A diarista que nos ajuda aqui em casa tem andado preocupada. Sua nora, moça muito jovem e também sem grandes níveis de instrução, estava em fase final de gestação. Na semana passada, começou a se sentir mal, com alguns sinais sugestivos de que a criança talvez estivesse pedindo para nascer, como diz a gente simples que conheci ao longo da vida. Mas como já havia uma cesariana marcada (claro!) para a última segunda-feira, dia 9, a médica que a atendeu em hospital público seguiu o protocolo clandestino (atendimento de pobre regra n. 1) e decidiu que o quadro era normal, provavelmente consequência de o bebê estar se reposicionando no útero. Disse isso no primeiro atendimento e, de novo, à noite, quando a gestante retornou após uma piora.
Ao ser informado, recomendei que a família tentasse um contato direto com o médico que fez o pré-natal e pedisse providências. Até onde sei, não conseguiram falar com ele (atendimento de pobre regra n. 2). A moça passou todo o final de semana se sentindo mal e, na manhã de segunda-feira, como agendado, foi ao hospital para o parto. Lá, foi surpreendida com a notícia de que seria internada, mas o parto somente seria feito à tarde. Na verdade, o médico tinha 20 partos para fazer e iniciaria o que chamo de linha de produção às 14 horas (atendimento de pobre regra n. 3). Ela deveria esperar. E esperou.
Em algum momento da tarde de segunda, o parto foi feito. A criança nasceu cianótica e pouco responsiva. Mamou uma única vez e passou toda a noite quieta, emitindo um gemido baixo. Com a troca de plantão, apareceu por lá um auxiliar de enfermagem que prestou atenção ao bebê e constatou que ele não estava bem (atendimento de pobre regra n. 4, também conhecida como "cláusula da sorte"). Acionou a enfermeira e o bebê foi levado para a UTI, ou seja, o quadro era grave! E aqui identificamos mais um lance de sorte: havia UTI neonatal, disponível.
Eis que, então, a família descobre que o parto não fora realizado pelo médico que acompanhava a gestação, mas pelo irmão dele. Juro que, nessa hora, perguntei: "Mas o irmão dele pelo menos era médico?" Parece que era. E aí temos atendimento de pobre regra n. 4: ser atendido pelo profissional que conhece o seu caso e em quem você talvez confie é muita pretensão sua.
O médico que deveria estar à frente de tudo se interessou pelo caso, enfim, e prestou as primeiras informações à família. Disse que a criança passou do momento certo de nascer. Isso eu, como leigo porém não ignorante, havia considerado na sexta-feira passada, mas a médica que atendeu a paciente por duas vezes, não. O grave comprometimento pulmonar do bebê era consequência da aspiração de líquido amniótico (esta eu também acertaria). Agora está marcada uma reunião com a equipe médica, para discutir o caso. A família aguarda para saber se a criança ficará bem, se terá sequelas, etc. O pai já avisou: se acontecer algo, vai processar. De minha parte, afirmo que "algo" já aconteceu.
E assim passou mais uma semana na vida do pobre: enfrentando dramas perfeitamente evitáveis e não sabendo como será o futuro.
quinta-feira, 12 de maio de 2016
quinta-feira, 5 de maio de 2016
Mais coincidência que ironia
A imprensa noticiou (com a sua habitual falta de precisão e inclinação ao escândalo) e as redes sociais começaram a repercutir (com seu permanente menosprezo por contextos), como se fosse notícia do Sensacionalista: Suzane von Richthofen saiu da prisão por causa do dia das mães. Alguns sítios, ainda mais cínicos, falam que ela saiu para "comemorar o dia das mães". Como Suzane está condenada pelo homicídio do pai e da mãe, está feito o mote para a ironia.
Até compreendo a estranheza que a situação provoca, mas se olharmos pelo aspecto estritamente legal, veremos que não há motivo para o barulho.
Suzane está condenada a 39 anos de reclusão e se encontra presa desde 2002. Em outubro do ano passado, obteve progressão para o regime semiaberto e, com isso, passou a uma situação disciplinar mais flexível, até porque sempre foi considerada presa de ótimo comportamento carcerário. Entre os benefícios de que passou a gozar figura a saída temporária da prisão, sem vigilância direta, admissível todavia o uso de monitoramento eletrônico.
Nos termos da Lei de Execução Penal, a saída temporária se destina a favorecer, ao condenado, "visita à família", "frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução" e "participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social" (art. 122). Trata-se de importante medida relacionada à lógica de castigos e recompensas que instrui a execução penal, como forma de induzir o apenado a manter-se dócil ao programa punitivo estatal, vendido como programa ressocializador.
O art. 123 da LEP condiciona o deferimento do benefício, pelo juiz da execução, à oitiva da administração penitenciária e do Ministério Público, ao bom comportamento carcerário, ao cumprimento de uma fração da pena (um sexto para primários e um quarto para os reincidentes) e à "compatibilidade do benefício com os objetivos da pena".
Além disso, a autorização "será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano" e, salvo hipótese de frequência a estudos, o gozo de cada saída exige um intervalo mínimo de 45 dias (art. 124, caput e § 3º). O juiz também deve estabelecer as condições a serem observadas pelo beneficiário no período, além de fixar a data para reapresentação espontânea.
É da tradição brasileira conceder a saída temporária em datas comemorativas, pois isso permitiria que o apenado estivesse com a família em momentos especiais, de maior congraçamento familiar ou comunitário. É o caso do dia das mães. Portanto, Suzane não saiu da prisão para comemorar o dia das mães, e sim porque o juízo da execução facultou a ela o gozo do benefício nesse momento. Se eu estivesse preso, agarraria qualquer chance de liberdade, mesmo que o juiz me liberasse para ver a final do campeonato de futebol. Talvez eu até visse a porcaria do jogo, de tão satisfeito.
Desde que progrediu para o regime semiaberto, Suzane já gozou da saída temporária uma vez, na páscoa. Saiu e voltou um dia antes do prazo. A imprensa noticiou o assunto, mas sem piadinhas. Até podia fazê-lo, já que páscoa representa renascimento. Agora, faz estardalhaço. Aguardem a repetição da bobagem no dia dos pais. Mas, no final das contas, a questão é bem menos instigante quando olhada pelas lentes da legalidade estrita. Saiu no dia das mães, mas podia ser em qualquer outro momento.
O que há na notícia para nos impressionar? Pois é: nada.
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