segunda-feira, 1 de maio de 2017

Nunca fale com estranhos

As pessoas mais velhas que se importavam conosco nos ensinaram essa lição clássica, quando éramos crianças. O tempo passou, nós crescemos e, por razões diversas, nos afastamos daquela sabedoria singela e incrivelmente verdadeira. Piora pensar que, na vida adulta, o conceito de estranhos assume novas conotações. Fiquemos com a noção de hostis alienigena: estranho é todo aquele que não nos permite segurança cognitiva acerca de suas ações. Nós não o conhecemos bem, não entendemos sua língua e não podemos valorar suas intenções.

Às vezes ocorre de sermos selecionados por agentes públicos como candidatos a autores de ilícitos. Pode ser uma infração de trânsito, uma sonegação tributária (ou um simples esquecimento, como aquele IPVA atrasado), um débito trabalhista e várias outras coisas. Naturalmente, também pode ser algo muito mais sério: sermos selecionados pelas agências punitivas como candidatos a autores de algum crime.

Quando somos demandados pelo poder público, uma relação brutalmente assimétrica se instaura. De um lado, temos burocratas1 agindo de maneira profissionalizada, com o suporte de uma infraestrutura mais ou menos organizada, as costas largas propiciadas pelo fato de estarem no exercício de uma função pública, a suposta legitimação conferida pelas leis vigentes, a presunção de legitimidade dos atos administrativos e a absoluta predisposição das demais agências para acreditar que o colega está falando a verdade e você, obviamente, mentindo. Não é um engano, não é uma tese alternativa, não é um ato de consciência: você mente porque é um mau cidadão e deve ser punido por isso. A atuação do poder público, nesse cenário, não se destina a apurar os fatos, mas a encontrar elementos mínimos que ratifiquem a certeza que já existe, para justificar a punição que será aplicada. E nem precisa de muita comprovação, não. É só para constar.

Do outro lado da relação brutalmente assimétrica está você, cidadão comum, frequentemente tomado de surpresa, frequentemente sozinho ou acompanhado de pessoas tão vulneráveis quanto você, carente de conhecimento especializado e de maiores recursos, inclusive financeiros, instado a um dever legal de colaboração com agentes hostis e quase sempre sob algum nível de ameaça2. Nesse momento, mecanismos psicológicos operam. Você quer se explicar. Quer provar a sua inocência. Fica ansioso porque não acreditam em suas explicações. Esse mal estar será maior em duas situações: se você realmente tiver razão e se o fracasso em provar sua inocência implicar punição grave.

Isto nos traz uma questão dificílima: como lidar com agentes públicos, então? Como agir se eles, por trás de suas portas fechadas e divisórias de vidro, já recebem o cidadão com uma placa transcrevendo o art. 331 do Código Penal, que tipifica o desacato, e sofrem de uma inacreditável hipersensibilidade moral, que lhes faz explodir em melindres pelos menores motivos, tais como pedir uma identificação ou comprovação, fazer um questionamento técnico ou debater uma alegação?


Não creio que haja uma resposta simples para essa questão, então o que me vem à mente é isto: defenda-se. Proteja-se. Não facilite a atuação do outro. Obrigue-o a explicar suas ações e a rever, o tempo inteiro, os limites de legalidade daquilo que faz. Às vezes, agentes públicos oportunistas desistem de prosseguir em abordagens ilegais quando percebem que o cidadão não é de todo vulnerável, que conhece meandros jurídicos e que saberia como buscar reparação (embora a existência de uma rede de relações seja um meio mais eficiente, porque, infelizmente, as pessoas não fazem o que é certo porque é certo, e sim por medo de punição). Lembre-se: maus agentes públicos farão de tudo para prejudicá-lo, mesmo sem motivo, então não se ressinta de entrar no jogo. Trata-se de legítima defesa.

Há algum tempo, um advogado me contou que, durante audiência de interrogatório, orientou seu constituinte a não responder às perguntas do juiz e do Ministério Público. Ele deveria responder apenas ao que lhe fosse perguntado pelo próprio defensor, pois assim emergiriam apenas as informações de interesse da defesa, na ordem cronológica e com os detalhamentos reputados úteis pela própria defesa. Nada mais evidente que, se a Constituição de 1988 assegura ao réu o direito de calar por completo, com muito maior razão ele tem o direito de responder apenas o que lhe seja conveniente. E seu advogado está ali para decidir isso.

Ninguém se surpreenderá se eu disse que o juiz se enfureceu com a estratégia. Junto com o promotor de justiça, igualmente vilipendiado em sua honestidade indiscutível, transformaram o que deveria ser uma questão simplória de atuação do advogado em um atentado terrorista moral, com ameaças de comunicação à OAB (oi?) e, claro, de retaliações contra o réu que, afinal, estava dificultando a produção da prova! Sugestão de decretar uma prisão preventiva baseada no imperativo de resguardar a aplicação da lei penal. É o caso de perguntar: qual prova? Interrogatório é ato de defesa pessoal do réu! Assim agindo, além do abuso de autoridade manifesto, juiz e promotor desvelaram profunda ignorância jurídica, no mínimo. Quando se trata de defender essa concepção superlativa de honra, poucos se pejam de passar recibo de mediocridade.

O episódio acima me veio à memória ao ler matéria jornalística (clique aqui) na qual um professor da Virginia's Regent Law School (em Virginia Beach, EUA) defende enfaticamente que você, se abordado por alguma conduta suspeita, não deve jamais falar com a polícia. Jamais. Peça apenas um advogado e não forneça qualquer explicação, por menor que seja. Legalmente, você só é obrigado a se identificar e a dizer o que estava fazendo no momento, do modo mais objetivo possível (esperando um ônibus, voltando para casa, etc.).

Em síntese, você corre o risco de se enganar, de ser interpretado como mentiroso, de ser deturpado em posterior relato do policial, de ser coagido, etc. Isso, combinado a possíveis testemunhas e até mesmo ao azar, pode gerar efeitos imprevisíveis. Lembre-se de que estarão buscando a prova de sua culpa e não a verdade dos fatos. É particularmente importante lembrar que policiais não possuem fé pública, mas as agências punitivas agem naturalmente como se tivessem.


A matéria em apreço me pareceu particularmente oportuna no contexto brasileiro atual, em que aumenta sem trégua a repressão contra o direito de protesto e de manifestação. Pessoas são brutalizadas na rua pelas forças de segurança (ironia majestática), e mesmo assassinadas, pelo simples fato de estarem no meio de uma manifestação. Ou de participar dela, o que a Constituição permite. E as detenções se multiplicam. Nesse momento, vale o que está dito acima: não pense que pode colaborar com quem não pretende colaborar com você. Caso não seja qualificado a defender a si mesmo, ou se por qualquer razão não possa fazê-lo, não entre em uma arena na qual está fadado a perder. 


Exija um advogado e não diga mais nada. O que lhe fizerem depois disso será ilegal. E boa sorte, sobretudo. Porque vamos precisar.


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1 Refiro-me, aqui, ao conceito mais objetivo de burocracia, como sendo o aparelhamento de diversos recursos, inclusive humanos, para fazer funcionar uma agência pública e, com isso, efetivar alguma finalidade de interesse social. Neste momento, não há juízo de valor.

2 Mesmo que a ameaça seja, em princípio, apenas o cumprimento da lei, o que poderia lhe trazer graves prejuízos. No crime de concussão, por exemplo, o agente público coage o particular usando como meio executivo os poderes próprios de seu cargo ou função.