Quando um professor que leva a sério a docência passa um trabalho, no fundo ele tem a expectativa de que seus alunos receberão aquela tarefa com paixão e que tentarão implementá-la da melhor forma possível, não apenas cumprindo o que lhes foi solicitado, mas indo além, com vontade de aprender mais do que orientado e, inclusive, de surpreender. Como a vida é mais ou menos como as fotos meramente ilustrativas em sua relação com a realidade, ou seja, o sanduíche de verdade nunca é tão bonito quanto o da fotografia publicitária, as coisas não saem exatamente como o desejado. Na rotina, trabalhos são feitos para cumprir tabela e obter os pontos correspondentes.
Em minha trajetória docente, já me deparei com alunos que corresponderam à idealização e foram muito além do esperado. Posso me considerar um privilegiado nesse sentido, pois não foram poucas as vezes que saí de sala com o espírito em festa. Neste semestre, fiz minhas requisições às minhas turmas de Direito Penal III, relativas a temas transversais de nosso conteúdo programático, selecionados por sua importância e capacidade de influenciar para além da formação técnica dos estudantes de direito: temas escolhidos para estimular as suas emoções e o seu senso de cidadania.
Hoje vivi uma tarde valiosíssima. Para ser justo, admito que deveria aludir a outras equipes, que também merecem louvor, mas a verdade é que, na correria, deixamos de fazer os devidos registros. Peço desde já perdão por me concentrar em apenas duas apresentações, mas direi que foi a última tarde de trabalhos deste semestre. Foi o fechamento, a cereja do bolo. E que cereja!
A tarde começou com Luísa Francês, Mayara Alencar, Lara Brito, Paulo Henrique Santana, Luísa Santos e Breno Alves defendendo um dos temas que mais me motivam: a escravidão contemporânea. Em formato de documentário, cuja forma e conteúdo não deixavam nada a dever aos bons vídeos que gente séria publica na internet, em canais educativos ou ativistas, eles fizeram uma síntese de 40 minutos sobre esse flagelo da sociedade brasileira que, longe de acabar, reinventa-se graças à ganância e à perversidade de muitos.
Após pesquisas, entrevistas e seleção de material audiovisual, produziram um texto preciso, largamente informativo e claramente humano. E ainda fizeram bonito na telinha.
E a tarde terminou com Isabelle Figueiredo, Joana Galvão, Natália Negrão, Renata Figueiredo e Valeska Ferreira, falando sobre violência contra a mulher. Esta equipe foi longe na criatividade, levando-nos a um cenário preparado com faixas pretas e cartazes, nos quais se viam fotos, depoimentos de mulheres vitimizadas e cartazes com as ofensas verbais que naturalizamos em nosso cotidiano.
A partir da estória de "Maria", que poderia ser qualquer mulher que conhecemos (ou somos!), foram apresentando a violência que começa simbólica, por meio da reprodução de padrões comportamentais antigos, passa ao assédio sexual, depois avança para os abusos nas relações profissionais e, por fim, materializa-se na violência obstétrica e no casamento abusivo, que vai da obediência à submissão, das ameaças às agressões físicas e à morte (para incluir o tema do feminícidio). Uma tarefa lindamente construída, capaz de provocar fortes reflexões e... empatia.
Hoje me alegrei, aprendi, me emocionei e confirmei que estou onde devia: na sala de aula, o meu outro lar. Uma casa onde sempre haverá alunos como os onze aqui mencionados, fração de um universo ainda mais envolvente, que fazem tudo valer a pena.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2016
quarta-feira, 16 de novembro de 2016
Kids for cash
Os estadunidenses inventaram as chamadas políticas de lei e ordem; e, como expressão aguda delas, a política de tolerância zero, que tantos fãs conquistaram por lá e por aqui, pois em toda parte existem pessoas convictas de sua absoluta moralidade, o que as faz desejar e aprovar as pragas infernais para os outros, sob o pretexto de que cometeram transgressões, crimes, violências.
O desejo da máxima punição, ainda que pelas mínimas faltas, não incide apenas sobre adultos. Também existe uma justiça juvenil ávida por aplicar os mesmos critérios. No ano de 1995, um juiz foi eleito no Condado de Luzerne, Pensilvânia, com a promessa de que conteria a má conduta dos adolescentes. Nomeado para o Juizado de Menores, avisou: se você fizer besteira, vou mandá-lo à prisão. Prometeu e cumpriu. As ruas ficaram tranquilas. As escolas se acalmaram, porque qualquer coisa se tornava assunto para policiais e para agentes de condicional. O juiz foi aclamado por toda a sociedade. Foi reeleito em 2005.
Havia um contexto ali: em 20.4.1999, os adolescentes Eric Harris e Dylan Klebold assassinaram 15 estudantes, e feriram outros 24, no massacre da Columbine High School. Os pacíficos americanos não queriam repetir a experiência que, afinal, não tinha absolutamente nada a ver com sua cultura armamentista. Columbine fora, apenas, fruto da mente doentia de dois bandidos. Era preciso se antecipar ao surgimento de novos sociopatas, por isso juízes implacáveis eram indispensáveis.
O nome do juiz era Mark Ciavarella. Ele mandou mais de 3 mil meninos e meninas para trás das grades, por fatos que podiam ser um ato banal de agressividade, uma resposta mal-criada, uma página supostamente ofensiva na internet. Fazia isso em audiências sumárias, que duravam cerca de um minuto. A estratégia era simples: Ciavarella visitava as escolas e advertia que, em caso de má conduta, mandaria qualquer um para a cadeia. No dia da audiência, ele perguntava ao acusado: Você estava na escola naquele dia? O que eu disse que faria? Então podem levá-lo.
Um registro adicional: as famílias eram coagidas, pelos policiais, a dispensar advogados. Assinavam um termo de renúncia à representação e os adolescentes eram apresentados ao juiz assim, desprotegidos. O resultado só podia ser o que era.
Ciavarella hoje cumpre pena de 28 anos em uma prisão federal. Seu colega, Michael Conahan, que fora juiz-presidente do centro de detenção juvenil do condado, cumpre pena de 17 anos, também em uma prisão federal. O motivo é esclarecido no documentário Kids for cash (dir. Robert May, 2014), disponível no respeitável catálogo da Netflix.
A questão se origina no sistema americano, que permite a privatização do sistema penitenciário-correicional. Um negócio absolutamente lucrativo, como comprovam inúmeros estudos, denúncias e outros documentários, inclusive o soberbo 13ª Emenda. À vista de que você pode criar empresas para explorar esse ramo de atividade, basta manter as celas cheias e o lucro é garantido.
O documentário elege algumas vítimas do juiz Ciavarella e mostra como a detenção arruinou suas vidas; em alguns casos, no mínimo a retardou drasticamente, roubando-lhes os anos da adolescência. Mas mostra, também, como o sistema se protege. O que mais me deixou indignado vendo o filme é que, a despeito do apelo midiático do escândalo "kids for cash", para o sistema legal a questão não era de direitos humanos, mas financeira. Ao final, os juízes corruptos foram condenados por corrupção, extorsão, fraude, sonegação tributária e crimes afins. O que menos importava eram os danos irreversíveis perpetrados contra seres humanos.
Também me indignou a absurda convicção dos juízes de que não fizeram nada demais, do ponto de vista humano. Eles se arrependem de haver aceitado dinheiro. Consideram que foi um "erro", mas o tempo todo minimizam tudo. Acham que foi um problema de contabilidade, uma doação, uma comissão, algo legítimo. Insistem, Ciavarella sobretudo, que jamais receberam um único centavo para mandar crianças à prisão. Ele insiste que suas decisões sempre foram tomadas exclusivamente para o bem dos próprios jovens. Porque, afinal, ir para a prisão e ser corrigido pelo Estado amoroso e gentil é a melhor coisa que lhes poderia ter acontecido. Quem estuda criminologia já ouviu falar nas técnicas de neutralização e na ideologia da defesa social. Pois bem, esses dois sujeitos aí acreditam em ambas as coisas, em um nível superlativo.
A cena mais impactante do documentário (ao lado) mostra Ciavarella saindo do tribunal, após sua condenação, e com sua fleuma habitual, falando em "assumir responsabilidades". É quando a mãe de uma de suas vítimas o aborda e pergunta se ele se lembra dela e de seu filho. Ed jamais se recuperou após voltar à liberdade. Matou-se com um tiro no coração. Amanda tem diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático. Charlie, desajustado, envolveu-se em outros problemas e acabou na prisão, como adulto. Os danos vão se avolumando, mas ninguém parece preocupado em responder à altura.
Caso você ainda esteja pensando que vá lá, houve falhas, mas no fundo esses moleques aprontaram alguma e fizeram por merecer, ressalto que a questão não é esta ou aquela pessoa. É a concepção do sistema. Os números mostrados ao final do documentário impressionam:
O desejo da máxima punição, ainda que pelas mínimas faltas, não incide apenas sobre adultos. Também existe uma justiça juvenil ávida por aplicar os mesmos critérios. No ano de 1995, um juiz foi eleito no Condado de Luzerne, Pensilvânia, com a promessa de que conteria a má conduta dos adolescentes. Nomeado para o Juizado de Menores, avisou: se você fizer besteira, vou mandá-lo à prisão. Prometeu e cumpriu. As ruas ficaram tranquilas. As escolas se acalmaram, porque qualquer coisa se tornava assunto para policiais e para agentes de condicional. O juiz foi aclamado por toda a sociedade. Foi reeleito em 2005.
Havia um contexto ali: em 20.4.1999, os adolescentes Eric Harris e Dylan Klebold assassinaram 15 estudantes, e feriram outros 24, no massacre da Columbine High School. Os pacíficos americanos não queriam repetir a experiência que, afinal, não tinha absolutamente nada a ver com sua cultura armamentista. Columbine fora, apenas, fruto da mente doentia de dois bandidos. Era preciso se antecipar ao surgimento de novos sociopatas, por isso juízes implacáveis eram indispensáveis.
O nome do juiz era Mark Ciavarella. Ele mandou mais de 3 mil meninos e meninas para trás das grades, por fatos que podiam ser um ato banal de agressividade, uma resposta mal-criada, uma página supostamente ofensiva na internet. Fazia isso em audiências sumárias, que duravam cerca de um minuto. A estratégia era simples: Ciavarella visitava as escolas e advertia que, em caso de má conduta, mandaria qualquer um para a cadeia. No dia da audiência, ele perguntava ao acusado: Você estava na escola naquele dia? O que eu disse que faria? Então podem levá-lo.
Um registro adicional: as famílias eram coagidas, pelos policiais, a dispensar advogados. Assinavam um termo de renúncia à representação e os adolescentes eram apresentados ao juiz assim, desprotegidos. O resultado só podia ser o que era.
http://kidsforcashthemovie.com/ |
A questão se origina no sistema americano, que permite a privatização do sistema penitenciário-correicional. Um negócio absolutamente lucrativo, como comprovam inúmeros estudos, denúncias e outros documentários, inclusive o soberbo 13ª Emenda. À vista de que você pode criar empresas para explorar esse ramo de atividade, basta manter as celas cheias e o lucro é garantido.
O documentário elege algumas vítimas do juiz Ciavarella e mostra como a detenção arruinou suas vidas; em alguns casos, no mínimo a retardou drasticamente, roubando-lhes os anos da adolescência. Mas mostra, também, como o sistema se protege. O que mais me deixou indignado vendo o filme é que, a despeito do apelo midiático do escândalo "kids for cash", para o sistema legal a questão não era de direitos humanos, mas financeira. Ao final, os juízes corruptos foram condenados por corrupção, extorsão, fraude, sonegação tributária e crimes afins. O que menos importava eram os danos irreversíveis perpetrados contra seres humanos.
Também me indignou a absurda convicção dos juízes de que não fizeram nada demais, do ponto de vista humano. Eles se arrependem de haver aceitado dinheiro. Consideram que foi um "erro", mas o tempo todo minimizam tudo. Acham que foi um problema de contabilidade, uma doação, uma comissão, algo legítimo. Insistem, Ciavarella sobretudo, que jamais receberam um único centavo para mandar crianças à prisão. Ele insiste que suas decisões sempre foram tomadas exclusivamente para o bem dos próprios jovens. Porque, afinal, ir para a prisão e ser corrigido pelo Estado amoroso e gentil é a melhor coisa que lhes poderia ter acontecido. Quem estuda criminologia já ouviu falar nas técnicas de neutralização e na ideologia da defesa social. Pois bem, esses dois sujeitos aí acreditam em ambas as coisas, em um nível superlativo.
A cena mais impactante do documentário (ao lado) mostra Ciavarella saindo do tribunal, após sua condenação, e com sua fleuma habitual, falando em "assumir responsabilidades". É quando a mãe de uma de suas vítimas o aborda e pergunta se ele se lembra dela e de seu filho. Ed jamais se recuperou após voltar à liberdade. Matou-se com um tiro no coração. Amanda tem diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático. Charlie, desajustado, envolveu-se em outros problemas e acabou na prisão, como adulto. Os danos vão se avolumando, mas ninguém parece preocupado em responder à altura.
Caso você ainda esteja pensando que vá lá, houve falhas, mas no fundo esses moleques aprontaram alguma e fizeram por merecer, ressalto que a questão não é esta ou aquela pessoa. É a concepção do sistema. Os números mostrados ao final do documentário impressionam:
- 2 milhões de menores são presos todos os anos nos Estados Unidos, cinco vezes mais do que em qualquer outro país;
- 95% dos "crimes" que levam a esse encarceramento massivo dizem respeito a atos não violentos;
- os Estados Unidos gastam, por ano, 10.500 dólares por criança na escola, mas são 88 mil dólares nas casas de correção (a revelar a lucratividade da empreitada);
- 66% dos egressos do sistema juvenil abandonam os estudos (demonstrando a desgraça social provocada por essa máquina de moer gente).
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Conversando sobre cidadania e polícia
Hoje foi uma ocasião profundamente gratificante para mim. Na segunda noite da XVII Semana Jurídica do CESUPA, participei com o minicurso "Manifestações sociais e intervenção policial". O evento nasceu do meu inconformismo com o excesso de arbitrariedade que tem permeado a atuação das polícias pelo país afora, nessa longa trajetória de manifestações públicas que têm ocorrido, nos últimos anos, pelos mais variados motivos.
Vendo o abuso recrudescer, ante a omissão criminosa das autoridades e a concordância, às vezes implícita, às vezes psicopática de expressiva parcela da sociedade, senti que tínhamos o compromisso de conversar sobre isso com os nossos alunos, já que o projeto político-pedagógico de nosso curso está assentado sobre o eixo dos direitos humanos e porque precisamos formar não apenas profissionais, mas acima de tudo cidadãos.
Mas o evento me trouxe também emoções muito pessoais. Afinal, dividi o tempo com duas ex-alunas extremamente queridas, hoje profissionais valorosas. Lembrei-me delas em sala de aula, tão tímidas, e vendo-as hoje, tão seguras, tão articuladas em suas falas, com tanto conhecimento apropriado, eu realmente me emocionei. A sensação é única.
Nossa noite começou com Vitória Monteiro, integrante do Grupo Cabano de Criminologia, que foi minha monitora e que orientei em sua monografia, sob o tema "A ilegitimidade da criminalização dos protestos no Brasil: uma análise sobre a repressão criminal nas manifestações de junho de 2013 à luz da Criminologia Crítica" (2015), hoje nossa aluna da pós-graduação em ciências criminais, que vem aprofundando suas pesquisas no campo da ação política popular e, graças a isso, nos proporcionou uma importante visão sobre como as manifestações sociais são essenciais para a existência de democracia.
A segunda a falar foi Verena Mendonça, que orientei em sua monografia sob o tema "A aplicação extensiva das penas alternativas como forma de melhorar a situação prisional brasileira" (2012), hoje engajada na docência e que nos trouxe uma visão desenvolvida em sua pesquisa no mestrado, destinada a compreender, justamente, a instituição Polícia Militar, inclusive investigando a autopercepção da tropa.
Fui o terceiro a falar e me concentrei nos aspectos constitucionais que fazem do Brasil, segundo consta, um Estado democrático de Direito, em sua oposição ao Estado de polícia, ora fortemente em expansão. Usei como estratégia a exibição de vídeos sobre ações policiais reais e recentes, para confrontá-las com os mandamentos constitucionais. Mas não com uma perspectiva de demonização da Polícia Militar, porque cada vez mais defendo a necessidade de trazer essa instituição para os debates sobre conquista da cidadania. E aí apresentamos o nosso trunfo.
O Cabo PM Luiz Fernando Passinho, coordenador geral da Associação de Defesa dos Direitos dos Policiais Militares do Estado do Pará, abriu os meus olhos e, claramente, também os dos alunos, sobre aspectos que nunca passaram por nossas cabeças. Com sua visão interna da questão e grande conhecimento dos problemas relativos à segurança pública, Passinho nos falou sobre a exclusão de que padecem os policiais, também eles recrutados entre a juventude negra da periferia, que acabam se tornando algozes de seus pares, tragados por um sistema impiedoso que não os reconhece como sujeitos de direitos. As reflexões que ele nos trouxe quebraram paradigmas.
Necessário registrar um agradecimento especial aos nossos alunos, que aguentaram uma apresentação que extrapolou o horário e, mesmo assim, alguns ainda ficaram mais um pouco para debater. Os questionamentos, dirigidos todos ao nosso convidado Passinho (o que considerei excelente: os alunos não desperdiçaram a oportunidade), permitiram um diálogo pautado na empatia, que é a base para a construção de relações solidárias. Com isso, nosso minicurso alcançou os objetivos que tínhamos. Só posso desejar que os alunos tenham gostado como nós.
domingo, 23 de outubro de 2016
Amanda Knox
Após o inesperado e estrondoso sucesso da premiada série documental Making a murderer (2015), a Netflix percebeu que documentários sobre casos criminais de grande repercussão implicam sucesso garantido. Assim, no último setembro, foi lançado Amanda Knox (2016), o qual retrata um rumoroso homicídio ocorrido em Perúgia, Itália, no ano de 2007, amplamente coberto pela imprensa internacional. Eu me recordo vagamente das reportagens da época.
A vítima foi a estudante inglesa Meredith Kercher (21), estuprada e morta a facadas em seu quarto, em uma casa que dividia com três colegas, uma delas a estadunidense Amanda Knox (20), que se tornou a principal suspeita do crime, juntamente com seu namorado, o italiano Rafaelle Sollecito. Posteriormente, foi incluído na acusação o costa-marfinense Rudy Guede, único efetivamente condenado e que cumpre pena até hoje.
Mas ao contrário do seriado sobre Steven Avery, produzido a partir de quase duas décadas de material audiovisual sobre as investigações e julgamentos, apresentado em 10 episódios, a atual produção consiste em uma peça única, com uma hora e meia de duração, de conteúdo mais jornalístico do que investigativo, centrada principalmente nos depoimentos de quatro pessoas: Knox, Sollecito, Giuliano Mignini (chefe da acusação) e Nick Pisa, um jornalista inglês que teve especial destaque na cobertura do caso.
Também ao contrário da primeira série, claramente construída para apresentar o réu como vítima de uma conspiração do sistema penal do Condado de Manitowoc, a atual não parece nos induzir juízos de culpa ou inocência. A morte de Meredith nunca foi completamente esclarecida e a série não pretende interessada em tirar coelhos da cartola.
No entanto, após ver a série, formulei algumas impressões, que gostaria de compartilhar.
Em qualquer lugar do mundo, a polícia se permite ser refém da imprensa e da opinião pública, passando a dirigir sua conduta por uma busca mais ou menos desesperada por fornecer uma resposta à sociedade, o mais rápido possível.
Quando a polícia acreditou ter solucionado o caso, já tendo efetuado três prisões (uma das quais de Patrick Lumumba, que foi totalmente inocentado em três semanas), houve a previsível entrevista coletiva, na qual as autoridades se mostraram claramente defensivas. Elas temiam ser julgadas pelo resto do mundo, já que o caso estava sendo freneticamente coberto pela imprensa internacional, então o momento foi de regozijo porque a polícia local conseguira encerrar o caso em poucos dias.
No entanto, anos depois, peritos independentes deixaram claro que a investigação, inclusive a parte da perícia forense, fora caótica e inconclusiva, marcada por erros grosseiros e primários. A perda de credibilidade das provas foi justamente o que conduziu à final absolvição de Knox e Sollecito, com direitos a críticas contundentes por parte do judiciário.
Usualmente, o que se dá é isto: a polícia, excessivamente permeável a paixões, assume uma postura de legitimar o próprio trabalho. A tão decantada busca da verdade encobre, na verdade, uma ânsia de provar que o suspeito já apontado é mesmo culpado. Ninguém quer assumir erros, então não se investigam outras possibilidades. Quase toda investigação policial não vai além de um esforço de provar aquilo em que já se acredita, mesmo que isso vá destruir algumas vidas inocentes. Quem se importa?
Um detalhe adicional: quando Knox estava na penitenciária, foi submetida a exames médicos. As autoridades mentiram que ela estava infectada por HIV, para desestabilizá-la emocionalmente. Ela escreveu um diário, revelando seus temores, que foi vazado para a imprensa e ajudou a construir a sua imagem de psicopata depravada. Podemos aceitar uma polícia que atue dessa forma?
Em qualquer lugar do mundo, o Ministério Público cede facilmente à posição de heroi e redentor da sociedade ofendida.
Giuliano Mignini foi entrevistado pelos documentaristas. É de sua própria boca que escutamos que começou a desconfiar de Knox por seu comportamento nas primeiras horas após a descoberta do cadáver. Ela e o namorado "se consolavam de maneira imprópria", trocando beijos. As imagens aparecem e não mostram nada demais. Ele também confessa sua paixão por investigações, então estar naquele turbilhão pode ter sido a realização de um sonho infantil. Ele afirma que o cadáver fora coberto, o que indicaria a participação de uma mulher, pois um homem jamais pensaria em algo assim. Fuééén!!! Errado! Cobrir o corpo pode ser um indicativo de remorso, mesmo em criminosos homens. Além do mais, tudo isso são tendências, não certezas.
Mais adiante, Mignini declara sua satisfação com o fato de andar nas ruas e ser cumprimentado e parabenizado por desconhecidos, após a condenação dos réus. Um vaidoso discreto, mas ainda assim vaidoso. Anos depois, quando os réus já estavam absolvidos, foi chamado de "ser maligno" por uma mulher. Mas ele tinha uma resposta para isso: as famosas técnicas de neutralização. Ele não parece incomodado com o fato de dois jovens terem ficado quatro anos presos (Sollecito ficou seis meses na solitária). Acusadores nunca assumem responsabilidade por eventuais erros.
Em qualquer lugar do mundo, diante de um crime brutal, a imprensa se comportará de modo sensacionalista e irresponsável, produzirá efeitos sobre a opinião pública e não assumirá responsabilidade alguma por isso.
A influência perversa da mídia sobre o campo penal é um dos assuntos mais em voga nos estudos criminológicos dos últimos anos. No caso Kercher, um dos jornalistas mais atuantes foi Nick Pisa, que não teve o menor pudor de ceder entrevista aos documentaristas, mostrando-se acintosamente leviano, debochado e insensível. Ele declara que não acredita em "julgamento pela mídia". Claro, ele é um dos sujeitos que se alimentam dessa indústria pornográfica.
Jornalistas sempre se escondem atrás da alegação de que apenas relatam fatos, com objetividade e isenção. É, provavelmente, a segunda maior mentira do mundo (não me perguntem qual é a primeira). Com essa prática amoral, fazem o que querem e se escusam de qualquer consequência, ainda que apenas ética. No entanto, Pisa informa que os repórteres caçaram na internet imagens dos réus e divulgaram as mais suspeitas que encontraram, além de popularizar uma alcunha grosseira para a acusada. É a famosa publicidade völkisch de que nos fala Zaffaroni: a deliberada exibição dos aspectos mais grosseiros possíveis, para produzir reações emocionais desfavoráveis no público. Nada a ver com objetividade, muito menos com a verdade. O importante é vender a notícia, antes dos concorrentes. Dito por Pisa.
Em qualquer lugar do mundo, uma mulher acusada de um crime grave será julgada moralmente e o desvalor moral sempre terá uma conotação sexual.
Graças ao diário de Knox, que não deveria, mas foi divulgado pelas autoridades italianas, o mundo soube que a jovem americana, até os seus 20 anos, teve relacionamentos sexuais com 7 homens. A tese da acusação? Uma predadora se aproveitou da inexperiência de Sollecito e o dominou emocionalmente graças ao sexo. Certa noite, levou para casa o namorado e um segundo homem (Rudy Guede), para uma aventura sexual. Meredith Kercher chegou e protestou. Furiosa por ser confrontada (o promotor Mignini afirmou que ela não tolerava ser questionada e não respeitava autoridade), matou a colega de quarto. Os dois homens não a impediram porque fariam tudo para satisfazê-la de todas as formas.
Misógino? O documentário não nos ajuda a responder esta pergunta. Não são apresentadas provas factuais que sustentem a tese moralista da acusação. A hipótese de Knox é que Guede, que tinha histórico de invasões domiciliares, entrara na casa para roubar e acabou estuprando e matando a mulher que encontrou lá dentro. Ele acabou condenado a 30 anos de prisão, pena reduzida para 16 anos. O judiciário insiste que há provas contra ele. Coincidência ou não, no fim, o estrangeiro negro foi o único culpado.
Em qualquer lugar do mundo, a população, diante de um crime bárbaro, reage com sede de sangue, exigindo a condenação daquele que tenha sido apontado como suspeito.
Seres humanos se entregam a suas emoções sem qualquer cuidado, mas cheios de retórica. Uma das mais comuns expressões disso é a sede de justiça. Ninguém se atém a fatos, muito menos a meandros jurídicos. Se não há condenação exemplar, não há justiça (vingança, bem entendido) e tudo é uma vergonha. A absolvição de Knox e Sollecito gerou indignação popular. Posteriormente, ele voltaram a ser condenados (a grande falha do documentário, a meu ver, é não mostrar o que aconteceu nesse período). Mas, por fim, a Suprema Corte italiana os absolveu, usando como argumentos a imprestabilidade probatória e a ação da imprensa, que forçara a indicação de culpados!
No fim das contas, o crime segue um acontecimento sem explicação cabal. Passados 9 anos desde a morte de Meredith Kercher, Amanda Knox se tornou advogada e hoje defende pessoas indevidamente acusadas de crimes, em sua cidade natal (Seattle). Rafaelle Sollecito tem uma empresa de informática em sua cidade natal (Bari).
Em meio às incertezas, a coisa mais importante que vemos no documentário foi dita pela própria Amanda Knox: se ela for culpada, então é um monstro e as pessoas devem temê-la. Se, no entanto, for inocente, isso prova que todos somos vulneráveis a uma acusação criminal incorreta, o que também provoca medo em todos.
Minha conclusão? Ao final, tudo tem a ver com medo. Medo de termos nossas vidas destruídas por bestas humanas ou pelo Estado, aquela entidade que todos os dias nos é vendida como generosa e comprometida com o bem comum. E ambos os medos convergem para o mesmo resultado: a condenação dos suspeitos. Se forem culpados, ótimo. Se forem inocentes, ainda assim serei poupado de saber que o mundo é mais falho do que parece. Poderei dormir à noite, acreditando que a lei, a ordem, as autoridades, a justiça ou coisa que o valha cuida de mim.
Para mim, acreditar nisso é que é assustador.
Informações adicionais:
Veja também, no blog: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/01/fabricar-criminosos-faz-parte-de-um.html
A vítima foi a estudante inglesa Meredith Kercher (21), estuprada e morta a facadas em seu quarto, em uma casa que dividia com três colegas, uma delas a estadunidense Amanda Knox (20), que se tornou a principal suspeita do crime, juntamente com seu namorado, o italiano Rafaelle Sollecito. Posteriormente, foi incluído na acusação o costa-marfinense Rudy Guede, único efetivamente condenado e que cumpre pena até hoje.
Mas ao contrário do seriado sobre Steven Avery, produzido a partir de quase duas décadas de material audiovisual sobre as investigações e julgamentos, apresentado em 10 episódios, a atual produção consiste em uma peça única, com uma hora e meia de duração, de conteúdo mais jornalístico do que investigativo, centrada principalmente nos depoimentos de quatro pessoas: Knox, Sollecito, Giuliano Mignini (chefe da acusação) e Nick Pisa, um jornalista inglês que teve especial destaque na cobertura do caso.
Também ao contrário da primeira série, claramente construída para apresentar o réu como vítima de uma conspiração do sistema penal do Condado de Manitowoc, a atual não parece nos induzir juízos de culpa ou inocência. A morte de Meredith nunca foi completamente esclarecida e a série não pretende interessada em tirar coelhos da cartola.
No entanto, após ver a série, formulei algumas impressões, que gostaria de compartilhar.
Em qualquer lugar do mundo, a polícia se permite ser refém da imprensa e da opinião pública, passando a dirigir sua conduta por uma busca mais ou menos desesperada por fornecer uma resposta à sociedade, o mais rápido possível.
Quando a polícia acreditou ter solucionado o caso, já tendo efetuado três prisões (uma das quais de Patrick Lumumba, que foi totalmente inocentado em três semanas), houve a previsível entrevista coletiva, na qual as autoridades se mostraram claramente defensivas. Elas temiam ser julgadas pelo resto do mundo, já que o caso estava sendo freneticamente coberto pela imprensa internacional, então o momento foi de regozijo porque a polícia local conseguira encerrar o caso em poucos dias.
No entanto, anos depois, peritos independentes deixaram claro que a investigação, inclusive a parte da perícia forense, fora caótica e inconclusiva, marcada por erros grosseiros e primários. A perda de credibilidade das provas foi justamente o que conduziu à final absolvição de Knox e Sollecito, com direitos a críticas contundentes por parte do judiciário.
Usualmente, o que se dá é isto: a polícia, excessivamente permeável a paixões, assume uma postura de legitimar o próprio trabalho. A tão decantada busca da verdade encobre, na verdade, uma ânsia de provar que o suspeito já apontado é mesmo culpado. Ninguém quer assumir erros, então não se investigam outras possibilidades. Quase toda investigação policial não vai além de um esforço de provar aquilo em que já se acredita, mesmo que isso vá destruir algumas vidas inocentes. Quem se importa?
Um detalhe adicional: quando Knox estava na penitenciária, foi submetida a exames médicos. As autoridades mentiram que ela estava infectada por HIV, para desestabilizá-la emocionalmente. Ela escreveu um diário, revelando seus temores, que foi vazado para a imprensa e ajudou a construir a sua imagem de psicopata depravada. Podemos aceitar uma polícia que atue dessa forma?
Em qualquer lugar do mundo, o Ministério Público cede facilmente à posição de heroi e redentor da sociedade ofendida.
Giuliano Mignini foi entrevistado pelos documentaristas. É de sua própria boca que escutamos que começou a desconfiar de Knox por seu comportamento nas primeiras horas após a descoberta do cadáver. Ela e o namorado "se consolavam de maneira imprópria", trocando beijos. As imagens aparecem e não mostram nada demais. Ele também confessa sua paixão por investigações, então estar naquele turbilhão pode ter sido a realização de um sonho infantil. Ele afirma que o cadáver fora coberto, o que indicaria a participação de uma mulher, pois um homem jamais pensaria em algo assim. Fuééén!!! Errado! Cobrir o corpo pode ser um indicativo de remorso, mesmo em criminosos homens. Além do mais, tudo isso são tendências, não certezas.
Mais adiante, Mignini declara sua satisfação com o fato de andar nas ruas e ser cumprimentado e parabenizado por desconhecidos, após a condenação dos réus. Um vaidoso discreto, mas ainda assim vaidoso. Anos depois, quando os réus já estavam absolvidos, foi chamado de "ser maligno" por uma mulher. Mas ele tinha uma resposta para isso: as famosas técnicas de neutralização. Ele não parece incomodado com o fato de dois jovens terem ficado quatro anos presos (Sollecito ficou seis meses na solitária). Acusadores nunca assumem responsabilidade por eventuais erros.
Em qualquer lugar do mundo, diante de um crime brutal, a imprensa se comportará de modo sensacionalista e irresponsável, produzirá efeitos sobre a opinião pública e não assumirá responsabilidade alguma por isso.
A influência perversa da mídia sobre o campo penal é um dos assuntos mais em voga nos estudos criminológicos dos últimos anos. No caso Kercher, um dos jornalistas mais atuantes foi Nick Pisa, que não teve o menor pudor de ceder entrevista aos documentaristas, mostrando-se acintosamente leviano, debochado e insensível. Ele declara que não acredita em "julgamento pela mídia". Claro, ele é um dos sujeitos que se alimentam dessa indústria pornográfica.
Jornalistas sempre se escondem atrás da alegação de que apenas relatam fatos, com objetividade e isenção. É, provavelmente, a segunda maior mentira do mundo (não me perguntem qual é a primeira). Com essa prática amoral, fazem o que querem e se escusam de qualquer consequência, ainda que apenas ética. No entanto, Pisa informa que os repórteres caçaram na internet imagens dos réus e divulgaram as mais suspeitas que encontraram, além de popularizar uma alcunha grosseira para a acusada. É a famosa publicidade völkisch de que nos fala Zaffaroni: a deliberada exibição dos aspectos mais grosseiros possíveis, para produzir reações emocionais desfavoráveis no público. Nada a ver com objetividade, muito menos com a verdade. O importante é vender a notícia, antes dos concorrentes. Dito por Pisa.
Em qualquer lugar do mundo, uma mulher acusada de um crime grave será julgada moralmente e o desvalor moral sempre terá uma conotação sexual.
Graças ao diário de Knox, que não deveria, mas foi divulgado pelas autoridades italianas, o mundo soube que a jovem americana, até os seus 20 anos, teve relacionamentos sexuais com 7 homens. A tese da acusação? Uma predadora se aproveitou da inexperiência de Sollecito e o dominou emocionalmente graças ao sexo. Certa noite, levou para casa o namorado e um segundo homem (Rudy Guede), para uma aventura sexual. Meredith Kercher chegou e protestou. Furiosa por ser confrontada (o promotor Mignini afirmou que ela não tolerava ser questionada e não respeitava autoridade), matou a colega de quarto. Os dois homens não a impediram porque fariam tudo para satisfazê-la de todas as formas.
Misógino? O documentário não nos ajuda a responder esta pergunta. Não são apresentadas provas factuais que sustentem a tese moralista da acusação. A hipótese de Knox é que Guede, que tinha histórico de invasões domiciliares, entrara na casa para roubar e acabou estuprando e matando a mulher que encontrou lá dentro. Ele acabou condenado a 30 anos de prisão, pena reduzida para 16 anos. O judiciário insiste que há provas contra ele. Coincidência ou não, no fim, o estrangeiro negro foi o único culpado.
Em qualquer lugar do mundo, a população, diante de um crime bárbaro, reage com sede de sangue, exigindo a condenação daquele que tenha sido apontado como suspeito.
Seres humanos se entregam a suas emoções sem qualquer cuidado, mas cheios de retórica. Uma das mais comuns expressões disso é a sede de justiça. Ninguém se atém a fatos, muito menos a meandros jurídicos. Se não há condenação exemplar, não há justiça (vingança, bem entendido) e tudo é uma vergonha. A absolvição de Knox e Sollecito gerou indignação popular. Posteriormente, ele voltaram a ser condenados (a grande falha do documentário, a meu ver, é não mostrar o que aconteceu nesse período). Mas, por fim, a Suprema Corte italiana os absolveu, usando como argumentos a imprestabilidade probatória e a ação da imprensa, que forçara a indicação de culpados!
No fim das contas, o crime segue um acontecimento sem explicação cabal. Passados 9 anos desde a morte de Meredith Kercher, Amanda Knox se tornou advogada e hoje defende pessoas indevidamente acusadas de crimes, em sua cidade natal (Seattle). Rafaelle Sollecito tem uma empresa de informática em sua cidade natal (Bari).
Em meio às incertezas, a coisa mais importante que vemos no documentário foi dita pela própria Amanda Knox: se ela for culpada, então é um monstro e as pessoas devem temê-la. Se, no entanto, for inocente, isso prova que todos somos vulneráveis a uma acusação criminal incorreta, o que também provoca medo em todos.
Minha conclusão? Ao final, tudo tem a ver com medo. Medo de termos nossas vidas destruídas por bestas humanas ou pelo Estado, aquela entidade que todos os dias nos é vendida como generosa e comprometida com o bem comum. E ambos os medos convergem para o mesmo resultado: a condenação dos suspeitos. Se forem culpados, ótimo. Se forem inocentes, ainda assim serei poupado de saber que o mundo é mais falho do que parece. Poderei dormir à noite, acreditando que a lei, a ordem, as autoridades, a justiça ou coisa que o valha cuida de mim.
Para mim, acreditar nisso é que é assustador.
Informações adicionais:
- http://g1.globo.com/tudo-sobre/amanda-knox (Compilação de notícias do portal G1)
- http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/07/internacional/1475838543_510782.html (matéria após o lanlamento do documentário)
Veja também, no blog: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/01/fabricar-criminosos-faz-parte-de-um.html
domingo, 11 de setembro de 2016
Memórias com vista para o mar
Do The New York Times, edição de 31.8.1964:
Durante a abertura do Festival de Cannes, Julie Andrews, Dick Van Dyke e outros atores do filme Mary Poppins (Saving Mr. Banks) fizeram um protesto contra congressistas, a quem acusam de dar um golpe no presidente eleito, Lyndon Johnson. O diretor Robert Stevenson também participou da manifestação. Como resultado, o filme está sendo boicotado e amarga prejuízo considerável na bilheteria.
O longa é pura doutrinação comunista, feito para ridicularizar os valores supremos da tradicional família americana, representados pelo pai (que abdica do próprio bem-estar para trabalhar sem descanso, garantindo assim um padrão de vida elevado para seus familiares). Contra ele, estão a esposa que, em vez de criar os filhos, papel de toda mulher, se envolve com o movimento sufragista; e dois filhos que, embora perfeitamente brancos, odeiam a disciplina e querem que o pai abandone suas responsabilidades para viver entre folguedos inúteis. É quando chega Poppins, uma nova babá, estrangeira, vinda não se sabe de onde (alegoria para as doutrinas do bloco soviético), que usando música e mágica (recursos destinados a causar deslumbramento com as ideias marxistas), e auxiliada pelo vagabundo Bert (apologia do anarquismo), usa o amor do pai por seus filhos para corrompê-lo.
O filme achincalha o sistema bancário americano, responsável pelo desenvolvimento do país, ao mostrá-lo como uma confraria de velhos caquéticos e impiedosos que, obcecados por dinheiro, não hesitam em tomar até as moedinhas das crianças. O povo de bem deste país saberá dar o troco a essas odiosas empreitadas disfarçadas de cultura.
Ontem vi Aquarius, o filme brasileiro mais polêmico dos últimos anos. E polêmico por quê? Porque em 17 de maio passado, o elenco e o diretor do longa, ao passarem pelo tapete vermelho do 69º Festival de Cannes, ergueram cartazes, denunciando à opinião pública estrangeira, o golpe de Estado travestido de legalidade em curso no Brasil. O resto foi feito pela intellingentsia da classe média e da mídia brasileiras, que passaram a demonizar o longa e a torcer pelo seu insucesso, já que se teria tornado uma espécie de símbolo do contragolpe.
Mas Aquarius, enquanto filme, é tão apologético do pensamento de esquerda quanto o musical infantil Mary Poppins. Aliás, muito menos, porque o produto da Disney é caricato, ao passo que a obra de Kleber Mendonça Filho prima pela delicadeza e possui, no máximo, um único diálogo que poderia contrapor ideologias de classe, mas isso em uma cena em que Clara (Sônia Braga) confronta Diego (Humberto Carrão) por todos os prejuízos que está lhe causando e ouve dele ironias, ameaças e uma alusão ao fato de ser uma "pessoa de pele um pouco mais escura". Tudo o que ela diz é que ele estudou no exterior mas não aprendeu a ter caráter; que o único caráter que ele conhece é o dinheiro.
Se separarmos o filme em si da conduta dos envolvidos em sua produção, o que resta é um filme adorável, que alia um diretor elogiado desde o seu longa de estreia (O som ao redor, 2013) e a maior diva do cinema brasileiro, Sônia Braga, que merece cada elogio que lhe foi feito por sua atuação neste projeto. Absolutamente espontânea e segura em cena, comprovou que talento se vê nas minúcias. Em duas cenas, particularmente, em vez de exageros gestuais e do apelo ao descritivismo, ela desvela sua emoção em mudanças no semblante e em olhos que ficam levemente úmidos, sendo que nós, espectadores, sequer sabemos o motivo, só podendo intuir que a personagem está recordando eventos de seu passado. Lindo.
Aquarius é o nome do edifício antigo e de poucas unidades onde vive Clara, uma jornalista e escritora aposentada, viúva há 17 anos, que só quer viver a própria vida, em paz, em seu apartamento amplo e de frente para a praia de Boa Viagem, em Recife (cidade natal do cineasta). O problema é que uma grande construtora quer construir no local um novo empreendimento de alto padrão, obviamente com um ridículo nome em inglês, posteriormente modificado para "Novo Aquarius" para "preservar a memória do local", como se fosse uma grande coisa. A construtora já adquiriu todos os demais apartamentos, nos últimos seis anos, pelo menos, e Clara é o único empecilho à viabilização do projeto. Por isso é pressionada (e até ameaçada) pela empresa, mas também por antigos moradores, que dependem dela para receber o que lhes foi prometido (o filme informa que o padrão de mercado é oferecer metros quadrados para os compradores, não dinheiro, o que explica Clara ser vista como uma louca egoísta).
O que Aquarius mostra, portanto, é a luta de uma mulher de 65 anos, solitária, contra o poder econômico. O contraponto entre a ânsia de lucro, sempre apresentada com o mentiroso e odioso discurso do desenvolvimento, e o desejo de conservar as memórias, o sentimento de pertencimento a um lugar onde se esteve por gerações, além de outros valores puramente espirituais. Clara só quer conservar o cantinho onde plantou seus amigos, seus discos e livros e nada mais. Revolucionário? Qual o quê! Por todo o planeta esse tema é volta e meia explorado, inclusive entre os estadunidenses, que em 2001 deram vários prêmios de melhor atriz à mediana Julia Roberts, por sua atuação em Erin Brockovich, baseado em fatos reais, obra também indicada ao Oscar de melhor filme e melhor direção. A linha Davi contra Golias, em que o Davi é uma pessoa idealista e Golias, uma corporação ou um grupo muito mais forte, pode ser considerada um ramo do cinema mais comercial.
A questão é que Aquarius se insere nesse nicho com muita propriedade. Em que pese o cineasta ser um apoiador pessoal de Dilma Rousseff, precisamos por em contexto que a especulação imobiliária na orla de Recife é um dos principais problemas de infraestrutura daquela cidade, sendo perfeitamente compreensível que Mendonça quisesse tratar disso, qualquer que fosse a conjuntura política no país. O filme não precisaria sofrer nenhuma mudança. O que conta, portanto, é o roteiro bem construído; são os diálogos brilhantes, até mesmo nas cenas de amenidades (com destaque para a estória da mulher que foi a uma livraria comprar "três metros de livro" por recomendação de seu arquiteto!); a inserção da música como um elemento essencial da narrativa, recurso usado com sucesso em outros filmes bem recebidos pela crítica; e, inclusive, a defesa de valores importantes à sociedade, como a família. Aquarius é um filme de casamentos felizes que só terminam pela viuvez, gerando filhos e sobrinhos amados e cuidados com carinho. Veja como termina a cena de discussão entre Clara e sua filha.
Por tudo isso, boicotar essa joia do cinema nacional pelo ativismo da equipe deve ser tributado ao esfumaçamento da inteligência e do bom senso de uma súcia que se "instrui" nas páginas da direita hidrófoba na internet, tendo à frente canalhas notórios como o tal de Reinaldo Azevedo, que conclamou as "pessoas de bem" (sempre elas) ao boicote, apelo repercutido pela interminável legião de zumbis das redes sociais.
Não fossem os pronunciamentos do diretor e dos atores, Aquarius estaria sendo visto de acordo com os méritos que realmente possui, o que abrange ser um forte candidato a representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro, inclusive pela presença de Sônia Braga, muito benquista por aquelas bandas. Essa indicação é a nova batalha politicaloide do longa (cf. http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2016/09/aquarius-concorrera-com-15-filmes-para-representar-o-brasil-no-oscar.html). O filme indicado será conhecido amanhã.
Pessoalmente, não tenho preferência, primeiro porque considero deslumbramento com o Oscar coisa de gente colonizada; mas também porque, dos filmes indicados, Aquarius foi o único que vi, por mais que respeite e valorize o cinema nacional. Infelizmente, contudo, nem todos os títulos chegam às salas de cinema e os que chegam vêm com horários reduzidos, porque os exibidores querem mesmo lucrar com os títulos comercialoides que, no caso brasileiro, normalmente são as comédias, a que não assisto.
Em suma, se você gosta de uma bela estória, muito bem contada, veja Aquarius. E escute Maria Bethania, para mostrar que é intenso.
Durante a abertura do Festival de Cannes, Julie Andrews, Dick Van Dyke e outros atores do filme Mary Poppins (Saving Mr. Banks) fizeram um protesto contra congressistas, a quem acusam de dar um golpe no presidente eleito, Lyndon Johnson. O diretor Robert Stevenson também participou da manifestação. Como resultado, o filme está sendo boicotado e amarga prejuízo considerável na bilheteria.
O longa é pura doutrinação comunista, feito para ridicularizar os valores supremos da tradicional família americana, representados pelo pai (que abdica do próprio bem-estar para trabalhar sem descanso, garantindo assim um padrão de vida elevado para seus familiares). Contra ele, estão a esposa que, em vez de criar os filhos, papel de toda mulher, se envolve com o movimento sufragista; e dois filhos que, embora perfeitamente brancos, odeiam a disciplina e querem que o pai abandone suas responsabilidades para viver entre folguedos inúteis. É quando chega Poppins, uma nova babá, estrangeira, vinda não se sabe de onde (alegoria para as doutrinas do bloco soviético), que usando música e mágica (recursos destinados a causar deslumbramento com as ideias marxistas), e auxiliada pelo vagabundo Bert (apologia do anarquismo), usa o amor do pai por seus filhos para corrompê-lo.
O filme achincalha o sistema bancário americano, responsável pelo desenvolvimento do país, ao mostrá-lo como uma confraria de velhos caquéticos e impiedosos que, obcecados por dinheiro, não hesitam em tomar até as moedinhas das crianças. O povo de bem deste país saberá dar o troco a essas odiosas empreitadas disfarçadas de cultura.
Ontem vi Aquarius, o filme brasileiro mais polêmico dos últimos anos. E polêmico por quê? Porque em 17 de maio passado, o elenco e o diretor do longa, ao passarem pelo tapete vermelho do 69º Festival de Cannes, ergueram cartazes, denunciando à opinião pública estrangeira, o golpe de Estado travestido de legalidade em curso no Brasil. O resto foi feito pela intellingentsia da classe média e da mídia brasileiras, que passaram a demonizar o longa e a torcer pelo seu insucesso, já que se teria tornado uma espécie de símbolo do contragolpe.
Mas Aquarius, enquanto filme, é tão apologético do pensamento de esquerda quanto o musical infantil Mary Poppins. Aliás, muito menos, porque o produto da Disney é caricato, ao passo que a obra de Kleber Mendonça Filho prima pela delicadeza e possui, no máximo, um único diálogo que poderia contrapor ideologias de classe, mas isso em uma cena em que Clara (Sônia Braga) confronta Diego (Humberto Carrão) por todos os prejuízos que está lhe causando e ouve dele ironias, ameaças e uma alusão ao fato de ser uma "pessoa de pele um pouco mais escura". Tudo o que ela diz é que ele estudou no exterior mas não aprendeu a ter caráter; que o único caráter que ele conhece é o dinheiro.
Se separarmos o filme em si da conduta dos envolvidos em sua produção, o que resta é um filme adorável, que alia um diretor elogiado desde o seu longa de estreia (O som ao redor, 2013) e a maior diva do cinema brasileiro, Sônia Braga, que merece cada elogio que lhe foi feito por sua atuação neste projeto. Absolutamente espontânea e segura em cena, comprovou que talento se vê nas minúcias. Em duas cenas, particularmente, em vez de exageros gestuais e do apelo ao descritivismo, ela desvela sua emoção em mudanças no semblante e em olhos que ficam levemente úmidos, sendo que nós, espectadores, sequer sabemos o motivo, só podendo intuir que a personagem está recordando eventos de seu passado. Lindo.
Clara rasga, sem ler, a proposta milionária da construtora. |
Disfarçado de bom moço, o poder ataca diretamente e, se não funcionar, há um plano criminoso em andamento no andar mais alto. |
A questão é que Aquarius se insere nesse nicho com muita propriedade. Em que pese o cineasta ser um apoiador pessoal de Dilma Rousseff, precisamos por em contexto que a especulação imobiliária na orla de Recife é um dos principais problemas de infraestrutura daquela cidade, sendo perfeitamente compreensível que Mendonça quisesse tratar disso, qualquer que fosse a conjuntura política no país. O filme não precisaria sofrer nenhuma mudança. O que conta, portanto, é o roteiro bem construído; são os diálogos brilhantes, até mesmo nas cenas de amenidades (com destaque para a estória da mulher que foi a uma livraria comprar "três metros de livro" por recomendação de seu arquiteto!); a inserção da música como um elemento essencial da narrativa, recurso usado com sucesso em outros filmes bem recebidos pela crítica; e, inclusive, a defesa de valores importantes à sociedade, como a família. Aquarius é um filme de casamentos felizes que só terminam pela viuvez, gerando filhos e sobrinhos amados e cuidados com carinho. Veja como termina a cena de discussão entre Clara e sua filha.
A estúpida pretensão de boicote não deu muito certo. |
Não fossem os pronunciamentos do diretor e dos atores, Aquarius estaria sendo visto de acordo com os méritos que realmente possui, o que abrange ser um forte candidato a representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro, inclusive pela presença de Sônia Braga, muito benquista por aquelas bandas. Essa indicação é a nova batalha politicaloide do longa (cf. http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2016/09/aquarius-concorrera-com-15-filmes-para-representar-o-brasil-no-oscar.html). O filme indicado será conhecido amanhã.
Pessoalmente, não tenho preferência, primeiro porque considero deslumbramento com o Oscar coisa de gente colonizada; mas também porque, dos filmes indicados, Aquarius foi o único que vi, por mais que respeite e valorize o cinema nacional. Infelizmente, contudo, nem todos os títulos chegam às salas de cinema e os que chegam vêm com horários reduzidos, porque os exibidores querem mesmo lucrar com os títulos comercialoides que, no caso brasileiro, normalmente são as comédias, a que não assisto.
Em suma, se você gosta de uma bela estória, muito bem contada, veja Aquarius. E escute Maria Bethania, para mostrar que é intenso.
sábado, 10 de setembro de 2016
Aprendizagem de periferia vs. expectativas de centro
Quando pergunto a meus alunos neófitos qual é a primeira instância de socialização, a resposta vem certeira: a família. Chega a ser intuitivo, já que todos eles têm suas famílias e suas memórias mais remotas estão diretamente relacionadas ao grupo formado por pessoas que, segundo se toma como regra, estão fortemente vinculadas por sentimentos e agem movidas pelo desejo de proteger e de orientar, notadamente suas crianças.
Mas imagine que esse processo natural seja interrompido. Imagine, por exemplo, que seu pai motorista de ônibus seja assassinado e sua mãe, presa (injustamente). Você vive em uma das capitais brasileiras com os mais elevados índices de violência urbana e, de repente, está por sua própria conta. Você é uma menina de 10 anos ou um menino de 3, que ainda nem foi para a escola. O que há de acontecer doravante? O roteiro de Justiça apostou na obviedade: sete anos mais tarde, Mayara é prostituta e Jesus, a despeito do nome, tornou-se ladrão. Sua cruz saiu do meio para a lateral.
Não me concentrarei, por enquanto, em Mayara (Letícia Braga/Júlia Dalavia) porque a trama que lhe foi destinada é a da vingança contra a mulher que desgraçou sua família, projeto que lhe parece tão importante que, para consumá-lo, vale a pena seguir uma rotina de prostituição, com todos os temperos associados, tais como tomar porrada na cara. Quero me concentrar em Jesus (Bernardo Berruzo/Tobias Carrieres) e, por meio dele, divagar um pouco sobre as consequências de uma criança não receber a indispensável orientação moral, no momento adequado.
Por oportuno, destaco que existem relevantes estudos, nos campos da psicologia e, inclusive, das neurociências, acerca dos efeitos da afetividade sobre a moldagem do cérebro humano, na primeira infância, o que tende a produzir reflexos por toda a vida adulta. Sim, estou dizendo que a falta de cuidado e orientação, na fase própria, compromete o desenvolvimento da pessoa e, no futuro, isso afetará a sua capacidade de percepção do mundo, dificultando a tomada de decisões éticas, já que toda ética pressupõe alguma padronização. E só aceita os padrões quem os compreende. Mas atenção: devemos rejeitar os determinismos, sobretudo os biológicos. Estou falando de tendências, apenas.
Acredito que a trama de Jesus seja a mais propensa a irritar o brasileiro médio de classe média, com sua incapacidade de se por no lugar do outro, sua imediatidade em fazer julgamentos maniqueístas extremos, sua fé cega no livre arbítrio e na fantasia de que se pode conseguir tudo que se sonha desde que se queira com toda a força do coração. Papai Noel sorriria, se existisse.
Jesus é o membro mais jovem de um trio de trombadinhas e ajuda a assaltar Fátima. Após tanto tempo sem se verem, ela o reconhece com a ajuda da cicatriz de mordida de cachorro no braço. Ele, claro, tem dúvida. Por isso, mais tarde, pega a carteira de identidade da bolsa roubada e pede ao comparsa que leia. Reconhece o nome. Amalandrado pela vida na rua, age com precisão cirúrgica: não esboça reação. Espera um moleque ir embora e o outro tombar sob o efeito da droga, pega a bolsa e o dinheiro e volta para casa, originando aquela cena linda do reencontro de mãe e filho.
A cena apela para forte dramaticidade (e funciona muito bem). Dividido entre o amadurecimento forçado e corrompido das ruas e o fato de ser apenas uma criança, Jesus canta para Fátima uma canção que usara durante todos aqueles anos para não se esquecer dela. Sua atitude, inclusive de perguntar para Douglas como era seu falecido pai, demonstra que sente falta da família e quer o suporte de referenciais adultos. Mas ele tem as marcas da infância desassistida. Em outra cena, Fátima lhe dá um tapinha quando ele comenta que Mayara virou prostituta. Sua reação é agressiva: empurra a mãe e ameaça ir embora. Como esperar delicadeza ou respeito à autoridade de quem não foi ensinado a agir assim e, menos ainda, teve exemplos nesse sentido?
O que salva Jesus, acredito, são os três anos de amor que marcaram a primeira fase de sua vida. São eles que fazem o menino ficar com a mãe e ajudá-la em seu projeto de viver honestamente da venda de comida. Todavia, não se deleta o próprio histórico: na primeira oportunidade, o menino engana um cliente para ficar com 20 reais. A mãe descobre e os dois têm novo embate: ela ensina que não se toma o que é dos outros, nem que sejam apenas 10 centavos. Diz que não criou filho para ser ladrão. Contudo, junto com a disciplina vem o amor (isso não se aprende na rua, que só oferece a violência). Ela diz: "que bom que tu tá chorando, porque isso mostra que tu tá arrependido. Vai pro teu quarto sentir essa vergonha até o fim". Manda que ele devolva o dinheiro. E afaga sua cabeça. O menino obedece. Aprendi, quando me tornei pai, que crianças querem ser disciplinadas e nos testam com essa finalidade. Se respondemos à altura, podemos formar verdadeiros cidadãos, gente boa e solidária.
Fátima é uma fortaleza, meu personagem favorito na série. Incansável na tarefa de resgatar o filho, no capítulo 10 ela mita, como se diz hoje em dia: diz que foi presa injustamente e podia estar com o coração cheio de ódio e desejo de vingança, mas se assim agisse, a prisão teria decidido por ela. Invoca a autonomia moral: diz ao filho que, assim como ela decidiu a pessoa que quer ser, ele deve decidir a própria vida. Mas não se esquece de amarrar as pontas: fala em escolher uma profissão e, como mãe, preocupada com questões práticas, desestimula ser motorista de ônibus como o pai. "A gente tem que evoluir".
Fátima transita entre o estilo dos folhetins tradicionais (a virtude inabalável) e a inclinação ao naturalismo dos últimos anos: ela se descontrola, mata cachorro, ameaça vizinho com terçado. Mas defende seus valores e é solidária. Para mim, é totalmente plausível, o tipo de pessoa que vale a pena conhecer. O tipo de pessoa capaz de resgatar uma alma do vício, da perda, do crime (sem querer naturalizar estes termos), pois é movida por interesse sincero e educa pelo exemplo. É o oposto do Estado, que se esgota na ação punitiva, porque assim são seus agentes e, acima de tudo, assim é a sociedade.
Para mim, a trama de Fátima e Jesus serve de metáfora, pois indica o caminho a seguir se queremos salvar vidas (as de quem está em queda e as de quem pode ser machucado por estes). Entretanto, esse caminho é extremamente difícil e envolve largas doses de frustração. Se somos movidos pela pressa e, sobretudo, se não queremos ter trabalho, as soluções serão diversas: primeiro a palmada, depois a brutalização e as diferentes formas de institucionalização que, neste país, representam o amontoamento inútil dos problemas que poderíamos matar, se não houvesse uma droga da lei limitando esse desejo.
Post scriptum. Pode parecer contraditório eu mencionar autonomia moral do indivíduo quando rejeito a ideia tradicional de livre arbítrio. Esta postagem não avançará por aí. Por ora, esclareço que não nego a existência do livre arbítrio. O que rejeito é a concepção de que ele pode ser medido a partir de um consenso valorativo de toda a sociedade e que, em consequência, todas as escolhas que as pessoas fazem são plenamente livres. Esta interpretação simplista permite encarar o desviante sempre como um transgressor voluntário e, portanto, merecedor dos piores castigos. Acredito que circunstâncias existenciais que comprometem o desenvolvimento humano afetam a percepção do que é certo ou errado, dificultando ou impedindo, às vezes, que o agente corresponda às expectativas sociais. Nesse caso, sua responsabilização não poderia ser igual a de quem teve toda a assistência possível. Mas este assunto exige longa reflexão, inclusive de minha parte.
Antecedentes criminais
Mas imagine que esse processo natural seja interrompido. Imagine, por exemplo, que seu pai motorista de ônibus seja assassinado e sua mãe, presa (injustamente). Você vive em uma das capitais brasileiras com os mais elevados índices de violência urbana e, de repente, está por sua própria conta. Você é uma menina de 10 anos ou um menino de 3, que ainda nem foi para a escola. O que há de acontecer doravante? O roteiro de Justiça apostou na obviedade: sete anos mais tarde, Mayara é prostituta e Jesus, a despeito do nome, tornou-se ladrão. Sua cruz saiu do meio para a lateral.
Não me concentrarei, por enquanto, em Mayara (Letícia Braga/Júlia Dalavia) porque a trama que lhe foi destinada é a da vingança contra a mulher que desgraçou sua família, projeto que lhe parece tão importante que, para consumá-lo, vale a pena seguir uma rotina de prostituição, com todos os temperos associados, tais como tomar porrada na cara. Quero me concentrar em Jesus (Bernardo Berruzo/Tobias Carrieres) e, por meio dele, divagar um pouco sobre as consequências de uma criança não receber a indispensável orientação moral, no momento adequado.
Por oportuno, destaco que existem relevantes estudos, nos campos da psicologia e, inclusive, das neurociências, acerca dos efeitos da afetividade sobre a moldagem do cérebro humano, na primeira infância, o que tende a produzir reflexos por toda a vida adulta. Sim, estou dizendo que a falta de cuidado e orientação, na fase própria, compromete o desenvolvimento da pessoa e, no futuro, isso afetará a sua capacidade de percepção do mundo, dificultando a tomada de decisões éticas, já que toda ética pressupõe alguma padronização. E só aceita os padrões quem os compreende. Mas atenção: devemos rejeitar os determinismos, sobretudo os biológicos. Estou falando de tendências, apenas.
Acredito que a trama de Jesus seja a mais propensa a irritar o brasileiro médio de classe média, com sua incapacidade de se por no lugar do outro, sua imediatidade em fazer julgamentos maniqueístas extremos, sua fé cega no livre arbítrio e na fantasia de que se pode conseguir tudo que se sonha desde que se queira com toda a força do coração. Papai Noel sorriria, se existisse.
Jesus é o membro mais jovem de um trio de trombadinhas e ajuda a assaltar Fátima. Após tanto tempo sem se verem, ela o reconhece com a ajuda da cicatriz de mordida de cachorro no braço. Ele, claro, tem dúvida. Por isso, mais tarde, pega a carteira de identidade da bolsa roubada e pede ao comparsa que leia. Reconhece o nome. Amalandrado pela vida na rua, age com precisão cirúrgica: não esboça reação. Espera um moleque ir embora e o outro tombar sob o efeito da droga, pega a bolsa e o dinheiro e volta para casa, originando aquela cena linda do reencontro de mãe e filho.
A cena apela para forte dramaticidade (e funciona muito bem). Dividido entre o amadurecimento forçado e corrompido das ruas e o fato de ser apenas uma criança, Jesus canta para Fátima uma canção que usara durante todos aqueles anos para não se esquecer dela. Sua atitude, inclusive de perguntar para Douglas como era seu falecido pai, demonstra que sente falta da família e quer o suporte de referenciais adultos. Mas ele tem as marcas da infância desassistida. Em outra cena, Fátima lhe dá um tapinha quando ele comenta que Mayara virou prostituta. Sua reação é agressiva: empurra a mãe e ameaça ir embora. Como esperar delicadeza ou respeito à autoridade de quem não foi ensinado a agir assim e, menos ainda, teve exemplos nesse sentido?
O que salva Jesus, acredito, são os três anos de amor que marcaram a primeira fase de sua vida. São eles que fazem o menino ficar com a mãe e ajudá-la em seu projeto de viver honestamente da venda de comida. Todavia, não se deleta o próprio histórico: na primeira oportunidade, o menino engana um cliente para ficar com 20 reais. A mãe descobre e os dois têm novo embate: ela ensina que não se toma o que é dos outros, nem que sejam apenas 10 centavos. Diz que não criou filho para ser ladrão. Contudo, junto com a disciplina vem o amor (isso não se aprende na rua, que só oferece a violência). Ela diz: "que bom que tu tá chorando, porque isso mostra que tu tá arrependido. Vai pro teu quarto sentir essa vergonha até o fim". Manda que ele devolva o dinheiro. E afaga sua cabeça. O menino obedece. Aprendi, quando me tornei pai, que crianças querem ser disciplinadas e nos testam com essa finalidade. Se respondemos à altura, podemos formar verdadeiros cidadãos, gente boa e solidária.
Fátima é uma fortaleza, meu personagem favorito na série. Incansável na tarefa de resgatar o filho, no capítulo 10 ela mita, como se diz hoje em dia: diz que foi presa injustamente e podia estar com o coração cheio de ódio e desejo de vingança, mas se assim agisse, a prisão teria decidido por ela. Invoca a autonomia moral: diz ao filho que, assim como ela decidiu a pessoa que quer ser, ele deve decidir a própria vida. Mas não se esquece de amarrar as pontas: fala em escolher uma profissão e, como mãe, preocupada com questões práticas, desestimula ser motorista de ônibus como o pai. "A gente tem que evoluir".
Fátima transita entre o estilo dos folhetins tradicionais (a virtude inabalável) e a inclinação ao naturalismo dos últimos anos: ela se descontrola, mata cachorro, ameaça vizinho com terçado. Mas defende seus valores e é solidária. Para mim, é totalmente plausível, o tipo de pessoa que vale a pena conhecer. O tipo de pessoa capaz de resgatar uma alma do vício, da perda, do crime (sem querer naturalizar estes termos), pois é movida por interesse sincero e educa pelo exemplo. É o oposto do Estado, que se esgota na ação punitiva, porque assim são seus agentes e, acima de tudo, assim é a sociedade.
Para mim, a trama de Fátima e Jesus serve de metáfora, pois indica o caminho a seguir se queremos salvar vidas (as de quem está em queda e as de quem pode ser machucado por estes). Entretanto, esse caminho é extremamente difícil e envolve largas doses de frustração. Se somos movidos pela pressa e, sobretudo, se não queremos ter trabalho, as soluções serão diversas: primeiro a palmada, depois a brutalização e as diferentes formas de institucionalização que, neste país, representam o amontoamento inútil dos problemas que poderíamos matar, se não houvesse uma droga da lei limitando esse desejo.
Post scriptum. Pode parecer contraditório eu mencionar autonomia moral do indivíduo quando rejeito a ideia tradicional de livre arbítrio. Esta postagem não avançará por aí. Por ora, esclareço que não nego a existência do livre arbítrio. O que rejeito é a concepção de que ele pode ser medido a partir de um consenso valorativo de toda a sociedade e que, em consequência, todas as escolhas que as pessoas fazem são plenamente livres. Esta interpretação simplista permite encarar o desviante sempre como um transgressor voluntário e, portanto, merecedor dos piores castigos. Acredito que circunstâncias existenciais que comprometem o desenvolvimento humano afetam a percepção do que é certo ou errado, dificultando ou impedindo, às vezes, que o agente corresponda às expectativas sociais. Nesse caso, sua responsabilização não poderia ser igual a de quem teve toda a assistência possível. Mas este assunto exige longa reflexão, inclusive de minha parte.
Antecedentes criminais
- Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
- Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
- Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
- Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html
- Capítulo 4: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/eu-que-te-amo-tanto-ponto-de-te-matar.html
- Capítulo 5: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-caminho-do-perdao.html
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
Te abicora!
O nome dele é Celso (Vladimir Brichta) e é uma personagem secundário. Sempre que aparece, está gravitando em torno de algum personagem que recebe nossa atenção mais destacada. Contudo:
Começou o seriado dono de barraca na praia e pedalando uma bicicleta. Hoje, mora bem, dirige um carrão e expandiu seus negócios, sendo que o único mais ou menos honesto é a barraca na praia.
Surgiu transando com uma adolescente de 17 anos. Trafica drogas para finalidades de recreação ou de eutanásia. Também descola uma arma, se pagar bem. Tornou-se cafetão e não tem problemas em explorar a prostituição de menores. Suas ações já mandaram uma pessoa para o túmulo e duas para a cadeia. Mais uma e já pode pedir música no "Fantástico".
Quando confrontado, foge. Quando requisitado, hesita. Quando vê as consequências, sofre. Provavelmente, vê a si mesmo como um sujeito super decente. Como diria George R. R. Martin, "ninguém é vilão na própria história".
Cuidado com ele.
Começou o seriado dono de barraca na praia e pedalando uma bicicleta. Hoje, mora bem, dirige um carrão e expandiu seus negócios, sendo que o único mais ou menos honesto é a barraca na praia.
Surgiu transando com uma adolescente de 17 anos. Trafica drogas para finalidades de recreação ou de eutanásia. Também descola uma arma, se pagar bem. Tornou-se cafetão e não tem problemas em explorar a prostituição de menores. Suas ações já mandaram uma pessoa para o túmulo e duas para a cadeia. Mais uma e já pode pedir música no "Fantástico".
Quando confrontado, foge. Quando requisitado, hesita. Quando vê as consequências, sofre. Provavelmente, vê a si mesmo como um sujeito super decente. Como diria George R. R. Martin, "ninguém é vilão na própria história".
Cuidado com ele.
A caminho do perdão?
Conforme disseram a autora e o diretor artístico da série Justiça, no vídeo mencionado na primeira postagem que fiz sobre o programa, a produção não versa sobre leis, crimes e tribunais, mas sobre dilemas éticos. Portanto, a turma do Direito precisa conter um pouco suas expectativas e aceitar que, à medida que as tramas avançam, a novela pode substituir o laboratório criminológico, sem deixar de ser campo propício a importantes reflexões.
Se isso ocorrer, minhas resenhas ficarão comprometidas, porque não sou crítico de TV. Mas seguirei aventurando em relação ao capítulo 5 (segundo de Elisa e Vicente). O criminólogo em mim encontrou alguns pontos que merecem atenção.
A desambientação.
Um dos temas mais recorrentes para quem se interessa pela questão penitenciária é o da prisonização, processo psicológico de enfraquecimento da capacidade de interação com o mundo real e de progressiva assimilação do modo de vida carcerária. Trata-se de uma consequência inevitável da colocação do indivíduo em um ambiente absolutamente antinatural e hostil, no qual a pessoa substitui as suas aspirações de vida por outras, muito mais elementares, às vezes ligadas à própria subsistência (Zaffaroni).
Trata-se de um processo de brutalização da pessoa mas, ao mesmo tempo, também é uma domesticação, porque a isso se destina a prisão desde a sua gênese: dobrar o espírito do rebelde e obrigá-lo a assumir um padrão de conduta desejado pelo poder que mandou executar a pena.
Michel Foucault (Microfísica do poder; Vigiar e punir) nos fala sobre o isomorfismo reformista e sobre a ortopedia moral, técnicas utilizadas na sociedade disciplinar, e particularmente nas instituições totais, para submeter o corpo e a mente do preso à aceitação de sua condição de força de trabalho explorada, no contexto das mudanças econômicas do século XVIII. Quem se interessar pelo tema encontrará abordagens ainda mais detalhadas e específicas sobre a relação entre a prisão e as novas relações de produção capitalistas nas obras obrigatórias de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Punição e estrutura social) e de Dario Melossi e Massimo Pavarini (Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário - séculos XVI-XIX), ambas publicadas pela Editora Revan.
Os efeitos da prisonização são vistos em Vicente quando, em casa, diz não saber o lugar de nada, mas sobretudo quando alega que sair da prisão é pior do que entrar. Retornar ao mundo exterior é difícil porque se perdeu o traquejo para fazer as coisas mais simples, espontâneas e até automáticas para quem nunca foi preso. No caso de Vicente, há um componente grave atuando: o remorso. Neste episódio, descobrimos que ele tentou se matar mais de uma vez (a tal característica dos verdadeiros passionais, mencionada na resenha do capítulo 1) e que foi em uma internação hospitalar que conheceu a mãe de sua filha, nascida quando ainda cumpria pena.
Mas Vicente está empenhado em uma cruzada pelo perdão de Elisa. Escutei uma crítica sobre ele estar fazendo isso por si mesmo. Respondo: óbvio. Não é isso que fazemos? Tentamos resolver as nossas angústias? Aliás, penso que é somente isso que podemos fazer. Até podemos ajudar os outros com sinceridade mas, como diria Zeca Baleiro, "quem saberá a cura do meu coração senão eu?" Vicente não pode curar Elisa. Essa tarefa compete a ela mesma. E isso nos leva ao outro ponto.
Haverá reconciliação?
O episódio termina com Elisa e Vicente se encontrando por acaso no túmulo de Isabela. Antes, já houvera um momento de tensão entre os dois na faculdade onde ela leciona (agora sei que ela é "Ph.D em Filosofia do Direito"), graças a uma intensa pressão que Heitor está fazendo, alegadamente pelo bem da namorada.
Vicente se desculpa por estar ali e se prepara para sair. Elisa chora e diz que sente muita saudade da filha. Certas pessoas reagem com sentimentos ambíguos diante dos assassinos de seus entes queridos: há o ódio, a repulsa, mas há também uma estranha necessidade de interação. Ao ver a cena, especulei: essa estória terminará com esses dois se abraçando. Pode parecer apenas um recurso dramático para a narrativa, porém há um argumento criminológico associável a essa eventual opção de roteiro.
Se a autora estudou o nosso campo para construir o projeto, é provável que se tenha debruçado sobre o tema da justiça restaurativa. Howard Zehr, um dos maiores estudiosos do tema, explica:
"Se o crime é um dano, uma lesão, o que é a justiça? Novamente, valendo-nos da visão consignada na Bíblia, se o crime machuca as pessoas, a justiça deveria acertar tudo para as pessoas e entre elas. Quando um mal é cometido, a questão central não deveria ser 'O que devemos fazer ao ofensor?', ou 'O que o ofensor merece?', mas sim 'O que podemos fazer para corrigir a situação?'
Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração ― ao invés de mais violação ― deveriam contrabalançar o dano advindo do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar."
A justiça restaurativa é bastante controversa e aqui não é o espaço para aprofundarmos a questão. Contudo, ela avança entre os estudiosos do campo penal e também entre as instituições. Em 1º de agosto último, entrou em vigor no país a Resolução n. 225, de 31.5.2016, do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece os procedimentos para implantação da justiça restaurativa no poder judiciário brasileiro, em respeito às recomendações da Organização das Nações Unidas. Já existem experiências em andamento, inclusive aqui em Belém.
Preocupa-me que uma série tão bem construída siga pelo batido e decepcionante caminho da vingança. Elisa quer se vingar de Vicente; Mayara quer se vingar de Kelly; Rose e Débora querem se vingar do estuprador; Maurício quer se vingar de Antenor. Em todas as tramas, o apelo cafona está presente e é provável que se consume, mas a autora mostraria grandeza e sairia da vala comum ficcional se aproveitasse ao menos o enredo da segunda-feira para uma solução diferente, valendo-se do que há de revolucionário na justiça restaurativa: a substituição do paradigma retributivo (a vingança, a necessidade de retribuir o mal do crime com o mal da pena), único que funciona na cabeça da esmagadora maioria das pessoas, por outro que aposte na reconstrução das vidas, em benefício das próprias vítimas.
Seria no mínimo inspirador ver uma abordagem dessas no horário nobre da emissora de maior audiência do país.
Post scriptum.
É uma bobagem, mas preciso dizer: Vicente sai da prisão após sete anos, sem dinheiro, com uma família para conhecer, psicologicamente perturbado e, dois dias depois, já está na faculdade, para iniciar um curso de Direito? Entre uma tentativa de suicídio e outra, ele estudou para o vestibular, fez prova, matrícula, etc.?
Uma coisa que não se salva nesta minissérie e o elemento tempo.
Antecedentes criminais
Se isso ocorrer, minhas resenhas ficarão comprometidas, porque não sou crítico de TV. Mas seguirei aventurando em relação ao capítulo 5 (segundo de Elisa e Vicente). O criminólogo em mim encontrou alguns pontos que merecem atenção.
A desambientação.
Um dos temas mais recorrentes para quem se interessa pela questão penitenciária é o da prisonização, processo psicológico de enfraquecimento da capacidade de interação com o mundo real e de progressiva assimilação do modo de vida carcerária. Trata-se de uma consequência inevitável da colocação do indivíduo em um ambiente absolutamente antinatural e hostil, no qual a pessoa substitui as suas aspirações de vida por outras, muito mais elementares, às vezes ligadas à própria subsistência (Zaffaroni).
Trata-se de um processo de brutalização da pessoa mas, ao mesmo tempo, também é uma domesticação, porque a isso se destina a prisão desde a sua gênese: dobrar o espírito do rebelde e obrigá-lo a assumir um padrão de conduta desejado pelo poder que mandou executar a pena.
Michel Foucault (Microfísica do poder; Vigiar e punir) nos fala sobre o isomorfismo reformista e sobre a ortopedia moral, técnicas utilizadas na sociedade disciplinar, e particularmente nas instituições totais, para submeter o corpo e a mente do preso à aceitação de sua condição de força de trabalho explorada, no contexto das mudanças econômicas do século XVIII. Quem se interessar pelo tema encontrará abordagens ainda mais detalhadas e específicas sobre a relação entre a prisão e as novas relações de produção capitalistas nas obras obrigatórias de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Punição e estrutura social) e de Dario Melossi e Massimo Pavarini (Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário - séculos XVI-XIX), ambas publicadas pela Editora Revan.
Os efeitos da prisonização são vistos em Vicente quando, em casa, diz não saber o lugar de nada, mas sobretudo quando alega que sair da prisão é pior do que entrar. Retornar ao mundo exterior é difícil porque se perdeu o traquejo para fazer as coisas mais simples, espontâneas e até automáticas para quem nunca foi preso. No caso de Vicente, há um componente grave atuando: o remorso. Neste episódio, descobrimos que ele tentou se matar mais de uma vez (a tal característica dos verdadeiros passionais, mencionada na resenha do capítulo 1) e que foi em uma internação hospitalar que conheceu a mãe de sua filha, nascida quando ainda cumpria pena.
Mas Vicente está empenhado em uma cruzada pelo perdão de Elisa. Escutei uma crítica sobre ele estar fazendo isso por si mesmo. Respondo: óbvio. Não é isso que fazemos? Tentamos resolver as nossas angústias? Aliás, penso que é somente isso que podemos fazer. Até podemos ajudar os outros com sinceridade mas, como diria Zeca Baleiro, "quem saberá a cura do meu coração senão eu?" Vicente não pode curar Elisa. Essa tarefa compete a ela mesma. E isso nos leva ao outro ponto.
Haverá reconciliação?
O episódio termina com Elisa e Vicente se encontrando por acaso no túmulo de Isabela. Antes, já houvera um momento de tensão entre os dois na faculdade onde ela leciona (agora sei que ela é "Ph.D em Filosofia do Direito"), graças a uma intensa pressão que Heitor está fazendo, alegadamente pelo bem da namorada.
Vicente se desculpa por estar ali e se prepara para sair. Elisa chora e diz que sente muita saudade da filha. Certas pessoas reagem com sentimentos ambíguos diante dos assassinos de seus entes queridos: há o ódio, a repulsa, mas há também uma estranha necessidade de interação. Ao ver a cena, especulei: essa estória terminará com esses dois se abraçando. Pode parecer apenas um recurso dramático para a narrativa, porém há um argumento criminológico associável a essa eventual opção de roteiro.
Se a autora estudou o nosso campo para construir o projeto, é provável que se tenha debruçado sobre o tema da justiça restaurativa. Howard Zehr, um dos maiores estudiosos do tema, explica:
"Se o crime é um dano, uma lesão, o que é a justiça? Novamente, valendo-nos da visão consignada na Bíblia, se o crime machuca as pessoas, a justiça deveria acertar tudo para as pessoas e entre elas. Quando um mal é cometido, a questão central não deveria ser 'O que devemos fazer ao ofensor?', ou 'O que o ofensor merece?', mas sim 'O que podemos fazer para corrigir a situação?'
Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração ― ao invés de mais violação ― deveriam contrabalançar o dano advindo do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar."
(ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça.
São Paulo: Palas Athena, 2008, pp. 175-176)
A justiça restaurativa é bastante controversa e aqui não é o espaço para aprofundarmos a questão. Contudo, ela avança entre os estudiosos do campo penal e também entre as instituições. Em 1º de agosto último, entrou em vigor no país a Resolução n. 225, de 31.5.2016, do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece os procedimentos para implantação da justiça restaurativa no poder judiciário brasileiro, em respeito às recomendações da Organização das Nações Unidas. Já existem experiências em andamento, inclusive aqui em Belém.
Preocupa-me que uma série tão bem construída siga pelo batido e decepcionante caminho da vingança. Elisa quer se vingar de Vicente; Mayara quer se vingar de Kelly; Rose e Débora querem se vingar do estuprador; Maurício quer se vingar de Antenor. Em todas as tramas, o apelo cafona está presente e é provável que se consume, mas a autora mostraria grandeza e sairia da vala comum ficcional se aproveitasse ao menos o enredo da segunda-feira para uma solução diferente, valendo-se do que há de revolucionário na justiça restaurativa: a substituição do paradigma retributivo (a vingança, a necessidade de retribuir o mal do crime com o mal da pena), único que funciona na cabeça da esmagadora maioria das pessoas, por outro que aposte na reconstrução das vidas, em benefício das próprias vítimas.
Seria no mínimo inspirador ver uma abordagem dessas no horário nobre da emissora de maior audiência do país.
Post scriptum.
É uma bobagem, mas preciso dizer: Vicente sai da prisão após sete anos, sem dinheiro, com uma família para conhecer, psicologicamente perturbado e, dois dias depois, já está na faculdade, para iniciar um curso de Direito? Entre uma tentativa de suicídio e outra, ele estudou para o vestibular, fez prova, matrícula, etc.?
Uma coisa que não se salva nesta minissérie e o elemento tempo.
"Não creio em santos e poetas
Perguntei tanto e ninguém nunca respondeu"
Fontes
- http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82505-resolucao-sobre-justica-restaurativa-e-publicada-no-diario-de-justica
- http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf
Antecedentes criminais
- Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
- Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
- Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
- Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html
- Capítulo 4: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/eu-que-te-amo-tanto-ponto-de-te-matar.html
terça-feira, 30 de agosto de 2016
Eu, que te amo tanto a ponto de te matar
Um dia, na UTI, a mulher cansada, corpo e alma alquebrados pelo câncer, disse ao primogênito que já era tempo de tudo aquilo acabar. Olhou em volta, os aparelhos que a monitoravam, em um pedido mudo. Após um instante de perplexidade, o rapaz respondeu que não lhe competia fazer nada (e nem poderia, porque ela tinha condições de vida autônoma; não dependia dos aparelhos). Uns três ou quatro dias depois, ela saiu da UTI e, em mais dois dias, recebeu alta e voltou para casa. Ainda ficou um pouco mais de dois meses conosco, antes de partir lenta e tão calmamente quanto possível.
Nenhum de nós jamais pensou que passaria por tal situação, mas a verdade é que coisas ruins podem acontecer a qualquer um, inclusive a mim e a você. E pode até ser que alguém que você ama mais do que tudo lhe peça ajuda para morrer. O que será decidido envolve um dos mais crueis dilemas morais que uma pessoa pode enfrentar. Mas esse dilema também envolve um aspecto jurídico grave e nos enseja uma alta indagação: quem mata por amor, a pedido ou ao menos com o consentimento do outro, é homicida?
A eutanásia é um desafio porque extrapola em um nível crítico o clichê, entranhado no senso comum mais rasteiro, de que "criminosos" são sempre pessoas más e inclementes. Embora estejamos falando de um dos atos mais reprováveis, segundo a consciência mais generalizável, matar, às vezes, pode ter um significado completamente diferente. Isso é tão profundo que a arte, volta e meia, explora o tema. Em 2013, o mundo se comoveu com o filme de Michael Haneke, não por acaso intitulado Amor. E agora, a quarta trama de Justiça nos reapresenta esse desafio.
Maurício (Cauã Reymond) e Beatriz (Marjorie Estiano) se amam profundamente. Os roteiristas, tendenciosos, criaram um romance idílico, intenso, tão fofo que coloca um sorriso no rosto do espectador. Tudo para aumentar o impacto dos desdobramentos. A bailarina Beatriz é atropelada e tem a coluna vertebral destruída, resultando em tetraplegia.
Abortada em tudo quanto compreendia de si mesma, pede ao marido que a mate. E ele, após uma breve resistência, atende. O choro convulso do rapaz, deitado ao lado de sua amada em um leito de hospital, é perturbador. Parabéns aos atores.
O desejo de morrer, em pessoas que enfrentam situações como a da personagem, é uma reação frequente. Também é natural que ela se manifeste desde os primeiros momentos, quando a pessoa está sob o vívido impacto da novidade. Mas acredito que ele transparece como sincero quando o tempo comprova que se trata de uma vontade refletida, não de uma emoção transbordada. Difícil avaliar isso. Contudo, fiquei incomodado com o fato de Maurício aceitar o apelo da esposa em um tempo tão exíguo, apenas um dia. A assimilação da perda ― e particularmente da morte de quem ainda está vivo ― é tormentosa e gradual. Como o seriado tinha um compromisso de prender todos os protagonistas no mesmo dia, foi necessário abreviar o tempo de Maurício.
O marido abnegado consegue uma droga de efeito letal, porém indolor, e aplica na esposa, com direito a gravação na qual ela assume a inteira responsabilidade pelo fato (medida inócua, segundo a legislação brasileira), despedida e um intenso sofrimento. Maurício foge, mas não resiste à detenção. Nem poderia, já que está devastado. Após a prisão, não sabe explicar como se sente.
Em um tempo recorde (a celeridade processual do seriado está deixando perplexos alguns alunos meus), Maurício é condenado aos habituais sete anos de prisão. Legalmente, seria caso de homicídio privilegiado, por relevante valor moral (matou para libertar a esposa de seu sofrimento). Estou aqui pensando, mas entendo incabível qualquer qualificadora, inclusive o venefício, já que o meio empregado era conhecido e autorizado por Beatriz. A pena aplicada, portanto, está realista. A questão nem é essa, mas o cabimento da ideia de crime.
No Brasil, a vida humana é sacralizada a um ponto em que não se admite, no discurso predominante, qualquer flexibilização. Vida e morte seriam decisões exclusivas de Deus, assevera o dito discurso reinante. A legislação é carola, beata, porque o povo se finge de religioso e piedoso. Na verdade, bem sabemos que o mesmo cidadão de bem que grita em defesa da vida considera não apenas aceitáveis como desejáveis as execuções sumárias, os linchamentos e outras formas de massacre. O ponto do qual não conseguimos nos afastar é que, no fundo, não se trata de defender a vida, mas de decidir quais vidas merecem respeito e quais são matáveis (falei disso na resenha ao capítulo 1).
O grande mérito de produtos dramatúrgicos como Justiça é nos permitir um olhar sobre o elemento humano que há por trás de todo fato legalmente criminoso. Vemos que tudo possui uma motivação mais profunda, um desdobramento somente acessível a quem conhecesse de perto os personagens, além das peculiaridades próprias do momento.
Ainda acredito, correndo todo o risco de me decepcionar mais uma vez, que se as pessoas pudessem assistir aos cenários "criminosos" da vida real como fazemos com as tramas ficcionais, haveria mais ponderação nos julgamentos maniqueístas, talvez não por empatia, mas quem sabe pelo choque de percebermos que, às vezes, somos movidos por emoções muito semelhantes. Ou seja, o "criminoso" não é, no final das contas, tão diferente de nós mesmos. É a nossa convicção de que ele é um monstro (este vocábulo não é drama; ele também comparece na literatura criminológica), uma não-pessoa ― acima de tudo, a nossa convicção de que somos irremediavelmente distintos e nós, obviamente superiores ― que nos permite odiá-lo e nos leva a lhe desejar as pragas infernais.
Por outras palavras, nossa sanha punitivista talvez possa ser explicada como um trágico mecanismo de defesa, que nos leva a demonizar no outro aquilo que pressentimos, porém não temos coragem de enxergar em nós mesmos. Não é o caso de Maurício. Ele é branco, bonito, honesto, plenamente inserido no sistema produtivo. Nós queremos ser o que ele é, então conseguimos sentir empatia. Para a boa gente brasileira, ele não é um criminoso. E terá um largo apoio em seu projeto de vingança contra Antenor (Antônio Calloni), este sim o vagabundo. Até político é!
Esta quarta e última trama tem uma profundidade filosófica especial, porque o "crime" está dissociado das noções que usualmente o cercam ― ódio, dano, prejuízo, maldade. Nele está o signo do amor, da abnegação, do mortificar-se pelo bem alheio, exatamente o que aprendemos como virtudes. Então os códigos não conversam entre si e nossa cabeça entra em curto-circuito. Talvez seja disso que precisamos para, enfim, enfrentar a grande indagação: o que é um crime, afinal?
Antecedentes criminais
Nenhum de nós jamais pensou que passaria por tal situação, mas a verdade é que coisas ruins podem acontecer a qualquer um, inclusive a mim e a você. E pode até ser que alguém que você ama mais do que tudo lhe peça ajuda para morrer. O que será decidido envolve um dos mais crueis dilemas morais que uma pessoa pode enfrentar. Mas esse dilema também envolve um aspecto jurídico grave e nos enseja uma alta indagação: quem mata por amor, a pedido ou ao menos com o consentimento do outro, é homicida?
A eutanásia é um desafio porque extrapola em um nível crítico o clichê, entranhado no senso comum mais rasteiro, de que "criminosos" são sempre pessoas más e inclementes. Embora estejamos falando de um dos atos mais reprováveis, segundo a consciência mais generalizável, matar, às vezes, pode ter um significado completamente diferente. Isso é tão profundo que a arte, volta e meia, explora o tema. Em 2013, o mundo se comoveu com o filme de Michael Haneke, não por acaso intitulado Amor. E agora, a quarta trama de Justiça nos reapresenta esse desafio.
Maurício (Cauã Reymond) e Beatriz (Marjorie Estiano) se amam profundamente. Os roteiristas, tendenciosos, criaram um romance idílico, intenso, tão fofo que coloca um sorriso no rosto do espectador. Tudo para aumentar o impacto dos desdobramentos. A bailarina Beatriz é atropelada e tem a coluna vertebral destruída, resultando em tetraplegia.
Abortada em tudo quanto compreendia de si mesma, pede ao marido que a mate. E ele, após uma breve resistência, atende. O choro convulso do rapaz, deitado ao lado de sua amada em um leito de hospital, é perturbador. Parabéns aos atores.
O desejo de morrer, em pessoas que enfrentam situações como a da personagem, é uma reação frequente. Também é natural que ela se manifeste desde os primeiros momentos, quando a pessoa está sob o vívido impacto da novidade. Mas acredito que ele transparece como sincero quando o tempo comprova que se trata de uma vontade refletida, não de uma emoção transbordada. Difícil avaliar isso. Contudo, fiquei incomodado com o fato de Maurício aceitar o apelo da esposa em um tempo tão exíguo, apenas um dia. A assimilação da perda ― e particularmente da morte de quem ainda está vivo ― é tormentosa e gradual. Como o seriado tinha um compromisso de prender todos os protagonistas no mesmo dia, foi necessário abreviar o tempo de Maurício.
O marido abnegado consegue uma droga de efeito letal, porém indolor, e aplica na esposa, com direito a gravação na qual ela assume a inteira responsabilidade pelo fato (medida inócua, segundo a legislação brasileira), despedida e um intenso sofrimento. Maurício foge, mas não resiste à detenção. Nem poderia, já que está devastado. Após a prisão, não sabe explicar como se sente.
Em um tempo recorde (a celeridade processual do seriado está deixando perplexos alguns alunos meus), Maurício é condenado aos habituais sete anos de prisão. Legalmente, seria caso de homicídio privilegiado, por relevante valor moral (matou para libertar a esposa de seu sofrimento). Estou aqui pensando, mas entendo incabível qualquer qualificadora, inclusive o venefício, já que o meio empregado era conhecido e autorizado por Beatriz. A pena aplicada, portanto, está realista. A questão nem é essa, mas o cabimento da ideia de crime.
No Brasil, a vida humana é sacralizada a um ponto em que não se admite, no discurso predominante, qualquer flexibilização. Vida e morte seriam decisões exclusivas de Deus, assevera o dito discurso reinante. A legislação é carola, beata, porque o povo se finge de religioso e piedoso. Na verdade, bem sabemos que o mesmo cidadão de bem que grita em defesa da vida considera não apenas aceitáveis como desejáveis as execuções sumárias, os linchamentos e outras formas de massacre. O ponto do qual não conseguimos nos afastar é que, no fundo, não se trata de defender a vida, mas de decidir quais vidas merecem respeito e quais são matáveis (falei disso na resenha ao capítulo 1).
O grande mérito de produtos dramatúrgicos como Justiça é nos permitir um olhar sobre o elemento humano que há por trás de todo fato legalmente criminoso. Vemos que tudo possui uma motivação mais profunda, um desdobramento somente acessível a quem conhecesse de perto os personagens, além das peculiaridades próprias do momento.
Ainda acredito, correndo todo o risco de me decepcionar mais uma vez, que se as pessoas pudessem assistir aos cenários "criminosos" da vida real como fazemos com as tramas ficcionais, haveria mais ponderação nos julgamentos maniqueístas, talvez não por empatia, mas quem sabe pelo choque de percebermos que, às vezes, somos movidos por emoções muito semelhantes. Ou seja, o "criminoso" não é, no final das contas, tão diferente de nós mesmos. É a nossa convicção de que ele é um monstro (este vocábulo não é drama; ele também comparece na literatura criminológica), uma não-pessoa ― acima de tudo, a nossa convicção de que somos irremediavelmente distintos e nós, obviamente superiores ― que nos permite odiá-lo e nos leva a lhe desejar as pragas infernais.
Por outras palavras, nossa sanha punitivista talvez possa ser explicada como um trágico mecanismo de defesa, que nos leva a demonizar no outro aquilo que pressentimos, porém não temos coragem de enxergar em nós mesmos. Não é o caso de Maurício. Ele é branco, bonito, honesto, plenamente inserido no sistema produtivo. Nós queremos ser o que ele é, então conseguimos sentir empatia. Para a boa gente brasileira, ele não é um criminoso. E terá um largo apoio em seu projeto de vingança contra Antenor (Antônio Calloni), este sim o vagabundo. Até político é!
Esta quarta e última trama tem uma profundidade filosófica especial, porque o "crime" está dissociado das noções que usualmente o cercam ― ódio, dano, prejuízo, maldade. Nele está o signo do amor, da abnegação, do mortificar-se pelo bem alheio, exatamente o que aprendemos como virtudes. Então os códigos não conversam entre si e nossa cabeça entra em curto-circuito. Talvez seja disso que precisamos para, enfim, enfrentar a grande indagação: o que é um crime, afinal?
Antecedentes criminais
- Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
- Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
- Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
- Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html
segunda-feira, 29 de agosto de 2016
MESMO QUE O CHÃO TREMA
Um registro para a História, nestes dias sombrios.
"Excelentíssimo senhor presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski;
Excelentíssimo senhor presidente do Senado Federal, Renan Calheiros;
Excelentíssimas senhoras senadoras e excelentíssimos senhores senadores;
Cidadãs e cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1º de janeiro de 2015, assumi meu segundo mandato à presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a presidência da república, respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de Direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment, me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos, não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita luta.
Aos quase 70 anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a presidência da república, tenho honrado o compromisso com o meu país, com a democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio.
E por isso, como no passado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não têm caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu país, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da presidência da república, que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de vossas excelências e dizer, com a serenidade dos que nada têm a esconder, que não cometi nenhum crime de responsabilidade. Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas, resultando em golpes de estado.
O presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada "República do Galeão", que o levou ao suicídio.
O presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu esta cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo, mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso país. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política, nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas neste processo foi reconhecido como suspeito pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.
Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou.
Excelentíssimo senhor presidente do Senado Federal, Renan Calheiros;
Excelentíssimas senhoras senadoras e excelentíssimos senhores senadores;
Cidadãs e cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1º de janeiro de 2015, assumi meu segundo mandato à presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a presidência da república, respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de Direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment, me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos, não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita luta.
Aos quase 70 anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a presidência da república, tenho honrado o compromisso com o meu país, com a democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio.
E por isso, como no passado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não têm caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu país, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da presidência da república, que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de vossas excelências e dizer, com a serenidade dos que nada têm a esconder, que não cometi nenhum crime de responsabilidade. Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas, resultando em golpes de estado.
O presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada "República do Galeão", que o levou ao suicídio.
O presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu esta cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo, mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso país. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política, nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas neste processo foi reconhecido como suspeito pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.
Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou.
Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras "nenhum direito a menos".
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso país no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a autoestima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do país de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do país, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo "conjunto da obra". Quem afasta o presidente pelo "conjunto da obra" é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor presidente Ricardo Lewandowski, senhoras e senhores senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o país. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do "quanto pior melhor", na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os senhoras e as senhoras senadores sabem que o funcionamento dessas comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro.
Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da "sangria" de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do presidente Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma "chantagem explícita" do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação. Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano – foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história.
Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de "devido processo legal".
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher presidenta do Brasil.
Chego à última etapa deste processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso país. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente. Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada".
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras "nenhum direito a menos".
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso país no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a autoestima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do país de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do país, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo "conjunto da obra". Quem afasta o presidente pelo "conjunto da obra" é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor presidente Ricardo Lewandowski, senhoras e senhores senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o país. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do "quanto pior melhor", na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os senhoras e as senhoras senadores sabem que o funcionamento dessas comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro.
Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da "sangria" de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do presidente Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma "chantagem explícita" do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação. Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano – foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história.
Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de "devido processo legal".
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher presidenta do Brasil.
Chego à última etapa deste processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso país. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente. Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada".
29.8.2016
dia do falso julgamento no mercado das pulgas
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