Certa feita, fui apresentado a uma pessoa que integra a carreira do Ministério Público. Quando mencionaram que sou professor de direito penal, ela me fitou e perguntou se eu era garantista. Ativei automaticamente o modo alerta e, confesso, demorei-me um pouco, pensando em uma resposta. Afinal, eu precisava entender o significado daquela indagação. Quando me apresentam a alguém, não saio perguntando se a pessoa tem religião ou vida sexual ativa, se come jiló ou se faz xixi no banho. Eu digo "olá".
Minha inquietude tinha uma explicação. Assim como a afirmação de que não existe mais diferença entre esquerda e direita somente parte, segundo me parece, de pessoas de direita, os tais "garantistas" (quem são eles? o que comem? como vivem?) não costumam identificar-se como tal. Eu diria, no resíduo da minha inocência, que provavelmente não se percebem como tal. Se o espécime atua no sistema de justiça criminal, não tem essa de deixo de denunciar o indiciado porque sou garantista ou expeça-se o alvará de soltura porque assim o reclama o garantismo. A criatura apenas cumpre a Constituição da República, aquela que está em vigor desde 5 de outubro de 1988, há 9.993 dias.
Resulta daí que, quando alguém alude ao termo "garantismo" ou a qualquer uma de suas variantes, já me imagino entrando em um julgamento ― aliás, em um julgamento antigarantista, no qual chego condenado e anatematizado pelo juiz, pelo público, pela crítica e pela mídia. Sem direito a esperneio.
Mesmo já se tendo passado todo o tempo acima aludido, a constituição brasileira segue sendo uma ilustre desconhecida, inclusive por aqueles que têm formação jurídica e, até mesmo, por aqueles cujo mister funcional é aplicá-la. Existem direitos e garantias fundamentais, princípios e normas, jurisprudência, interpretações notórias, mas nada disso parece suficiente, a desvelar que o problema é menos de compreensão do que de aceitação. Existe uma recusa emocional (estou desviando do termo "moral") quanto a compreender a lógica sobre a qual foram assentadas as bases de nossa constituição, em um período de redemocratização do país.
Então, se algo soa garantista, boa coisa não pode sair daí. No entanto, a questão é ainda mais profunda, porque ― assim como aconteceu no episódio pessoal que abriu esta elucubração ― precisamos entender que sentido foi dado ao termo pelo interlocutor. De qual garantismo ele fala ou, mais provavelmente, acha que fala? Da teoria de Luigi Ferrajoli, que popularizou o termo entre nós? Pouco provável, porque exigiria algum conhecimento específico. Em minhas aulas, por exemplo, assumo que o termo garantismo deve ser entendido como expressão do objetivo de, respeitando os valores positivados na constituição de 1988, resguardar o indivíduo dos excessos punitivos do Estado. Simples e genérico assim, para criar um código comunicativo mínimo.
E de qual indivíduo estamos falando? Do bandido, vagabundo, malaco? Não: de qualquer indivíduo, inclusive você. (Imagine uma música de fundo assustadora, para criar o clima.)
Em uma palestra recente, minha querida Ana Cláudia Pinho (uma promotora de justiça garantista, algo provavelmente tão grave quanto a cantora Beyoncé ser negra) contou o caso de uma integrante do Parquet de outro Estado, que se vangloriava de sua rigidez contra os criminosos. Daí um dia o seu filho foi preso por envolvimento com o tráfico de drogas. E foi para "a cadeia", uma penitenciária comum. Bandeira pouca é bobagem e houve uma rebelião. Desesperada, a promotora se armou com sua identidade funcional e foi ao presídio ver o que podia fazer. À entrada, contudo, estava o Leviatã, o Estado personificado em um policial militar. Talvez em um dia de graça para ele, o homem olhou para aquela mulher que, normalmente, poderia gritar mais forte e enquadrá-lo por desacato (e não o contrário) e sentenciou: "aqui, a senhora é mãe de preso!" E acabou-se a autoridade. Mãe de preso. Uma condição muito mais indigna do que peladona de aeroporto.
Já cansado e cada dia mais irritadiço (minha mãe dizia que nasci velho, no mau sentido), hoje evito altercações públicas, embora tenha meus momentos de fraqueza. Contudo, faço da minha atividade docente a trincheira onde conclamo as pessoas a conhecer um pouco de cada lado, para tomar decisões esclarecidas. E se não posso oferecer soluções, ao menos mostro que os discursos contêm um pouco de ingenuidade, um pouco de erro, um pouco de má fé, mas que podemos mudar isso. Se há algo com que todos concordamos é que as técnicas atuais não estão funcionando. Precisamos descobrir o motivo ― embora, cada um por seu turno, já tenha uma explicação. E assim seguimos em nossa torre de Babel, na qual, quando surge algum entendimento, geralmente é contra os tais garantistas.
Por isso, como outros antes de mim, escuso-me de me declarar garantista. Nos termos do código penal, minha mãe era uma mulher honesta.