Durante a abertura do Festival de Cannes, Julie Andrews, Dick Van Dyke e outros atores do filme Mary Poppins (Saving Mr. Banks) fizeram um protesto contra congressistas, a quem acusam de dar um golpe no presidente eleito, Lyndon Johnson. O diretor Robert Stevenson também participou da manifestação. Como resultado, o filme está sendo boicotado e amarga prejuízo considerável na bilheteria.
O longa é pura doutrinação comunista, feito para ridicularizar os valores supremos da tradicional família americana, representados pelo pai (que abdica do próprio bem-estar para trabalhar sem descanso, garantindo assim um padrão de vida elevado para seus familiares). Contra ele, estão a esposa que, em vez de criar os filhos, papel de toda mulher, se envolve com o movimento sufragista; e dois filhos que, embora perfeitamente brancos, odeiam a disciplina e querem que o pai abandone suas responsabilidades para viver entre folguedos inúteis. É quando chega Poppins, uma nova babá, estrangeira, vinda não se sabe de onde (alegoria para as doutrinas do bloco soviético), que usando música e mágica (recursos destinados a causar deslumbramento com as ideias marxistas), e auxiliada pelo vagabundo Bert (apologia do anarquismo), usa o amor do pai por seus filhos para corrompê-lo.
O filme achincalha o sistema bancário americano, responsável pelo desenvolvimento do país, ao mostrá-lo como uma confraria de velhos caquéticos e impiedosos que, obcecados por dinheiro, não hesitam em tomar até as moedinhas das crianças. O povo de bem deste país saberá dar o troco a essas odiosas empreitadas disfarçadas de cultura.
Ontem vi Aquarius, o filme brasileiro mais polêmico dos últimos anos. E polêmico por quê? Porque em 17 de maio passado, o elenco e o diretor do longa, ao passarem pelo tapete vermelho do 69º Festival de Cannes, ergueram cartazes, denunciando à opinião pública estrangeira, o golpe de Estado travestido de legalidade em curso no Brasil. O resto foi feito pela intellingentsia da classe média e da mídia brasileiras, que passaram a demonizar o longa e a torcer pelo seu insucesso, já que se teria tornado uma espécie de símbolo do contragolpe.
Mas Aquarius, enquanto filme, é tão apologético do pensamento de esquerda quanto o musical infantil Mary Poppins. Aliás, muito menos, porque o produto da Disney é caricato, ao passo que a obra de Kleber Mendonça Filho prima pela delicadeza e possui, no máximo, um único diálogo que poderia contrapor ideologias de classe, mas isso em uma cena em que Clara (Sônia Braga) confronta Diego (Humberto Carrão) por todos os prejuízos que está lhe causando e ouve dele ironias, ameaças e uma alusão ao fato de ser uma "pessoa de pele um pouco mais escura". Tudo o que ela diz é que ele estudou no exterior mas não aprendeu a ter caráter; que o único caráter que ele conhece é o dinheiro.
Se separarmos o filme em si da conduta dos envolvidos em sua produção, o que resta é um filme adorável, que alia um diretor elogiado desde o seu longa de estreia (O som ao redor, 2013) e a maior diva do cinema brasileiro, Sônia Braga, que merece cada elogio que lhe foi feito por sua atuação neste projeto. Absolutamente espontânea e segura em cena, comprovou que talento se vê nas minúcias. Em duas cenas, particularmente, em vez de exageros gestuais e do apelo ao descritivismo, ela desvela sua emoção em mudanças no semblante e em olhos que ficam levemente úmidos, sendo que nós, espectadores, sequer sabemos o motivo, só podendo intuir que a personagem está recordando eventos de seu passado. Lindo.
Clara rasga, sem ler, a proposta milionária da construtora. |
Disfarçado de bom moço, o poder ataca diretamente e, se não funcionar, há um plano criminoso em andamento no andar mais alto. |
A questão é que Aquarius se insere nesse nicho com muita propriedade. Em que pese o cineasta ser um apoiador pessoal de Dilma Rousseff, precisamos por em contexto que a especulação imobiliária na orla de Recife é um dos principais problemas de infraestrutura daquela cidade, sendo perfeitamente compreensível que Mendonça quisesse tratar disso, qualquer que fosse a conjuntura política no país. O filme não precisaria sofrer nenhuma mudança. O que conta, portanto, é o roteiro bem construído; são os diálogos brilhantes, até mesmo nas cenas de amenidades (com destaque para a estória da mulher que foi a uma livraria comprar "três metros de livro" por recomendação de seu arquiteto!); a inserção da música como um elemento essencial da narrativa, recurso usado com sucesso em outros filmes bem recebidos pela crítica; e, inclusive, a defesa de valores importantes à sociedade, como a família. Aquarius é um filme de casamentos felizes que só terminam pela viuvez, gerando filhos e sobrinhos amados e cuidados com carinho. Veja como termina a cena de discussão entre Clara e sua filha.
A estúpida pretensão de boicote não deu muito certo. |
Não fossem os pronunciamentos do diretor e dos atores, Aquarius estaria sendo visto de acordo com os méritos que realmente possui, o que abrange ser um forte candidato a representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro, inclusive pela presença de Sônia Braga, muito benquista por aquelas bandas. Essa indicação é a nova batalha politicaloide do longa (cf. http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2016/09/aquarius-concorrera-com-15-filmes-para-representar-o-brasil-no-oscar.html). O filme indicado será conhecido amanhã.
Pessoalmente, não tenho preferência, primeiro porque considero deslumbramento com o Oscar coisa de gente colonizada; mas também porque, dos filmes indicados, Aquarius foi o único que vi, por mais que respeite e valorize o cinema nacional. Infelizmente, contudo, nem todos os títulos chegam às salas de cinema e os que chegam vêm com horários reduzidos, porque os exibidores querem mesmo lucrar com os títulos comercialoides que, no caso brasileiro, normalmente são as comédias, a que não assisto.
Em suma, se você gosta de uma bela estória, muito bem contada, veja Aquarius. E escute Maria Bethania, para mostrar que é intenso.