica o copo de acordo com o que lhe desperta maior atenção. Parece banal, mas tem lógica.
Nos meus longos anos de dinâmicas de grupo, também fui exposto a uma técnica mais matreira e menos inteligente: exibia-se um cartaz branco com um ponto/risco/sujeira no centro e se perguntava o que a pessoa via. O objetivo era induzi-la a se referir ao ponto/risco/sujeira para "surpreendê-la" com um comentário moralizador, do tipo: "Você enxerga apenas o risco e não presta atenção na imensidão de limpeza que existe em redor?"
Nos últimos dois dias, uma tragédia urbana trouxe à baila esta questão. Refiro-me ao caso de Jaime Gold, médico de 55 anos assassinado a facadas enquanto pedalava na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, vitimado por assaltantes adolescentes, mesmo sem reagir à abordagem.
Para um humanista como eu, uma situação dessas seria horrenda em qualquer contexto e não deveria acontecer nunca. Já para um criminólogo como eu, sem olvidar o horror inerente ao desperdício de uma vida humana, não há como ignorar que muitas pessoas são brutalmente assassinadas todos os dias, ganhando atenção apenas dos jornais sanguinolentos que se locupletam do sofrimento alheio, sem qualquer respeito por ele. Mas o caso ganhou repercussão nacional porque a vítima foi um cidadão produtivo, um homem branco, um médico, que se exercitava em um ponto turístico da cidade mais badalada do país. Quando a violência bate à porta da casa grande, surge um escândalo. O mesmo não se diga do genocídio1 diário dos meninos negros (e quase pretos de tão pobres2) por todo o país.
Amplamente divulgado o caso, a reação natural do brasileiro médio foi a de enfatizar a adolescência do latrocida para concluir pela necessidade de se reduzir a maioridade penal no Brasil. Adeptos de movimentos de lei e ordem são sempre assim: reativos, um sintoma de sua baixa capacidade e total aversão à reflexão, notadamente a de longo prazo e permeável ao confronto de visões opostas. O mural da moralidade brasileira, que atende pelo nome de Facebook, foi-se enchendo de manifestações nesse sentido.
De ontem para hoje, contudo, as postagens que proliferaram tinham como mote o contundente depoimento de Márcia Amil, ex-esposa e amiga de Gold, que se declarou frontalmente contrária à redução da maioridade penal e, de quebra, ainda lembrou os não-médicos assassinados todos os dias além da Zona Sul (leia aqui). Um regozijo para os meus colegas avessos ao punitivismo irracional.
Em consequência, meu mural no Facebook hoje divide as pessoas entre aquelas que replicam manchetes sobre o crime em si e aquelas que repercutem a expressa contrariedade de Amil à redução da maioridade penal. Tudo sintoma. Os primeiros, claro, agem como se dessem a todos nós uma advertência: Amanhã pode ser você. Tema e force as autoridades a combater o crime, enrijecendo a legislação penal, que é o único (ou o melhor) jeito.
A posição de Amil não surpreende. A novelista Glória Perez, que teve a filha Daniella assassinada em 1992, um dos casos mais célebres da literatura criminal brasileira, também se manifestou publicamente contra a pena de morte. E era uma mãe falando, alguém que teve o poder de estar à frente de uma campanha para arrecadar 1,3 milhão de assinaturas em diferentes Estados do país, gerando o primeiro projeto de lei de iniciativa popular a se tornar lei efetiva, que segue sendo o único em matéria penal (veja aqui). A Lei n. 8.930, de 6.9.1994, entrou em vigor apenas um ano e oito meses após o crime.
A atitude de mulheres como Amil e Perez desvela algo em que tenho pensado muito, à medida que avançam os meus anos de docência e vejo muitos de meus ex-alunos se enraizando na sopa geral do clamor por maior punição: eu não quero que crimes brutais, comigo ou com estranhos, inspirem em mim a irracionalidade punitiva porque eu não quero que a maldade, notadamente a maldade alheia, passe a me definir como ser humano. Eu quero ser a pessoa que eu mesmo desejo ser, de acordo com as minhas próprias possibilidades existenciais. Quero resguardar o meu poder de escolha em algo cuja importância não tem paralelo com nada mais: a compreensão que temos de nós mesmos. Se matam alguém que amo e eu passo a defender a pena de morte e outros desvarios, que antes repudiava, a maldade venceu. Alguém decidiu por mim.
Termino estas breves e frouxas reflexões lembrando uma particularidade científica, que provavelmente passa despercebida pela maioria. Se quisermos, ela também pode inspirar metáforas. Trata-se de uma particularidade capaz de provar que o copo meio cheio, meio vazio, na verdade nos enseja um falso dilema, porque o copo sempre está completamente cheio, a menos que estivéssemos no vácuo. Mas no vácuo não sobreviveríamos.
Pessimista convicto, eu não sei se esse detalhe é capaz de levar à vitória os otimistas, mas provavelmente a vida como é, a natureza, os fatos, tudo isso realmente tem a capacidade de nos ensinar alguma coisa. Resta saber se queremos ver as coisas como são ou se preferimos nos concentrar nas aparências.
_________________________________
1 O genocídio constitui uma prática de Estado, clandestina porém real e deliberada, segundo denunciam as criminologias críticas, sendo uma questão particularmente central na obra de Eugenio Raúl Zaffaroni.
2 Para quem não sabe, esta expressão foi extraída da canção "Haiti", de Caetano Veloso, gravada por ele e Gilberto Gil.
Nos meus longos anos de dinâmicas de grupo, também fui exposto a uma técnica mais matreira e menos inteligente: exibia-se um cartaz branco com um ponto/risco/sujeira no centro e se perguntava o que a pessoa via. O objetivo era induzi-la a se referir ao ponto/risco/sujeira para "surpreendê-la" com um comentário moralizador, do tipo: "Você enxerga apenas o risco e não presta atenção na imensidão de limpeza que existe em redor?"
Nos últimos dois dias, uma tragédia urbana trouxe à baila esta questão. Refiro-me ao caso de Jaime Gold, médico de 55 anos assassinado a facadas enquanto pedalava na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, vitimado por assaltantes adolescentes, mesmo sem reagir à abordagem.
Para um humanista como eu, uma situação dessas seria horrenda em qualquer contexto e não deveria acontecer nunca. Já para um criminólogo como eu, sem olvidar o horror inerente ao desperdício de uma vida humana, não há como ignorar que muitas pessoas são brutalmente assassinadas todos os dias, ganhando atenção apenas dos jornais sanguinolentos que se locupletam do sofrimento alheio, sem qualquer respeito por ele. Mas o caso ganhou repercussão nacional porque a vítima foi um cidadão produtivo, um homem branco, um médico, que se exercitava em um ponto turístico da cidade mais badalada do país. Quando a violência bate à porta da casa grande, surge um escândalo. O mesmo não se diga do genocídio1 diário dos meninos negros (e quase pretos de tão pobres2) por todo o país.
Amplamente divulgado o caso, a reação natural do brasileiro médio foi a de enfatizar a adolescência do latrocida para concluir pela necessidade de se reduzir a maioridade penal no Brasil. Adeptos de movimentos de lei e ordem são sempre assim: reativos, um sintoma de sua baixa capacidade e total aversão à reflexão, notadamente a de longo prazo e permeável ao confronto de visões opostas. O mural da moralidade brasileira, que atende pelo nome de Facebook, foi-se enchendo de manifestações nesse sentido.
De ontem para hoje, contudo, as postagens que proliferaram tinham como mote o contundente depoimento de Márcia Amil, ex-esposa e amiga de Gold, que se declarou frontalmente contrária à redução da maioridade penal e, de quebra, ainda lembrou os não-médicos assassinados todos os dias além da Zona Sul (leia aqui). Um regozijo para os meus colegas avessos ao punitivismo irracional.
Em consequência, meu mural no Facebook hoje divide as pessoas entre aquelas que replicam manchetes sobre o crime em si e aquelas que repercutem a expressa contrariedade de Amil à redução da maioridade penal. Tudo sintoma. Os primeiros, claro, agem como se dessem a todos nós uma advertência: Amanhã pode ser você. Tema e force as autoridades a combater o crime, enrijecendo a legislação penal, que é o único (ou o melhor) jeito.
A posição de Amil não surpreende. A novelista Glória Perez, que teve a filha Daniella assassinada em 1992, um dos casos mais célebres da literatura criminal brasileira, também se manifestou publicamente contra a pena de morte. E era uma mãe falando, alguém que teve o poder de estar à frente de uma campanha para arrecadar 1,3 milhão de assinaturas em diferentes Estados do país, gerando o primeiro projeto de lei de iniciativa popular a se tornar lei efetiva, que segue sendo o único em matéria penal (veja aqui). A Lei n. 8.930, de 6.9.1994, entrou em vigor apenas um ano e oito meses após o crime.
A atitude de mulheres como Amil e Perez desvela algo em que tenho pensado muito, à medida que avançam os meus anos de docência e vejo muitos de meus ex-alunos se enraizando na sopa geral do clamor por maior punição: eu não quero que crimes brutais, comigo ou com estranhos, inspirem em mim a irracionalidade punitiva porque eu não quero que a maldade, notadamente a maldade alheia, passe a me definir como ser humano. Eu quero ser a pessoa que eu mesmo desejo ser, de acordo com as minhas próprias possibilidades existenciais. Quero resguardar o meu poder de escolha em algo cuja importância não tem paralelo com nada mais: a compreensão que temos de nós mesmos. Se matam alguém que amo e eu passo a defender a pena de morte e outros desvarios, que antes repudiava, a maldade venceu. Alguém decidiu por mim.
Termino estas breves e frouxas reflexões lembrando uma particularidade científica, que provavelmente passa despercebida pela maioria. Se quisermos, ela também pode inspirar metáforas. Trata-se de uma particularidade capaz de provar que o copo meio cheio, meio vazio, na verdade nos enseja um falso dilema, porque o copo sempre está completamente cheio, a menos que estivéssemos no vácuo. Mas no vácuo não sobreviveríamos.
Pessimista convicto, eu não sei se esse detalhe é capaz de levar à vitória os otimistas, mas provavelmente a vida como é, a natureza, os fatos, tudo isso realmente tem a capacidade de nos ensinar alguma coisa. Resta saber se queremos ver as coisas como são ou se preferimos nos concentrar nas aparências.
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1 O genocídio constitui uma prática de Estado, clandestina porém real e deliberada, segundo denunciam as criminologias críticas, sendo uma questão particularmente central na obra de Eugenio Raúl Zaffaroni.
2 Para quem não sabe, esta expressão foi extraída da canção "Haiti", de Caetano Veloso, gravada por ele e Gilberto Gil.
quarta-feira, 20 de maio de 2015
Alguém sabe disso?
Se nenhum imprevisto ocorrer, em menos de um dia minha mãe voltará para casa após mais uma temporada de internação hospitalar. Desde novembro passado, já é a terceira vez, totalizando 34 dias.
A cada nova jornada nessas casas de sofrimento que são os hospitais, alguma coisa nova aprendemos. Por exemplo: minha mãe sofreu um edema agudo de pulmão e precisou instalar um dreno no local. Os dias subsequentes ao procedimento cirúrgico são de muita dor, o que levou o médico a prescrever o medicamento Dimorf (morfina), administrado por via oral. O resultado foram dois dias de vômitos e incapacidade de alimentação. Já muito debilitada, pelas doenças e pelos tratamentos, minha mãe obviamente se fragilizou ainda mais.
A via oral foi substituída pela injetável e o Dimorf foi trocado pelo Tramal, que é mais leve, porém tem o mesmo princípio ativo. As violentas náuseas prosseguiram. Até que apareceu uma farmacêutica e informou que o analgésico deve ser administrado no soro, muito lentamente, ao longo de uma hora e meia. Se adotado esse procedimento, com Dimorf ou Tramal, não haveria enjoo. E... voilà: as náuseas passaram e minha mãe voltou a se alimentar. Muito pouco, que é só o que consegue, mas pelo menos voltou a sustentar no estômago o alimento ingerido. Sem falar que o mal-estar foi eliminado.
O primeiro sentimento diante disso é de alívio, naturalmente. Mas depois bate uma revolta, sabe? Tantos profissionais de saúde, equipes de enfermagem se revezando dia após dia e ninguém sabia que ministrar o analgésico lentamente poderia ser a solução simplória de um problema grave? Ninguém? Será que estamos lidando com uma informação assim tão restrita? Será que minha mãe, em 2015, foi o primeiro ser humano no mundo a enfrentar problema semelhante? Será que a persistência de um quadro desfavorável, ao longo de dois dias, não poderia mobilizar os profissionais a buscar uma solução? A ser mais proativos?
Os sentimentos são muito contraditórios, além de intensos. Este episódio entra na longa lista de perguntas que poderíamos fazer aos responsáveis, no dia do Juízo Final. Mas como não estamos lá, eu me pergunto se vale a pena comprar essa briga. Qual seria a utilidade, agora? Seja como for, eu realmente não estou em condições de pensar nisso por enquanto.
Neste momento, tudo o que quero é tomar minha mãe pelo braço e levá-la para casa. Depois penso no resto.
A cada nova jornada nessas casas de sofrimento que são os hospitais, alguma coisa nova aprendemos. Por exemplo: minha mãe sofreu um edema agudo de pulmão e precisou instalar um dreno no local. Os dias subsequentes ao procedimento cirúrgico são de muita dor, o que levou o médico a prescrever o medicamento Dimorf (morfina), administrado por via oral. O resultado foram dois dias de vômitos e incapacidade de alimentação. Já muito debilitada, pelas doenças e pelos tratamentos, minha mãe obviamente se fragilizou ainda mais.
A via oral foi substituída pela injetável e o Dimorf foi trocado pelo Tramal, que é mais leve, porém tem o mesmo princípio ativo. As violentas náuseas prosseguiram. Até que apareceu uma farmacêutica e informou que o analgésico deve ser administrado no soro, muito lentamente, ao longo de uma hora e meia. Se adotado esse procedimento, com Dimorf ou Tramal, não haveria enjoo. E... voilà: as náuseas passaram e minha mãe voltou a se alimentar. Muito pouco, que é só o que consegue, mas pelo menos voltou a sustentar no estômago o alimento ingerido. Sem falar que o mal-estar foi eliminado.
O primeiro sentimento diante disso é de alívio, naturalmente. Mas depois bate uma revolta, sabe? Tantos profissionais de saúde, equipes de enfermagem se revezando dia após dia e ninguém sabia que ministrar o analgésico lentamente poderia ser a solução simplória de um problema grave? Ninguém? Será que estamos lidando com uma informação assim tão restrita? Será que minha mãe, em 2015, foi o primeiro ser humano no mundo a enfrentar problema semelhante? Será que a persistência de um quadro desfavorável, ao longo de dois dias, não poderia mobilizar os profissionais a buscar uma solução? A ser mais proativos?
Os sentimentos são muito contraditórios, além de intensos. Este episódio entra na longa lista de perguntas que poderíamos fazer aos responsáveis, no dia do Juízo Final. Mas como não estamos lá, eu me pergunto se vale a pena comprar essa briga. Qual seria a utilidade, agora? Seja como for, eu realmente não estou em condições de pensar nisso por enquanto.
Neste momento, tudo o que quero é tomar minha mãe pelo braço e levá-la para casa. Depois penso no resto.
segunda-feira, 11 de maio de 2015
Twitterítica XXXIV
Devo estar evoluindo. Nos últimos dias, o que mais fiz foi calar a voz ou apagar textos antes de me expressar, para prevenir melindres. Mas eu preferia chutar bundas.
Twitterítica XXXIII
Um mix de sentimentos ruins procurando um alvo. Mãe internada e esta sensação de que tudo dá errado.
quarta-feira, 6 de maio de 2015
Qual o propósito?
Dia desses, eu me preparava para uma aula em que faria uma contextualização acerca de crimes sexuais e mencionei a minha esposa que abordaria a questão das cantadas de rua que as mulheres sofrem. Ela me sugeriu, não sei se brincando ou a sério, que exibisse o vídeo "Cantada", do Porta dos Fundos. Apesar de ver relação com o tema da aula, nem cogitei de fazer a exibição, face ao palavreado chulo do esquete (aqui o vídeo). Escolado, sei que na hora as pessoas riem, mas é melhor não dar margem a posteriores melindres.
Recordei-me disto ao tomar conhecimento de que, segundo entendera a princípio, uma professora teria dado um poema erótico para seus alunos da 5ª série, em uma escola municipal de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Lendo a matéria, descobri que, na verdade, o poema foi dado pela vice-diretora, em ocasião em que a professora da turma havia faltado. A notícia, exígua, não fornece maiores informações, então estou supondo que, diante da ausência da professora, a vice-diretora entrou na turma para suprir uma emergência e, portanto, tomou uma decisão sem planejamento. Foi no impulso ou, até, tentou causar algum impacto. O fato é que, agora, vai responder a um processo disciplinar e pode sofrer uma punição, em tese, até mesmo de demissão.
Não é a primeira vez que profissionais da educação se envolvem em confusão porque adotaram, em sala de aula, algum recurso que remete ao sexo. O meu comentário original seria no sentido de que não vejo mal, honestamente, nesse tipo de expediente, assim como não vejo mal em utilizar humor, expor imagens chocantes (sou de professor de direito penal, ora!), cantar, apresentar performances, etc. O problema não é o recurso, mas a finalidade a que se destina. Se existe uma finalidade pedagógica clara e refletida, se o educador, de boa-fé, supõe que pode favorecer algum conteúdo ou habilidade com certa estratégia, não vejo mal em seu emprego. Mesmo que, eventualmente, estejamos falando de crianças.
Entendam, por favor, que estou longe de ser um professor permissivo. Eu não usaria um poema falando de "pau" e "xota" para crianças de 10, 11 anos. Assim como não quis expor meus alunos adultos aos tabuísmos de um vídeo de humor (que, provavelmente, eles conhecem, assim como inúmeros outros tão ou mais pornofônicos). Assim como não apresento imagens chocantes em minhas aulas, mesmo havendo alguma lógica nisso, porque sei que fere a sensibilidade de muitos alunos e qualquer proveito informativo a ser extraído disso eu poderia obter usando outra estratégia.
Meu objetivo original para esta postagem, contudo, perdeu-se. Agora estou pensando que a vice-diretora tomou essa atitude sem um critério razoável e, com isso, acabou se expondo às críticas dos pais. Sempre há pais ultramoralistas, ao menos quando é para criticar os outros. A escola não pode falhar, em nenhuma medida, no processo de educação que a família brasileira sistematicamente lhe transfere de forma integral.
Isto nos remete, contudo, a uma outra questão: as pessoas continuam, em 2015, a tratar o sexo com a mentalidade da Idade Média. Ele é sujo, pecaminoso e devemos fingir que não faz parte de nossas vidas. Quando ele aparece na escola, então, é um Deus nos acuda. Mas será que isso realmente se justifica?
Um pouco acima da faixa etária das crianças que leram o tal poema, outro dia, aqui em Belém, alunos de uma escola particular gravaram um videozinho usando o aplicativo para smartphone Dubsmash, dublando um funk com letra tosca e sexual (perdoem o pleonasmo) no qual se diz que "a novinha" quer pau. Enquanto o moleque imberbe dizia "pau, ela quer pau", a coleguinha se abaixava como se fosse abocanhar-lhe o membro que daqui a mais alguns anos será efetivamente viril. Degradante, a meu ver, mas real. A escola brasileira quer jogar o que para baixo do tapete?
Penso que é mais interessante colocar o sexo na agenda das instituições de ensino e tentar usar o espaço da escola, cenário das relações horizontais que, ao longo da vida, tornam-se mais importantes para o indivíduo do que as verticais, para falar de consequências, de amor-próprio, de responsabilidade. Nesse sentido, até mesmo o poema "Ciuminho básico" poderia ensejar reflexões, tais como você acha saudável o tipo de relação sugerida no poema?
Por conseguinte, acho que as famílias estão erradas com o estardalhaço. E a escola está errada por se acovardar diante das relações clientelistas que hoje presidem o já complicado trabalho do educador.
No mais, minha mente contrária a desvarios punitivistas ainda lastima que a profissional esteja ameaçada até de demissão, ao menos em tese, quando a responsabilização, se houver (não estou certo nem de que ela mereça uma punição), deve levar em conta uma série de fatores, inclusive a condução da pessoa no trabalho até aqui e as consequências reais de seus atos. Será que alguém perguntou às crianças se elas se sentiram ofendidas? Ou foram somente os pais, os mesmos que deixam os mesmos filhos vendo sexo implícito na novela e fazem vista grossa aos filmes, revistas e à navegação na internet?
Concluo dizendo que achei o poema interessante. Não bonito, não instigante, mas interessante. No estilo, prefiro Elisa Lucinda. E realmente não tenho problema com palavrões, que falo quase o tempo todo. Já publiquei aqui no blog, inclusive, o irreverente "Soneto do caju", do meu poeta favorito, Vinícius de Morais. Como disse antes, tudo é uma questão de propósito. Especialmente se há crianças por perto.
Ciuminho básico (Ana Elisa Ribeiro)
escuta
calado
a proposta rude
deste meu
ciúme:
vou cercar tua boca
com arame farpado
pôr cerca elétrica
ao redor dos braços
na envergadura
pra bloquear o abraço
vou serrar teus sorrisos
deixar apenas os sisos
esculhambar com teus olhos
furá-los com farpas
queimar os cabelos
no pau acendo uma tocha
que se apague apenas
ao sinal da minha xota
finco no cu uma placa
"não há vagas, vagabundas"
na bunda ponho uma cerca
proíbo os arrepios
exceto os de medo
e marco no lombo, a brasa,
a impressão única do meu dedo.
PS - O resultado de suscitar o tema do assédio de rua, na aula, por si só vale uma postagem.
Recordei-me disto ao tomar conhecimento de que, segundo entendera a princípio, uma professora teria dado um poema erótico para seus alunos da 5ª série, em uma escola municipal de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Lendo a matéria, descobri que, na verdade, o poema foi dado pela vice-diretora, em ocasião em que a professora da turma havia faltado. A notícia, exígua, não fornece maiores informações, então estou supondo que, diante da ausência da professora, a vice-diretora entrou na turma para suprir uma emergência e, portanto, tomou uma decisão sem planejamento. Foi no impulso ou, até, tentou causar algum impacto. O fato é que, agora, vai responder a um processo disciplinar e pode sofrer uma punição, em tese, até mesmo de demissão.
Não é a primeira vez que profissionais da educação se envolvem em confusão porque adotaram, em sala de aula, algum recurso que remete ao sexo. O meu comentário original seria no sentido de que não vejo mal, honestamente, nesse tipo de expediente, assim como não vejo mal em utilizar humor, expor imagens chocantes (sou de professor de direito penal, ora!), cantar, apresentar performances, etc. O problema não é o recurso, mas a finalidade a que se destina. Se existe uma finalidade pedagógica clara e refletida, se o educador, de boa-fé, supõe que pode favorecer algum conteúdo ou habilidade com certa estratégia, não vejo mal em seu emprego. Mesmo que, eventualmente, estejamos falando de crianças.
Entendam, por favor, que estou longe de ser um professor permissivo. Eu não usaria um poema falando de "pau" e "xota" para crianças de 10, 11 anos. Assim como não quis expor meus alunos adultos aos tabuísmos de um vídeo de humor (que, provavelmente, eles conhecem, assim como inúmeros outros tão ou mais pornofônicos). Assim como não apresento imagens chocantes em minhas aulas, mesmo havendo alguma lógica nisso, porque sei que fere a sensibilidade de muitos alunos e qualquer proveito informativo a ser extraído disso eu poderia obter usando outra estratégia.
Meu objetivo original para esta postagem, contudo, perdeu-se. Agora estou pensando que a vice-diretora tomou essa atitude sem um critério razoável e, com isso, acabou se expondo às críticas dos pais. Sempre há pais ultramoralistas, ao menos quando é para criticar os outros. A escola não pode falhar, em nenhuma medida, no processo de educação que a família brasileira sistematicamente lhe transfere de forma integral.
Isto nos remete, contudo, a uma outra questão: as pessoas continuam, em 2015, a tratar o sexo com a mentalidade da Idade Média. Ele é sujo, pecaminoso e devemos fingir que não faz parte de nossas vidas. Quando ele aparece na escola, então, é um Deus nos acuda. Mas será que isso realmente se justifica?
Um pouco acima da faixa etária das crianças que leram o tal poema, outro dia, aqui em Belém, alunos de uma escola particular gravaram um videozinho usando o aplicativo para smartphone Dubsmash, dublando um funk com letra tosca e sexual (perdoem o pleonasmo) no qual se diz que "a novinha" quer pau. Enquanto o moleque imberbe dizia "pau, ela quer pau", a coleguinha se abaixava como se fosse abocanhar-lhe o membro que daqui a mais alguns anos será efetivamente viril. Degradante, a meu ver, mas real. A escola brasileira quer jogar o que para baixo do tapete?
Penso que é mais interessante colocar o sexo na agenda das instituições de ensino e tentar usar o espaço da escola, cenário das relações horizontais que, ao longo da vida, tornam-se mais importantes para o indivíduo do que as verticais, para falar de consequências, de amor-próprio, de responsabilidade. Nesse sentido, até mesmo o poema "Ciuminho básico" poderia ensejar reflexões, tais como você acha saudável o tipo de relação sugerida no poema?
Por conseguinte, acho que as famílias estão erradas com o estardalhaço. E a escola está errada por se acovardar diante das relações clientelistas que hoje presidem o já complicado trabalho do educador.
No mais, minha mente contrária a desvarios punitivistas ainda lastima que a profissional esteja ameaçada até de demissão, ao menos em tese, quando a responsabilização, se houver (não estou certo nem de que ela mereça uma punição), deve levar em conta uma série de fatores, inclusive a condução da pessoa no trabalho até aqui e as consequências reais de seus atos. Será que alguém perguntou às crianças se elas se sentiram ofendidas? Ou foram somente os pais, os mesmos que deixam os mesmos filhos vendo sexo implícito na novela e fazem vista grossa aos filmes, revistas e à navegação na internet?
Concluo dizendo que achei o poema interessante. Não bonito, não instigante, mas interessante. No estilo, prefiro Elisa Lucinda. E realmente não tenho problema com palavrões, que falo quase o tempo todo. Já publiquei aqui no blog, inclusive, o irreverente "Soneto do caju", do meu poeta favorito, Vinícius de Morais. Como disse antes, tudo é uma questão de propósito. Especialmente se há crianças por perto.
Ciuminho básico (Ana Elisa Ribeiro)
escuta
calado
a proposta rude
deste meu
ciúme:
vou cercar tua boca
com arame farpado
pôr cerca elétrica
ao redor dos braços
na envergadura
pra bloquear o abraço
vou serrar teus sorrisos
deixar apenas os sisos
esculhambar com teus olhos
furá-los com farpas
queimar os cabelos
no pau acendo uma tocha
que se apague apenas
ao sinal da minha xota
finco no cu uma placa
"não há vagas, vagabundas"
na bunda ponho uma cerca
proíbo os arrepios
exceto os de medo
e marco no lombo, a brasa,
a impressão única do meu dedo.
PS - O resultado de suscitar o tema do assédio de rua, na aula, por si só vale uma postagem.
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