quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Catarse

Um ano não é uma pessoa. Não é um ser senciente. Um ano não é, sequer, tempo, pois é apenas uma convenção humana. O resultado de uma decisão tão arbitrária quanto a de 1818, quando o segundo passou a ser definido como 9.192.631.770 períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133, seja lá o que isso for.

Faltam pouco mais de 10 minutos para o final do ano de 2015, essa convenção que se tornou minha inimiga. Penso nele como se fosse alguém, imbuído do firme propósito de nos fazer mal. Mas é hora de isso acabar. Aproveitando a convenção humana, é hora de virar a página. A dor não acaba na virada do ano, mas podemos nos propor a ter coragem de seguir em frente. Mais do que simples palavras.

É hora de recomeçar. Seja como for, venha o que vier. Porque virá, de qualquer jeito. Inexoravelmente, como sempre. Chega de choro, de sofrimento e de lamúrias. Chega de sombras. Que venha um novo ano e com ele a vida. E que seja uma vida feliz. Para todos nós. Inclusive para mim.

As horas finais

Torci muito para que 2011 acabasse. Foi um ano difícil, a despeito de seus problemas serem basicamente objetivos. Logo em janeiro de 2012 as coisas começaram a entrar nos eixos e os tais problemas foram contornados.

Torci muito para que 2014 acabasse. Foi o ano da roda-viva emocional, ou da montanha-russa, se preferir. No dia 31 de janeiro, a notícia do câncer de minha mãe. Depois vieram as consultas, os exames, a radioterapia, a ilusão da cura. Em junho, comemoramos seu aniversário com um sentimento de vitória. Estávamos vigilantes, mas em paz. Ao final de novembro, veio a notícia da metástase. Em dezembro trocamos de oncologista e acreditamos que podíamos lutar. Saímos daquela consulta, a menos de uma semana do natal, com o sentimento de que tempos dificílimos viriam, mas estaríamos juntos lutando.

Daí veio 2015 e, enfim, nada deu certo. Ele pode ser definido como o ano do medo, das derrotas, das notícias cada vez piores. Por fim, como o ano da morte, da separação e do vazio. Não há termo de comparação para ele. Um ano que acabou com meses de antecedência e, ainda assim, subsistiu como um zumbi medonho, causando seus malefícios. Mas, finalmente, ele vai acabar. Em menos de 15 horas.

Não tenho expectativas. Vivo repetindo que não há nada ruim que não possa ficar pior e os últimos dois anos serviram de lições sucessivas desse princípio. Doravante, é manter a vigilância tentando não a transformar em uma paranoia.

Como dizia Renato Russo, na canção "Via Láctea", eu "queria ser como os outros/ e rir das desgraças da vida/ ou fingir estar sempre bem/ ver a leveza das coisas com humor". Realmente queria. Admiro pessoas positivas e otimistas, mas elas me parecem um ideal inalcançável. Para todos que me vêm encher de palavras de você também pode, sempre respondo que não existe uma chave que eu possa girar ou um botão que eu possa apertar para me transformar nisso. Eu não sei como fazer. Esse é o ponto.

Mas se os anos são apenas uma ideia de fatiar o tempo, como sugere Carlos Drummond de Andrade, mais uma fatia se vai. E o efeito psicológico do término pode ser importante para arejar a mente. Nem que seja pelo esforço das pessoas em desejar um futuro melhor, a partir da meia-noite. Que seus desejos se realizem. É com isso que contamos.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

De governos, esmolas e impressões populares

Existe um país que paga, todos os meses, um certo valor para famílias que possuam filhos crianças. Paga não apenas para cidadãos nascidos no país, como também para estrangeiros que ali fixaram residência. Trata-se de um país capitalista, organizado como Estado federal, governado há alguns anos por uma mulher linha dura, que não figuraria em nenhum catálogo de beleza (se isto importasse). Tal mulher enfrenta forte queda em sua popularidade no segundo mandato, devido ao desempenho econômico de seu país bem abaixo do esperado, o que levou seu partido a sofrer graves perdas nas eleições estaduais. Ela traz no seu passado ligações com organizações socialistas e com movimentos sociais que se opunham ao poder governamental opressivo que conheceu em sua juventude, embora hoje não possa ser, de modo algum, considerada de esquerda1.

Terninho vermelho: mera coincidência
Sim, eu me refiro à Alemanha. País de primeiríssimo mundo, quarta maior economia segundo o Banco Mundial (2014)2, nação industrializada, onde se situam algumas das universidades mais antigas e respeitadas do mundo, líder em diversos campos do desenvolvimento científico e tecnológico3, com um povo altamente instruído, preocupadíssimo com o meio ambiente e, tanto quanto é possível generalizar, honesto. Um país densamente povoado, com o quinto melhor índice de desenvolvimento humano (IDH) do mundo em 2013, que oferece a seus cidadãos elevados padrão de vida e nível de segurança social e que disponibiliza "o segundo maior orçamento anual de ajudas ao desenvolvimento no mundo"4. Um país que gosta de receber estudantes do mundo inteiro para usufruir da excelência de suas instituições educacionais.

Os invejáveis índices de educação e de qualidade de vida da Alemanha, após duas guerras mundiais que lhe devastaram a economia e o território, não foram obtidos graças a uma busca desenfreada por desenvolvimento exclusivamente econômico, muito menos virando as costas para as necessidades imediatas dos seres humanos. Os educados alemães sabem que es ist muss beibringen zu fischen, sondern manchmal notwendig ist, um die Fische zu geben (traduzir isto é meu irônico desafio) e talvez por isso não lhes seja de praxe cultivar ódios de classe, como se vê em outras nações.

Família beneficiária do Kindergeld, no sítio oficial. Como no Brasil,
a publicidade institucional também prefere arianos.
Voltamos, assim, ao que muitos brasileiros chamariam de "bolsa esmola", uma provável estratégia de Angela Merkel para se reeleger. Trata-se de uma política social chamada Kindergeld, literalmente "dinheiro da criança" (habitualmente traduzido como "abono da família"), cujo sítio oficial é este: http://www.kindergeld.org/

Como talvez o seu alemão esteja arranhado, extraí do sítio acima algumas informações, para lhe dar um panorama do que esse benefício é. Trata-se de um valor pago às famílias como forma de assegurar as necessidades básicas das crianças. Mas por "crianças" entenda alemãezinhos de até 18 anos (podendo chegar a 27, se estiver fazendo curso superior ou profissionalizante, ou ainda em caso de insuficiência de renda). A partir de 1º.1.2016, o valor será de no mínimo 190 euros, podendo chegar a 221 euros se houver 4 ou mais filhos.

O classe média típico talvez se impressione de saber que, já em 2007, existiam na Alemanha cerca de 154 políticas públicas de auxílio à formação e à manutenção das famílias5, tais como o Elterngeld, pagamento de 67% da renda líquida do alemão que se licencie do emprego para cuidar do filho, em casa. E também tem a garantia do emprego, quando deseje retornar.

Outra medida, instituída em 2013, foi o Betreuungsgeld, subsídio de até 150 euros mensais pagos a famílias que tenham crianças até 3 anos. A finalidade é estimular que alguém da família fique em casa cuidando da criança (promovendo educação em tempo integral). Assim, não haverá necessidade de disputar uma vaga no concorrido sistema de berçários e pré-escolas6. Acerca deste benefício específico, vale a pena conferir a postagem de um blog que nos oferece uma aguda crise à mentalidade de classe média, lá e cá, que vale a pena ler: http://tudodebonn.blogspot.com.br/2012/11/betreuungsgeldkindergeld-quem-paga-por.html.

Tenho observado que o que separa o Estado brasileiro de outros que supostamente são admirados aqui é uma glorificação dos aspectos mais crueis do capitalismo. Nos países ditos de primeiro mundo, convictamente capitalistas, existem políticas sólidas de assistência social, de amparo aos mais pobres, que são recebidas pelas populações desses países como algo bom e útil. Aqui, muito ao contrário, há sempre a ridicularização e a acusação de má-fé, basicamente no sentido de que tais políticas criarão uma legião de vagabundos pendurados no Estado. Passados todos estes anos, foi mesmo isso que aconteceu?

Gostaria de saber o que pensam os críticos dessas políticas. Caso se manifestem, não se esqueçam do quanto são deslumbrados pela Europa.

_______________________________
1 Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Angela_Merkel
2 Cf. http://economia.terra.com.br/pib-mundial/
3 Procure se informar sobre o Instituto Fraunhofer, p. ex. Para começo de conversa: http://super.abril.com.br/ciencia/instituto-fraunhofer-ciencia-medida-440905.shtml. Se seu alemão estiver em dia: http://www.fraunhofer.de/en.html
4 Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha
5 A informação comparece em http://www.dw.com/pt/como-o-estado-alem%C3%A3o-ap%C3%B3ia-as-fam%C3%ADlias/a-2370133 
6 Cf. http://www.betreuungsgeld-aktuell.de/

Dos pequenos saberes que podem ser importantes

Já mencionei meu professor de direito penal umas tantas vezes aqui no blog e, claro, sempre manifesto minha gratidão por tudo que aprendi com o grande Hugo Rocha. Não poderia ser diferente, afinal fui seu monitor, então tive a oportunidade de aprender um pouco mais do que o repassado em sala de aula. Além disso, se me tornei professor da mesma disciplina, parece muito natural que eu tenha umas tantas lembranças.

Hugo Rocha, conosco, era um preciosista. Queria que as coisas fossem certinhas, no modo como são ditas, no modo como são escritas. Adivinhem? Eu me tornei um preciosista. Logo na primeira aula, informo sobre como serei chato com o uso estritamente adequado dos termos técnicos. Mas não cobro como ele fazia. Deixo as coisas mais livres e sempre me pergunto se estou certo, pecando por omissão, talvez. Afinal, aprendi em sala de aula um sem número de coisas tão simples, porém tão certas, que acredito que todo estudante de direito deveria saber também. Mas não sabem.

Segue uma pequena lista dos detalhes que aprendi em minhas aulas regulares de direito penal.

1 Que na redação legislativa usamos números ordinais até o nono e cardinais a partir do décimo: "artigo 1º" (e não "artigo um"), "§ 9º" (e não "parágrafo nove"), "artigo dez" (e não "artigo décimo").

Anos mais tarde, a Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998, veio a tornar lei o que antes eram rotinas. Trata-se de uma lei das mais ignoradas que existem e, para minha fúria, o próprio governo federal deixou de observá-la e redige as leis de modo totalmente desconforme. Fica aqui a minha recomendação: conheça e aplique a LC 95!

2 Que a primeira parte de um artigo, a qual contém as normas mais importantes, chamam-se caput (pronuncia-se "cáput") e dá vergonha alheia quando um aluno não sabe do que se trata. Os artigos se dividem em incisos (em geral para fins de listagens ou normas mais diretas) ou em parágrafos (que normalmente apresentam um conteúdo mais autônomo). Os parágrafos também se dividem em incisos, se for o caso. As alíneas são divisões dos incisos.

3 Os incisos são sempre indicados por algarismos romanos (e, portanto, estão em maiúsculas) e as alíneas são representadas por letras minúsculas, na sequência do alfabeto. Eventualmente, as alíneas podem se dividir em itens ou figuras.

4 Que o símbolo do parágrafo representa duas letras S e significa "signus sectionis", ou seja, sinal de separação. De acordo com o Dicionário Houaiss, trata-se da pequena secção de um discurso ou de um capítulo, notadamente de um artigo de lei ou regulamento, usado para expressar essa sua condição de incompletude.

5 Que os parágrafos devem ser grafados, obrigatoriamente, por seu símbolo, quando indicados numericamente: "§ 1º" e não "parágrafo 1º" nem "parágrafo primeiro". Por outro lado, o parágrafo único sempre deve ser grafado por extenso e nunca "§ único", admitindo-se a abreviatura ("p.u.").

6 Que, em latim, o "t" antes de "i" tem som de "s", de modo que imputatio se pronuncia "imputácio" e notitia, "notícia". Chama a minha atenção como os alunos frequentemente não aprendem por observação: eles até veem o professor dizer certas coisas, mas não as incorporam. De repente me lembrei do dia em que estava explicando um trabalho e usei o vocábulo "improfícuo". Notei uma colega anotar a palavra em seu caderno (e por isso me recordo da palavra até hoje). Ela certamente consultou o dicionário e aprendeu. Essa é a atitude que esperamos.

Essas regras tão singelas ficaram marcadas em minha mente a ponto de jamais terem sido esquecidas. E elas não foram nada senão informações secundárias em meio a aulas de rotina. Por isso devemos valorizar a curiosidade e a vontade de aprender. Não apenas o prato do dia, mas inclusive o modo como o prato é servido. Creio que esta seja uma dica que valha a pena anotar.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

2016 começaria bem, talvez...

...se não tivéssemos essas reportagens imbecis sobre previsões astrológicas, previsões de pais de santo ou outros tipos de "videntes" e, claro, as indefectíveis matérias sobre o primeiro bebê do ano. Quem se importa?

Tudo asneira.

E 2016 talvez se desenvolvesse melhor se os brasileiros parassem de citar esse tal Wesley Safadão toda hora. Esta semana, vi uma referência a "Safadeus". Superou todos os limites. Não é a zoeira que não tem limites: é a estupidez, mesmo.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Sessão de psicanálise IV: Se amor e sexo se resumem a isso

Preciso tirar o chapéu para o sexto episódio da segunda temporada de Psi, originalmente exibido em 8 de novembro último. Não se trata de simples entretenimento, mas daquele tipo de programa que, ao terminar, inspira naturalmente uma reflexão pessoal, que por sua vez conduz a uma necessidade de instruir outras pessoas. Por isso, peço aos interessados que leiam esta postagem até o final. Mas fiquem desde logo cientes de que toda ela é um grande spoiler. Para me fazer entender, preciso destacar detalhes que revelam o roteiro totalmente. Ao final, creio que entenderão meus motivos.

"O que aconteceu com você?" foi dirigido pela premiada cineasta Laís Bodanzky, que tem em seu currículo filmes como Bicho de 7 cabeças e Chega de saudade. Na trama, vemos uma jovem de 23 anos muito machucada dizer a um policial que fora violentada. Mais tarde, no hospital, ela sussurra as mesmas palavras ao protagonista, Carlo Antonini: "fui violentada". É assim que o obstinado psicanalista entra em seu caminho e começa a investigar o que ocorreu.

A primeira coisa que me chamou a atenção no episódio foi a explicação sobre o motivo que levou à morte da moça. Por ter dito ao policial que fora estuprada, ele repassou essa informação aos médicos e então a garota acabou em uma maca, no corredor, aguardando atendimento para vítimas de estupro. Nenhuma investigação clínica foi feita, mesmo a paciente estando fraquíssima e quase inconsciente (ou seja, não podia prestar esclarecimentos). É Antonini, com sua fiel escudeira Valentina, ambos médicos também, que identifica uma hemorragia interna. A garota é levada para uma cirurgia de emergência, porém morre. Ao final, Antonini comenta o absurdo: se a moça chegasse inconsciente e ninguém explicasse nada, talvez fizessem uma ressonância e a morte poderia ser evitada! Coisas de hospital público, acrescento.

O legista explica a Antonini que não há nenhum sinal de estupro. A morte fora provocada por uma hemorragia interna devido à lesão de órgãos, p. ex. um baço rompido. Houve uma tremenda ação contundente, porém não um espancamento. Não há sinais de agressão tampouco de defesa. Em off, o legista aponta sua conclusão: suicídio. Nosso inquieto psicanalista fica ainda mais agitado e chega ao jovem psicólogo que vinha tratando Lara, a suicida, de sua depressão. O rapaz fica arrasado ao saber que sua primeira paciente se matou.

Juntos, Carlo Antonini, Valentina e o jovem psicólogo mergulham na vida de Lara e percebem que, para ela, o abuso sexual era uma "narrativa fundamental", ou seja, a garota se definia pelos abusos sofridos. Fora a primeira informação dada ao terapeuta: abuso sexual aos 7 anos. A essa altura, qualquer pessoa minimamente informada já pode formular hipóteses razoáveis. Afinal, todo mundo sabe que a esmagadora maioria dos casos de abusos sexual contra crianças ocorre dentro de casa. Os algozes, quando não são parentes, figuram entre as pessoas mais próximas e supostamente de confiança.

Meu palpite se confirma: o abusador era o pai. Não um padrasto, primo ou aparentado, mas o próprio pai. Sem surpresa, vemos que a mãe sabia de tudo e, por omissão, permitiu que os abusos se repetissem. A cena em que ela explica o ocorrido a Antonini, que a recebera achando que poderia ajudá-la a enfrentar o luto, é perturbadora. O marido bebia e, ao chegar em casa, ébrio e fedido, queria sexo. A mulher sentia nojo e, para se livrar disso, passou a colocar a filha na cama do casal. Por algum tempo, funcionou, mas depois o homem começou a molestar a criança.

Como toda pessoa que pratica ou concorre para abusos sexuais, as justificativas logo vêm à tona. Era rápido. Ele logo dormia. Acho que só se esfregava nela, mas nunca virei para olhar. Ela nem entendia. Eu achava que ela nem se lembraria, porque eu não me lembro de nada de minha vida com aquela idade. Uma frase, porém, é reveladora: "eu ficava aliviada, porque não era comigo". Nesse momento, você, telespectador, sente raiva, mas não é fácil definir o contexto. Existe má-fé e uma colossal covardia ali, mas também burrice, o que chega a ser ainda mais desconcertante: será que aquela mulher tinha mesmo capacidade de compreender o que é um abuso sexual? Nós temos? E se não temos, isso não seria ainda mais apavorante?

O fato é que, um dia, sem aviso prévio, Lara se matou. Estava a caminho de uma consulta médica, mas em vez de entrar no consultório, pulou do alto do prédio. Antes, pichou uma parede com os dizeres "Desculpe, mãe, mas não aguento mais". Ela se desculpou com a mãe. Nada sobre o pai, que ainda estava no mesmo lugar.

Aí chegamos ao ponto. Antonini especula que, no dia do suicídio, algo específico aconteceu. Mas não precisava ser nada grandioso. Ele explica que, por ter sido estuprada tão cedo e pelo pai, Lara provavelmente acreditava que amor e sexo se resumiam àquele tipo de relação. Ao abuso. Não havia como confiar em ninguém. E então bastaria que um homem qualquer cruzasse o seu caminho e, por meio de uma cantada, um gesto simples, uma provocação, algo que evocasse o pai, ele a fizesse concluir que, de fato, não havia escapatória. O mundo era aquilo, mesmo. Sem esperança, para que viver?

Foi aí que me pus a refletir. Será possível que eu ou você, peões aleatórios do xadrez da vida, a partir de um único comentário, desses que acreditamos totalmente inócuos, meras brincadeiras, possamos nos tornar a causa pretexto de um suicídio? Ou de outras tragédias? Afinal, nada sabemos acerca de quem passa ao nosso lado na rua. Aquela palavra que para nós é nada pode ser o estopim de uma revolução íntima, de proporções inimagináveis, para aquele desconhecido que nunca vimos nem tornaremos a ver. A perspectiva é assustadora. E nos conclama a pensar em nossa profunda responsabilidade em relação às pessoas em redor, por mais estranhas que nos sejam.

Não sei exatamente como podemos lidar com isso. Obviamente, o objetivo não pode ser criar novas neuroses. Não posso temer minhas palavras e ações a ponto de dosar milimetricamente cada uma delas. É impossível e enlouquecedor. Mas posso agir de boa-fé. Posso tentar não ser leviano. Posso não fazer intervenções desnecessárias. Posso tentar não invadir espaços. Porque nunca saberemos se aquela sombra que vagueia por perto não seria um pote até aqui de mágoa, esperando uma mera desatenção para desaguar, no pior sentido.

Antecedentes no blog:

  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/04/sessao-de-psicanalise.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/06/sessao-de-psicanalise-ii-depois-do-fim.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2015/11/sessao-de-psicanalise-iii-segunda.html

sábado, 26 de dezembro de 2015

A vida não é How to get away with murder


O seriado How to get away with murder (no Brasil, por alguma razão, não se traduz mais o título das séries, então para os desavisados seria "como se safar de um homicídio") foi bem recebido pelo público e pela crítica, quando de seu lançamento em setembro de 2014, já estando na segunda temporada. De lá para cá, recebeu 16 indicações a prêmios, tendo recebido 8, metade dos quais graças à elogiadíssima atuação da protagonista, vivida por Viola Davis (que já contabiliza 8 indicações)1. Aliás, o belíssimo discurso de Davis, ao ser laureada com o Emmy, correu o mundo e sempre merece ser conhecido (aqui, no YouTube).


A trama conta a estória de Annalise Keating, advogada estilo arrasa-quarteirão que leciona direito penal na fictícia Universidade de Middleton, que seria uma das mais importantes escolas de direito dos Estados Unidos. Mas como ela brada logo ao entrar na sala no primeiro dia (no episódio piloto), ela não está interessada em se debruçar sobre as leis ou em aprofundar teorias: ela quer a prática. Daí começa a exibir informações sobre um caso encaminhado aos alunos por e-mail, que eles ignoram tratar-se de um caso em andamento, para o qual a advogada quer que cada aluno engendre uma tese defensória, a qual será exposta à turma em apenas um minuto. O prêmio: um emprego em sua invejada banca advocatícia.

Com isso, a sala de aula se mistura com a carreira imediata e deslancha algo que repudio, mas que é central para a "cultura" americana: a competição. Você não pode ser um perdedor, nem que para isso precise chutar umas bundas. Você precisa ser o famoso self made man e apresentar resultados concretos e rápidos, mesmo que para isso precise renunciar à ética e até à humanidade. Mas quem se importa?

Neste momento, suponho que muitos estudantes de direito estão com os olhinhos cintilando em rostinhos fofos como os desenhados nos mangás da Turma da Mônica Jovem. Eles se perguntam: "por que as minhas aulas de penal não são assim?" E é exatamente isso que me preocupa: como professor de direito penal no mundo real, não na espetaculosa ficção estadunidense, preciso que entendam que o cenário retratado na TV não teria como ser repetido aqui fora.

E por que não? De saída, esqueça a resposta sumária da cabeça colonizada ("porque as universidades americanas são melhores do que as brasileiras"). Não se trata disso nem tampouco de que as universidades A ou B são melhores do que a sua (se é que são). Trata-se, na verdade, de uma questão muito mais ampla. Vamos falar de modelos.

Modelo n. 1: ensino do direito

Não é razoável comparar a sua aula com aquela proferida pela Profa. Keating. Isto porque os estilos estão assentados sobre modelos educacionais gritantemente distintos.

No Brasil, do ensino fundamental ao superior, somos acostumados ao método catedrático, em que um professor, supostamente legitimado por seu conhecimento e experiência, deve ensinar a uma plateia sem esse conhecimento e inexperiente o que ela deve aprender. Trata-se de um método que privilegia a repetição e a memorização e que normalmente se materializa por uma sucessão de comandos gerais (conceitos, classificações, regras, etc.) alternados com exemplos. Se aplicado em sua forma mais seca, esse método desconsidera a contribuição que cada aluno pode oferecer com os conhecimentos que possua, quaisquer que sejam, além de suas vivências. O ensino-aprendizagem se concentra em um fluxo professor " aprendente e depende quase que exclusivamente das escolhas do primeiro. Por isso, é bem fácil encontrar professores questionando esse modelo, sobretudo no ensino superior.

No ensino jurídico americano, as aulas não têm essa natureza de palestras (ou "aulas expositivas dialogadas", quando permitimos a livre intervenção dos alunos). A classe é demandada a participar ativamente, inclusive apresentando o resultado de estudos prévios. Pode ser critério de avaliação o aluno demonstrar que está fazendo suas leituras extraclasse. Daí logo se pode inferir que o método americano é superior, mas precisamos evitar as simplificações descontextualizadas. Ambos os modelos têm suas virtudes e seus problemas.

No começo do último semestre letivo, o CESUPA recebeu a visita do Prof. Spencer Sydow, apesar do nome um brasileiro, que foi pesquisador e professor visitante na Universidade de Buffalo. Com essa experiência, ele nos permitiu perceber que, no Brasil, pecamos pelo excesso e, nos Estados Unidos, pela falta. Segundo ele, nas aulas os professores suscitam questões e pedem que os alunos se manifestem sobre elas. Não ensinam nenhum conceito: pressupõem que você já os conhece, porque era seu dever estudar todo e qualquer conceito, classificação ou regra previamente. Para a aula vão as suas conclusões. O coitado que tentasse lecionar desse jeito aqui seria acusado de não querer dar aula. Pode anotar.

De minha parte,  penso que uma metodologia híbrida, combinando algumas aulas conceituais e outras, mais de cunho prático, seria um caminho interessante para o curso de direito. Então até podemos ter aulas como as da Profa. Keating, mas elas provavelmente seriam exceção. E só poderiam acontecer se todos os alunos assumissem de verdade o compromisso de se preparar para essas aulas. Se o dever de casa não é feito, as boas iniciativas se perdem.

Modelo n. 2: processo penal

O que vemos no seriado é uma sucessão de chicanas que vão acontecendo de acordo com as necessidades dos julgamentos. Temos a estudante contratada que descobre o daltonismo de uma testemunha apenas porque, ao ver uma foto dela no Facebook usando óculos, decidiu caçar todos os oftalmologistas da cidade para ver se encontrava uma informação importante. Não me perguntem por que revelaram a condição de uma paciente para ela: isso é falha de roteiro. Outro estudante se envolve sexualmente com um nerd frustrado para usar seus serviços de hacker, ou seja, estímulo ao mau caratismo profissional, especialmente porque se trataria de prova ilícita. Tudo depende do último lance do julgamento, em uma sucessão de surpresas.

Aqui vai a sua decepção: o processo penal brasileiro, amarrado em fórmulas quase ritualísticas constantes da legislação, não permite tamanhas surpresas. Não existe testemunha desconhecida, documentos de última hora, vídeos cujo conteúdo somente será conhecimento em pleno julgamento, etc. Aqui, as provas devem ser apresentadas com antecedência, para sofrer o contraditório, que é uma garantia constitucional do acusado. Sobretudo em se tratando de tribunal do júri, o desrespeito ao prazo impede a apresentação da prova no julgamento. Se ela for considerada indispensável, o julgamento deve ser adiado.

Portanto, não espere ver um julgamento quase naufragado para um dos lados em que, inesperadamente, aparece uma testemunha dizendo "Luke, eu sou seu pai!" e provocando uma reviravolta. Ou qualquer tipo de documento. Embora, como tudo na vida, haja a margem do imponderável, não é assim que funciona, portanto as chances de um tumulto emocional para quem está apenas assistindo são bem menos prováveis. Chato? Não diria. Há razões plausíveis para esse esforço por controle.

***

No que diz respeito ao seriado em si, trata-se de um bom programa, embora o pequeno contestador que existe em mim tenha algumas ressalvas. A trama é ágil, em ritmo de suspense e de reviravoltas, que é exatamente a formulazinha padrão do cinema e da TV para ganhar público porque... funciona. Aqueles que buscam apenas entretenimento precisam de uma linguagem dramatúrgica simplificada, o que pode incomodar paladares mais exigentes. A mim, pessoalmente, incomodaram muito as cenas em flashback para não perdermos nenhum detalhe (prefiro que a estória seja bem contada; quem não percebeu os detalhes, azar) e o tom novelesco, dado pela dramaticidade dos problemas pessoais da protagonista e de outros personagens, além de uma certa infantilidade em algumas soluções dos roteiristas ― como o caso do daltonismo, antes citado. Aliás, no segundo episódio, a absolvição do réu com base em seus conhecimentos de anatomia, por ser caçador, me soou ridícula: nada impede que o perito, em um momento de fúria, mate a vítima de maneira brutal e descuidada. São essas coisas que aborrecem.

Nada que, no entanto, mate o charme do programa. Vamos assistindo para ver no que dá. Mas nada de comparações insensatas. Como já dizia o grande Herbert Viana, "a vida não é filme, você não entendeu". Sua aula não é sobre como se safar de um assassinato. E isso não é algo ruim.

1 Informações da Wikipedia, mesmo: https://pt.wikipedia.org/wiki/How_to_Get_Away_with_Murder

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

"Eu não gosto de você, Papai Noel"

Nesta semana em que as efusividades natalinas tomam conta da vida de todos, uma dessas pobres almas críticas (dentre as quais penso estar incluso) compartilhou um vídeo no Facebook. Trata-se de um trecho do antigo programa "Escolinha do Professor Raimundo", no qual o personagem Aldemar Vigário, interpretado pelo nosso grande Lúcio Mauro, declama de modo muito emotivo um poema do alagoano Aldemar Paiva.

Com a sensibilidade própria dos poetas, Paiva denuncia a falácia do mito de Papai Noel frente à realidade da pobreza. Mais não precisa ser dito. Aqui está o link para o vídeo, no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Astd1rquoyM

Não quero cortar o barato de ninguém, mas desde cedo sou muito mais afim a Paiva.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Autuação por câmeras

Mais uma polvorosa belenense: a Secretaria Executiva de Mobilidade Urbana (SEMOB) iniciou ontem o monitoramento por câmeras da área do Aeroporto Internacional Júlio Cezar Ribeiro (que você conhece por Val-de-Cans)1 e está autorizada a multar condutores, por estacionamento irregular, de forma remota, sem qualquer abordagem ou advertência.

A fiscalização de trânsito, naquela área, sempre foi bastante errática. Nunca se sabia quando haveria agentes de trânsito lá e, em havendo, nunca se sabia quando estavam dispostos a fazer o que fazem de melhor. Várias vezes vi agentes ignorando por completo carros estacionados e trancados em local proibido. Mas já fui abordado por agentes me ameaçando de autuação enquanto eu sequer havia terminado de tirar a bagagem.

Com o novo procedimento, o problema está resolvido: você terá a sensação de vigilância ininterrupta e os agentes da SEMOB estarão livres para aplicar multas sem nenhum contato pessoal, sem atitudes pedagógicas, sem nada além do punitivismo mais raso. Exatamente como eles adoram. Mas isso não é tudo. Começa pelo fato de que, às vezes, o aeroporto está às moscas, praticamente sem movimento algum. Mesmo assim, não é permitido estacionar. Ninguém me tira da cabeça que a grande finalidade disso é forçar o uso do estacionamento pago, ao lado, atualmente cobrando a extorsão de 8 reais por cada encostadinha lá dentro. Ou seja, são diferentes entidades do poder público de mãos dadas para avançar sobre o nosso dinheiro e nem podemos gritar "pega ladrão".

E não se diga que quem não violar a lei não será multado. O problema é justamente esse: não podemos confiar na SEMOB. Se a lei realmente fosse cumprida, estaria tudo bem. Os autuados teriam feito por merecer. Que se danassem. Mas não é isso. Segundo o Código de Trânsito, a diferença entre parar e estacionar é que, no primeiro caso, você imobiliza o veículo apenas pelo tempo estritamente necessário para entrada ou saída de passageiros. Além disso, é estacionamento, mesmo que o condutor esteja dentro do veículo com o motor ligado. À distância, livres de qualquer argumentação, os gualdinhas terão amplos poderes para "interpretar" tudo como estacionamento. Imagine a situação em que o motorista desce para ajudar a tirar as malas: motorista fora do carro é estacionamento; logo, multado. Passageiro com dificuldade de locomoção demora bastante para saltar. De longe, o agente contabiliza o tempo de parada e entende que foi excessivo: multa. E por aí vai.

Em suma, a nossa desgraça é não confiar na moralidade pública. E termos motivos de sobra para isso.

O pior é que a ideia não é ruim, além de não ser ilegal. Eu mesmo defendo que o monitoramento por câmeras vire rotina, com direito a autuação efetiva. Adivinhe onde? Na porta da instituições privadas de ensino, claro! Quem me conhece um pouquinho sabe de minha guerra santa contra esses pilantras que infernizam o trânsito e merecem ser multados todo santo dia. A SEMOB tem razão ao dizer que a cidade possui diversos pontos críticos e que esse recurso pode ser uma solução. Concordo com isso. O problema é a sua absoluta falta de credibilidade. Daí não tem polícia de trânsito que resolva nada. Pena.




_________________
1 A Lei federal n. 12.228, de 13.4.2010, modificou o nome para Aeroporto Internacional de Belém/Val-de-Cans/Júlio Cezar Ribeiro, com esta grafia, e o antigo Aeroporto Júlio Cezar, mais conhecido como Aeroclube, passou a denominar-se Aeroporto de Belém/Brigadeiro Protásio de Oliveira. Já havia tratado a respeito nesta postagem.

Então

Você dorme tarde, como de costume, mas pela primeira vez em semanas não aciona o despertador. Vai dormir em paz, até quando quiser.

Daí você acorda umas tantas vezes durante a madrugada e, às 8 horas, levanta da cama. Sua família dorme. Sem muitas opções, você... olha aquele bloco de provas e inicia mais um dia.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A última semana

Somente hoje tive acesso ao prontuário da última internação hospitalar de minha mãe, que corresponde a sua última semana de vida. Preciso desse documento para empreender uma jornada ao fundo do ego e decidir se vale a pena uma ação judicial contra o plano de saúde ou se não. Uma decisão a ser compartilhada com meu irmão, naturalmente.

Ler o documento me transportou de novo para aqueles tempos sombrios, que no fundo não são tão diferentes dos atuais. A maior diferença era que, antes, eu tinha certeza de estar imerso na vida real e agora... eu não sei. É como se eu assistisse às cenas mais desinteressantes de um filme em que nada acontece que seja digno de nota.

Uma anotação do prontuário, contudo, martela a minha cabeça de modo incessante. "Ao exame físico: consciente e orientada".

Minha mãe ficou indignada por ser levada ao hospital. Se era para morrer, que fosse em casa. Mas nós iniciamos a segunda-feira, 28 de setembro, levando-a para o hospital, mentindo descaradamente que ela talvez não fosse internada. Nossa intenção era melhorar a sua capacidade respiratória, porque ela não dormia mais. Nas conversas com a médica paliativista, a intenção era clara: melhorar sua condição geral e devolvê-la para o conforto de seu lar, pelo tempo que fosse possível.

No setor de triagem, à espera de um leito, recebeu o meu beijo e a minha despedida, pois eu precisava trabalhar. Felizmente, eu disse que a amava. Deitada de lado, na posição que suportava, ela não me respondeu. Ela nunca mais falou comigo. Exceto, talvez, o "não" quando tentei lhe fazer uma higiene, à noite. Dormi no hospital naquela noite, mas a despeito de minhas tentativas, ela não se comunicou. No entanto, estava consciente e orientada.

Dia 29, 12h04. Paciente consciente e orientada. Fui vê-la à tardinha. Estava completamente ausente. Emitia sons que não sabíamos se ainda eram algum arremedo de resposta ou apenas o sofrimento pulmonar. A médica anota: "Progressão de doença?".

Dia 30, 9h06, na companhia de meu irmão. "Paciente não quer conversar, fecha os olhos durante visita. Fala pouco, humor deprimido." Às 10h41: "Deprimida, não está querendo falar com a equipe". Vou vê-la depois e sua condição é de quem já foi levado pela doença. Não posso acreditar que ela se recusa a falar com os filhos, embora a médica nos tenha avisado disso.

Dia 1º.10, 11h13. Fui chamado por meu irmão para tomar decisões que ele não podia nem queria tomar sozinho. "Paciente gravíssima, rebaixada quanto ao nível de consciência... em progressão de doença". Decidimos não a mandar para a UTI, onde ficaria isolada; receberia apenas uma sedação, para alívio (?) de seu sofrimento. Começa a macronebulização. Daí por diante, só vejo minha mãe por trás de uma máscara. Lembro, mas queria apagar da memória, a expressão de seu rosto.

Dia 2.10, 11h59, na companhia de minha esposa, o quadro é de pneumonia hospitalar com piora da infecção respiratória devido à progressão da doença. Às 12h31, ainda a anotação "não quer conversar". Na deliberação sobre quem passará a noite, chegamos à conclusão de que ela queria morrer, mas não podia desligar-se na presença dos filhos. Era demais para ela. Damos a incumbência para a irmã, Jose.

Dia 3 de outubro, às 8h33, uma anotação objetiva: "Evoluiu com PCR. Óbito constatado às 7:30". É assim que termina.

Recebi instruções ao longo daquela semana sobre o que podia estar acontecendo com minha mãe. Instruções sobre ela ter mergulhado para dentro de si mesma, a fim de revisitar a própria vida, resolver suas pendências, buscar o autoperdão. Coisas que você não escuta dos médicos comuns, mas escuta dos paliativistas. E dos enfermeiros paliativistas, como meu amigo Renato, que de longe me ofertou palavras de apoio. As únicas que realmente me ajudaram, enquanto ao meu redor as pessoas só sabiam falar sobre a tal vontade de Deus.

Conheço minha mãe bem o bastante para saber que, se ela preferiu não falar mais conosco, embora pudesse fazê-lo, um sofrimento indescritível gritava dentro dela. Para isso, não tenho respostas. Ainda acordo de madrugada me perguntando: "Por que a senhora não se despediu de mim? Por que não apertou a minha mão?"

Por que tudo isso aconteceu? Qual a utilidade? Qual a finalidade? Agora me calo. Digito as últimas palavras para retornar à correção de provas, recurso para esquecer. Recurso inútil, mas é o que tenho.

Há decisões a tomar. E a vida segue, do seu jeito.

Da minha sacada, é o que vejo neste momento.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Loucura: amor, saudade, ciúme, despeito e outras humanidades

Dia desses comprei o CD Loucura, com releituras de Adriana Calcanhotto para canções do famosíssimo cantor e compositor porto-alegrense Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Não é preciso muito para eu comprar um disco de Adriana, já que é minha cantora/compositora favorita. Dona de uma voz peculiar, aveludada, e de um estilo curioso, que às vezes a aproxima da Família Addams, neste trabalho ela se permite ser intérprete, sem perder o seu senso de humor muito próprio, seja na escolha do repertório, que inclui o Hino do Grêmio, seja no modo como apresenta os músicos que a acompanham.

Lupicínio Rodrigues é um ícone de sua geração. Um dos grandes luminares da música brasileira de antigamente, cantava os sentimentos da gente simples, da gente verdadeira, que não tem muito de bens materiais, mas cujo coração pulsa com a força de diversos sentimentos, nem todos bons. Daí que suas canções constituem arrebatadoras declarações de amor, mas há muito de rancor, de ódio, de inveja, de ciúme. Aliás, a canção "Vingança" é, provavelmente, uma das mais perfeitas traduções de ressentimento por um relacionamento fracassado.

O disco, lançado em 24 de julho deste ano, é o primeiro trabalho de Adriana após a viuvez. Sua esposa, a cineasta Suzana de Moraes, faleceu no último dia 27 de janeiro, após mais de 25 anos de uma união honesta e monogâmica que faria corar de vergonha os patéticos homofóbicos que hoje dominam a cena internética e política. Por isso mesmo, ao escutar aqueles versos tão doridos, não pude deixar de pensar em como a cantora se sentiu ao entoar palavras como estas, da canção "Homenagem":

Levem estas flores pr'aquela que agora deve estar chorando
Por não poder estar neste momento aqui junto de mim
Pra receber estas honras que a outra está desfrutando
O nosso amor clandestino é que obriga a vivermos assim
Levem estas flores
E digam pra ela ficar me esperando
Que no que termine a festa eu irei abraçar meu amor
Pois apesar de não sermos casados
É quem me inspira e está sempre a meu lado
Me acompanhando nas horas difíceis, nas horas de dor


O projeto rendeu um belo show, gravado em Porto Alegre, cidade natal da homenageante e do homenageado. Esse concerto virou o disco e um DVD. Como se pode ver na imagem ao lado, Adriana aparece vestida a rigor, como um homem, em um cenário que lembra um bar ou talvez um cabaré, estabelecimento comum na vida dos homens do tempo de Lupicínio. A voz doce e triste ponteia as letras profundamente sentimentais e encontram o coro do público na conhecidíssima e terna canção "Felicidade".

Para quem gosta do estilo, recomendo muito. É possível que até o seu cotovelo doa. Contudo, é mais provável que a sua alma voe.

Renovando

Hoje, sem mais nem menos, senti vontade de mudar o blog. Sou do tipo que enjoa e precisa de uma novidade, vez em quando. E a aparência do blog estava igual há muito tempo ― sabe-se lá quanto; só sei dizer que foi em uma outra vida. Eu já nem me lembrava mais de como fazer esses ajustes.

O fato é que o Arbítrio do Yúdice está de cara nova. Deixou para trás as cores quentes, aquele inferno de informações cromáticas que, provavelmente, cansou a vista de uns tantos, os quais, educadamente, não se manifestaram. Assumiu um modelo dentre os disponíveis no Blogger, sem a intenção de buscar firulas. Poucas particularidades foram alteradas no leiaute padrão e todas com vistas a produzir um resultado mais limpo e confortável. Agora a tela é dominada por um delicado tom de azul, com o tema geral de uma estrada, sintoma de um desejo de andar, de respirar, de estar em um mundo que pareça belo.

A esquisitíssima fonte anterior deu lugar à batidíssima Arial, com a qual estou absolutamente acostumado em minha escrita acadêmica. Estou aplicando o mesmo aforismo que recomendo para a vida de todos: aposte na simplicidade. Há beleza na simplicidade. E um blog só precisa ser funcional. Podemos deixar as luzes faiscantes para as árvores de natal.

Outros ajustes serão feitos, em relação ao conteúdo, mas isso demanda um tempo e uma paciência de que não disponho no momento. Ficamos assim, com estas suficientes novidades, prenúncio de que o blog respira e quer sobreviver. E eu não quero soltar a pena. Nem deixar de dar minha opinião sobre tudo aquilo que ninguém me perguntou.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Quero aprender com teu pequeno grande coração

Eu realmente não gosto de postar nada que possa redundar em elogios, porque isso me soa como um simulacro de auto-elogio e, como aprendi com meu mestre de direito penal, Prof. Hugo Rocha, "elogio em boca própria é vitupério". Mas hoje abrirei uma exceção, porque o elogio não é para mim e eu quero guardar esta data.

Estava chegando a um restaurante perto de casa, junto com minha filha, quando ela avistou um rapaz dormindo no batente de uma porta. O cheiro dele era perceptível de longe, mas Júlia não pareceu notar ou não se importou. Apenas olhou o homem e disse que precisávamos ajudá-lo de algum modo. Perguntei o que ela achava que poderíamos fazer e me respondeu: dar um pouco de dinheiro ou de comida. Então lhe fiz uma proposta.

Fizemos nossa refeição. Questionei se ela realmente gostaria de levar a comida e me disse que sim. Então fui preparar uma quentinha, com alguns itens que me pareceram adequados: arroz, saladinha de feijão, carne. E acrescentei um refrigerante, porque sou contra a ideia de que doações devem se limitar a sopa e água. A gente não quer só comida. Também precisamos de um pouco de prazer, especialmente aqueles para quem a vida não costuma concedê-los.

Saímos do restaurante e eu expliquei para Júlia que aquele gesto, para nós, talvez fosse muito pequeno. "Mas, para aquele homem, certamente significará muito. Não se trata de comida: é fazê-lo ver que alguém se importou. Talvez, se em algum momento ele pensar em fazer algo ruim  roubar, p. ex. ―, ele se lembre que ainda existe gente como você." Então lhe passei a sacola, porque era essencial que ela mesma fizesse a entrega.

Nesse momento, havia um rapaz de bicicleta, conversando. Do pouco que escutei, pareceram palavras de incentivo. Aproximamo-nos e eu introduzi o assunto: "Passamos por aqui e lhe vimos. Minha filha gostaria de lhe dar algo para comer." Júlia então entregou a sacola e os dois homens reagiram com alegria. Desejaram coisas boas na vida de minha filha e não tive como não me emocionar muito. Veio-me à mente a lembrança de minha mãe, que ficaria maravilhada vendo sua netinha tendo aquela atitude  ― ela, que passou tantas privações na vida.

Desejei boa noite e seguimos nosso caminho. Júlia disse que sempre quis praticar uma boa ação como aquela. Eu a abracei e lhe disse que ela ainda fará muitas outras na vida. E eu espero que faça, mesmo. Que ela tenha tempo e oportunidades de fazê-lo e que nunca lhe falte o desejo sincero no coração de fazê-lo.

Foi a primeira vez que me senti de novo perto de minha mãe, conectado a ela de algum modo, através da criatura que ela mais amava na vida. Estou tentando cumprir minha promessa. Hoje, parece que algo funcionou.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Palavras ao vento, quando minhas

Desde criança, escrevi muitas estórias. Contos, projetos de romances. Já naquela época, leitor convicto, eu sonhava em ser escritor. Achava que podia produzir livros incríveis.

Ainda criança, houve um concurso de redação na escola. Podíamos inscrever mais de um trabalho, então tirei o segundo e o primeiro lugar. No dia da proclamação do resultado, recebemos a visita do grande Ruy Paranatinga Barata. Ele me entregou o prêmio, que muito acertadamente era um conjunto de livros, inclusive livros dele, um dos quais foi autografado. No autógrafo, ele me sugeria: "agora escreva um conto". Ingênuo, bobo mesmo, achei que um conto era pouco e comentei que pretendia escrever um romance. Sábio e paciente, ele apenas respondeu que eu devia começar por um conto.

Lá pelos 10, 11 anos, ganhei uma pequena máquina de escrever manual. Entenda: era o ano de 1985 ou 1986, então não há como pensar em microcomputador. Aquela maquininha sem nada de especial significou muito para mim. Talvez tenha sido o melhor presente de aniversário que ganhei de minha mãe. Ingênuo, bobo mesmo, eu achava que, a partir daquele momento, poderia escrever romances magníficos e me tornar um escritor rico. Mais ou menos como acontecera com Stephen King, que se tornou milionário graças a seus livros de terror, alguns dos quais eu adorava na época.

O destino de todos aqueles escritos foi o mesmo: as chamas. Bastava passar um pouquinho de tempo e eu me envergonhava daqueles exercícios canhestros. Não suportava a ideia de que alguém pudesse lê-los, então os queimava. Comigo é assim: nada de jogar no lixo; o negócio é queimar. Adoro fogo. Além disso, o fogo tem uma simbologia interessante e, no contexto, adequada. O fogo foi exorcizando aquele meu sonho de infância que, juntamente com todos os outros, ficou para trás.

O mais perto que cheguei de ser um escritor, afora algumas incursões pela redação acadêmica, foi este blog. Aqui me permiti falar, exercitar estilo, experimentar algumas vezes, testar a ironia, abrir combate direto. Um blog pode funcionar como um repositório de crônicas, então, com excesso de boa vontade, posso me considerar um cronista. O detalhe é que sou eu mesmo a fazer esse julgamento.

A propósito, neste blog, tive o atrevimento de publicar quatro textos de minha autoria: "Abandono" (28.7.2007), "Na sacada do sétimo andar" (30.6.2007), "Miniconto psiquiátrico" (23.11.2007, uma brincadeira de apenas 49 palavras) e "O desejo" (10.8.2012). Estão aí, dispersos na internet, onde sequer posso defender meus direitos autorais. Mesmo que alguém diga o contrário, esses textos são meus. Para o bem ou para o mal.

Esta semana, li matéria sobre pintura hiperrealista, uma forma de arte que me interessa bastante. Curiosamente, ela me inspirou uma ideia. Esta manhã, a ideia cresceu em minha mente a tal ponto que precisei me sentar à frente do computador. Ao que escrevi, chamei de "prólogo". Ingênuo, bobo mesmo, estou dizendo a minha própria vaidade que a coisa terá desdobramento, talvez vire algo grande. Tolice. Todas as minhas ideias fantásticas definham em alguns dias. A se repetir o que sempre aconteceu, nenhuma inspiração virá para completar o tal prólogo e, dentro em breve, a premissa extraordinária parecerá, tão somente, uma bobagem.

E assim deixamos de ter uma estória sobre arte, assassinato e remorsos, por um motivo trágico, que foi explorado pelo escritor e filósofo Jostein Gaarder, em seu romance O vendedor de histórias (2001): as ideias maravilhosas estão por aí, à procura de um escritor que as realize. Mas se falta o talento, elas morrem.