quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O ápice da irracionalidade de Estado

Quando se pensa em filmes com temática de oposição à pena de morte, é possível que o primeiro título que venha à mente seja A vida de David Gale (The life of David Gale, dir. Alan Parker, 2003). Na trama, um professor e ativista contra a pena capital é condenado à dita cuja, pelo estupro e assassinato de uma amiga. Está em questão, como sempre, um possível erro judiciário, mas o roteiro tenta oferecer mais do que isso como solução para o drama.


Mas não podemos esquecer-nos do excelente Os últimos passos de um homem (Dead man walking, dir. Tim Robbins, 1995), baseado no livro da freira Helen Prejean, contando a experiência real que teve como guia espiritual de um condenado à morte. Embora o julgamento se baseasse em provas questionáveis, a verdade por trás da sentença leva a um contundente discurso sobre quão errado é matar, não importam as circunstâncias.


Podemos recordar até o maravilhoso À espera de um milagre (The green mile, dir. Frank Darabont, 1999). Drama com realismo fantástico baseado em romance de Stephen King, a princípio tem mais a ver com poderes sobrenaturais e suas consequências sobre as vidas afetadas. Mas pode ser bem explorado por um criminólogo, já que ali temos um negro considerado ameaçador por seu porte físico e sua condição de forasteiro (estereotipização) e o empenho da comunidade em condená-lo simplesmente porque tudo indica que seja culpado e não há outro suspeito.


A lista acaba de ser honrosamente ampliada com Luta por justiça (Just mercy, dir. Destin Daniel Cretton, 2019). Aqui temos a inusitada história real de Bryan Stevenson, um jovem negro americano que saiu de uma infância de grande pobreza para a oportunidade de cursar Direito em Harvard (ainda gostaria de saber como pagou por seus estudos). Idealista, abdicou da possibilidade de uma carreira como quase todos buscam (de satisfação pessoal e sucesso financeiro) pelo objetivo de prestar assistência legal a condenados à morte no Estado do Alabama, uma região especialmente racista em um país essencialmente racista, como são os Estados Unidos. E como somos nós.


O filme, baseado no livro de Stevenson, se concentra no caso de Walter "Johnny D" McMillian, condenado à morte pelo assassinato de uma jovem branca de 18 anos. Todavia, a intenção não é narrar mais uma história de um Davi negro contra o Golias-Estado, com sua eterna cantilena sobre "justiça" e "respostas para a sociedade". O objetivo é denunciar, mais uma vez, um sistema concebido para punir os negros simplesmente por essa sua condição. Isso explica o promotor de justiça dizer que tem certeza da culpa do réu só de lhe olhar a cara. Isso também explica o forjar de provas, a coação de testemunhas, a fabricação de falsos depoimentos, a perseguição ao advogado e a quem possa auxiliá-lo, bem como a tranquilidade com que o judiciário insiste em ignorar provas ou a falta delas. Um grande mais do mesmo que precisa ser repetido à exaustão, já que vivemos hoje como há 10, 20, 50 anos atrás e, aparentemente, a maioria de nós prefere assim, nem que seja por omissão.


O maior mérito de Luta por justiça (não gosto do título em português, mas reconheço que tem coerência com as falas dos personagens), contudo, não é mostrar a defesa que falha ou a que dá certo; nem mesmo a previsível reação da população branca, e particularmente da polícia, ao trabalho em prol dos condenados mais odiados. Mas dar o devido destaque a um dentre os diversos movimentos em atuação nos Estados Unidos, para garantir uma defesa tecnicamente competente e o efetivo respeito aos direitos constitucionais, penais e processuais (ou, como preferem os estadunidenses, os "direitos civis") de uma população vulnerável e intensamente perseguida. Pessoas que, nas palavras de Johnny D, já nascem condenadas.

Os verdadeiros McMilian e Stevenson

No caso de Stevenson, a organização se chama Equal Justice Iniciative, fundada em 1989 e ainda em atividade. Aliás, foi um bálsamo, para mim, saber que Stevenson, hoje com 60 anos, segue vivo e atuante, à frente de uma grande equipe de advogados, que já conseguiu reverter mais de 140 condenações à morte. Se o número assusta, as legendas finais também informam que, de cada 9 condenações à morte, 1 acaba revertida, provando de modo cabal que o sistema punitivo impõe sofrimento extremo e irremediável com absolutas tranquilidade e irresponsabilidade. Nada mais natural supor que, com um pouco mais de boa vontade, a estarrecedora estatística de "erros" judiciários seria ainda mais alarmante.

O objetivo desta postagem não era fazer uma crítica sobre o filme, tarefa que deixo aos que realmente entendem do riscado, os quais dividirão espaço com os inúmeros donos da verdade que habitam a internet. Mas, ainda sob o efeito da sessão que compartilhei com minha filha, quis trazer à baila a importância de filmes como este, que não precisam ser originais ou inovadores, porque a repetição de certas fórmulas e temáticas é a prova, que nos soca a cara, do quanto insistimos em não melhorar enquanto humanidade, preferindo os discursos vazios com que pretendemos legitimar o olho por olho como expressão de justiça ainda em nossos dias.

[Post scriptum]

Expliquei a minha filha que essas tantas iniciativas estadunidenses de assistência jurídica a condenados surgiram por causa da pena de morte, uma realidade diferente da brasileira. Ela me questionou se temos pena de morte no Brasil. E aí chegamos ao vespeiro. A Constituição de 1988 dispõe que somente condenados por crimes de guerra, em situação de guerra declarada, poderiam sofrer a tal pena capital (que, segundos muitos, nem pode ser considerada como "pena", já que não possui idoneidade ressocializadora nem preventiva, resumindo-se a mera vingança).

Mas entre as intenções legisladas e a realidade cotidiana do extermínio negro nas ruas de cada cidade brasileira medeia um abismo tão horrendo que, ouso dizer, somos bem piores do que a pior máquina de gastar gente (termo de Darcy Ribeiro) do Ocidente, que é o sistema punitivo daquela que se autoproclama "America". Porque sequer nos damos ao trabalho de fingir uma aparência de legalidade. Vamos pela via da execução sumária, mesmo. Notória, legitimada pelo silêncio obsequioso das agências punitivas e aclamada, com todo o entusiasmo, pelos aplausos da gente de bem.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Reportagem sobre violência sexual no Pará

Por considerar importante conhecer essa trágica realidade, compartilho link de matéria jornalística sobre violência sexual em nosso Estado.


Precisamos melhorar. Muito e urgentemente.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Damásio

Acabo de saber que o Prof. Damásio Evangelista de Jesus faleceu nesta quinta-feira (13.2.2020), aos 84 anos. Sem dúvida, uma grande perda para a cultura jurídica de nosso país, que necessita, cada vez mais, de juristas comprometidos com o Estado democrático de Direito, sobretudo no campo penal.

Não há como dissociar o Prof. Damásio de minha formação pessoal. Nos idos da década de 1990, seu nome era o mais conhecido e comentado no direito penal brasileiro. Suas análises eram a expressão da autoridade em nosso campo de estudo. Aliás, ele ― que foi professor por mais de 40 anos ― é legítimo representante dessa auctoritas, entendida como uma espécie de legitimação social de um saber notório. Sua palavra tem credibilidade e merece respeito, ainda quando seja contraditada. E é uma autoridade que advém do trabalho prático e cotidiano ― no caso, seja por sua atuação como advogado, como promotor de justiça ou como docente. Era uma autoridade haurida pela carreira e por uma vida ilibada, um modelo que, nas últimas décadas, foi substituído pela titulação acadêmica e pelo número de publicações e de participações em eventos.

Note que não estou fazendo nenhum juízo de valor sobre qual modelo é melhor, até porque me parece bastante óbvio que eu jamais diminuiria a importância da titulação acadêmica, da pesquisa efetiva e da divulgação de seus resultados. O que estou dizendo, apenas, é que fui graduando em Direito entre os anos de 1992 e 1997. Naquela época, ao menos em minha região (realidade que conheço), o que a universidade ainda valorizava eram os professores selecionados com base em carreiras de sucesso, que lhes legitimavam o exercício da docência por meio de aulas magistrais, nas quais compartilhavam com os alunos o muito conhecimento amealhado ao longo dos anos. O velho padrão do estudante-quadro-branco a ser preenchido pela sabedoria do mestre. Não que essa fosse sempre a realidade, mas era a idealização. Com efeito, mesmo entre os meus melhores e mais inspiradores professores, quase não havia ninguém com título de mestre, menos ainda doutor, e as poucas vagas oferecidas pelo curso de mestrado em Direito, em minha Universidade Federal do Pará, nem sempre eram preenchidas. Durante minha graduação, observei uma guinada nesse cenário, quando o mestrado passou a ser procurado por grande número de pessoas e vários professores se dedicaram à pós-graduação.

Sei que o Prof. Damásio foi laureado com um título de doutor honoris causa pela Universidade de Salerno (Itália), mas confesso não saber se ele chegou a obter o grau de doutor (não encontrei um currículo Lattes). Mas também sei que ninguém duvidava de seus conhecimentos e que todos sempre o respeitamos. Escrevendo sobre dogmática, lecionando ou concedendo entrevistas, sempre foi comprometido com a ideia  ― hoje cada vez mais esmaecida pelo discurso e prática do sistema de justiça criminal, dominado pelos Quixotes da moralidade  ― de que o direito penal é um instrumento de proteção do indivíduo acusado de crime frente ao Estado. Que é e precisa ser um instrumento de garantia do cidadão. Que os fins não justificam os meios, não importa a desculpa que se invente para legitimar abusos.

É por isso que me sinto à vontade de dizer que, aos 16 anos, eu sonhava em ter a coleção de Direito Penal do Prof. Damásio em minha estante, aqueles quatro volumes de capa ocre (hoje, preta e azul) que luziam conhecimento. Quando comprei o primeiro volume, segurei-o como se fosse um bebê. A reunião dos quatro livros foi uma espécie de conquista pessoal. E, por anos, eles me auxiliaram como estudante, monitor da disciplina e, por fim, como professor. Embora seja fato que, com o tempo, acabei substituindo minhas obras de referência por outros autores, nunca deixei de ter um Damásio na prateleira ou de citá-lo em aula. Afinal, um professor que não justifica tortura nem mesmo em "casos extremos" merece respeito, não importa o tempo que passe.

Muito obrigado, Prof. Damásio, por tudo que fez pelo direito penal brasileiro e pela educação nesse campo. Muito obrigado por me ensinar a importância dos termos técnicos, da linguagem escorreita, da precisão das classificações, algo que também aprendi com meu mestre, Prof. Hugo de Oliveira Rocha, e que tentei repassar aos meus próprios alunos. Muito obrigado pela dogmática profunda, pelas reflexões coerentes, pelo senso de responsabilidade. E obrigado, inclusive, pela técnica de formular perguntas para orientar o nosso raciocínio, às vezes apresentando hipóteses surpreendentes e algo absurdas, que frequentemente me fizeram sorrir. Absurda ou não a premissa, a resposta fazia todo o sentido. Os gêmeos xifópagos que o digam.

Vá em paz, com todo o nosso respeito e gratidão.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Desventuras em série

Hardy Har Har, a hiena ultrapessimista criada pela dupla
Hanna-Barbera. Adivinha quem, quando criança, se
identificava plenamente com ela?
O escritor estadunidense Daniel Handler, sob o heterônimo Lemony Snicket, escreveu uma sequência de treze livros intitulada Desventuras em série. Você deve conhecer. Ela ensejou um filme fracassado em 2004 e uma série bem bacana produzida pela Netflix, lançada em 2017 e concluída em três temporadas. A saga dos órfãos Baudelaire é contada com um senso de humor depressivo e mórbido, com o narrador sempre ressaltando que não se deve ter esperanças, que tudo sempre vai piorar. É uma narrativa tão trágica que faz a hiena Hardy parecer um coach quântico.

Há pouco, ao acessar um portal de notícias e ler as manchetes, só consegui pensar que viver no Brasil se tornou algo como estar dentro das desventuras em série. Ou tragédias em série. Ou apocalipses em série. Faltam termos para qualificar o horror que temos enfrentado. Vamos a uma rápida demonstração:

Manchete 1: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/02/05/bolsonaro-pessoa-com-hiv-e-despesa-para-o-pais.htm

Uma gota de sabedoria: "O Alexandre Garcia [jornalista e apresentador da Globo] comentou que a esposa dele, que é obstetra, atendeu uma mulher que teve primeiro filho aos 12 anos, o segundo aos 15 e no terceiro já estava com HIV. Uma pessoa com HIV, além de ter um problema sério para ela, é uma despesa para todos aqui no Brasil", disse #@&*%$A declaração aconteceu quando o presidente foi questionado sobre cortes de verba em políticas públicas para mulheres e respondeu elogiando a campanha de abstinência sexual anunciada pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.

Manchete 2: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/02/05/se-puder-confino-ambientalistas-na-amazonia-diz-bolsonaro.htm

Um momento edificante: Ao defender hoje a regulamentação da mineração e exploração de recursos em terras indígenas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que, se pudesse, "confinaria" os ambientalistas na Amazônia, já que "eles gostam tanto de meio ambiente". (...) Na prática, Bolsonaro propõe alterar regras para permitir que áreas indígenas, hoje protegidas, passem a ser exploradas comercialmente em atividades como mineração, exploração de petróleo e gás natural e geração de energia hidrelétrica.

Manchete 3: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/governo-bolsonaro-nomeia-evangelizador-de-indigenas-para-chefiar-setor-de-indios-isolados.shtml

Uma dádiva do coração: O Ministério da Justiça nomeou nesta quarta-feira (5) o pastor evangélico Ricardo Lopes Dias para o cargo de chefe da coordenação de índios isolados da Funai, considerada um dos setores sensíveis do órgão por lidar com a população indígena mais vulnerável.

Manchete 4: https://www.uol.com.br/universa/noticias/agencia-estado/2020/02/05/violencia-contra-mulher-area-precisa-de-postura-nao-de-dinheiro-diz-bolsonaro.htm

Uma celebração da humanidade: O presidente Jair #@&*%$ (sem partido) sinalizou hoje que não pretende reforçar o orçamento para políticas de combate à violência contra a mulher. Para ele, a área não depende de dinheiro, e sim de "postura", "mudança de comportamento" e "conscientização". Levantamento feito pelo Broadcast, sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado, revelou que houve redução drástica nos recursos do governo para a área entre 2015 e 2019 e que o programa Casa da Mulher Brasileira ficou sem receber um centavo em 2019. A Casa da Mulher foi criada para oferecer atendimento integrado às vítimas de violência.

Como diriam Snicket ou Hardy, vai piorar. Todos os dias, sem exceção, são várias as notícias que nos sugam o resto das energias. Isso, claro, se você ainda se sente humano e consegue enxergar humanidade em algo além do seu umbigo. Para os demais, esse extermínio planejado, sistemático e convicto é a melhor coisa que poderia estar acontecendo ao país. Para o resto de nós, é um exercício brutal de resistência, que fazemos porque a alternativa não é lá muito auspiciosa. 

Se vivos estamos, resistamos.