Mas não podemos esquecer-nos do excelente Os últimos passos de um homem (Dead man walking, dir. Tim Robbins, 1995), baseado no livro da freira Helen Prejean, contando a experiência real que teve como guia espiritual de um condenado à morte. Embora o julgamento se baseasse em provas questionáveis, a verdade por trás da sentença leva a um contundente discurso sobre quão errado é matar, não importam as circunstâncias.
Podemos recordar até o maravilhoso À espera de um milagre (The green mile, dir. Frank Darabont, 1999). Drama com realismo fantástico baseado em romance de Stephen King, a princípio tem mais a ver com poderes sobrenaturais e suas consequências sobre as vidas afetadas. Mas pode ser bem explorado por um criminólogo, já que ali temos um negro considerado ameaçador por seu porte físico e sua condição de forasteiro (estereotipização) e o empenho da comunidade em condená-lo simplesmente porque tudo indica que seja culpado e não há outro suspeito.
A lista acaba de ser honrosamente ampliada com Luta por justiça (Just mercy, dir. Destin Daniel Cretton, 2019). Aqui temos a inusitada história real de Bryan Stevenson, um jovem negro americano que saiu de uma infância de grande pobreza para a oportunidade de cursar Direito em Harvard (ainda gostaria de saber como pagou por seus estudos). Idealista, abdicou da possibilidade de uma carreira como quase todos buscam (de satisfação pessoal e sucesso financeiro) pelo objetivo de prestar assistência legal a condenados à morte no Estado do Alabama, uma região especialmente racista em um país essencialmente racista, como são os Estados Unidos. E como somos nós.
O filme, baseado no livro de Stevenson, se concentra no caso de Walter "Johnny D" McMillian, condenado à morte pelo assassinato de uma jovem branca de 18 anos. Todavia, a intenção não é narrar mais uma história de um Davi negro contra o Golias-Estado, com sua eterna cantilena sobre "justiça" e "respostas para a sociedade". O objetivo é denunciar, mais uma vez, um sistema concebido para punir os negros simplesmente por essa sua condição. Isso explica o promotor de justiça dizer que tem certeza da culpa do réu só de lhe olhar a cara. Isso também explica o forjar de provas, a coação de testemunhas, a fabricação de falsos depoimentos, a perseguição ao advogado e a quem possa auxiliá-lo, bem como a tranquilidade com que o judiciário insiste em ignorar provas ou a falta delas. Um grande mais do mesmo que precisa ser repetido à exaustão, já que vivemos hoje como há 10, 20, 50 anos atrás e, aparentemente, a maioria de nós prefere assim, nem que seja por omissão.
O maior mérito de Luta por justiça (não gosto do título em português, mas reconheço que tem coerência com as falas dos personagens), contudo, não é mostrar a defesa que falha ou a que dá certo; nem mesmo a previsível reação da população branca, e particularmente da polícia, ao trabalho em prol dos condenados mais odiados. Mas dar o devido destaque a um dentre os diversos movimentos em atuação nos Estados Unidos, para garantir uma defesa tecnicamente competente e o efetivo respeito aos direitos constitucionais, penais e processuais (ou, como preferem os estadunidenses, os "direitos civis") de uma população vulnerável e intensamente perseguida. Pessoas que, nas palavras de Johnny D, já nascem condenadas.
Os verdadeiros McMilian e Stevenson |
No caso de Stevenson, a organização se chama Equal Justice Iniciative, fundada em 1989 e ainda em atividade. Aliás, foi um bálsamo, para mim, saber que Stevenson, hoje com 60 anos, segue vivo e atuante, à frente de uma grande equipe de advogados, que já conseguiu reverter mais de 140 condenações à morte. Se o número assusta, as legendas finais também informam que, de cada 9 condenações à morte, 1 acaba revertida, provando de modo cabal que o sistema punitivo impõe sofrimento extremo e irremediável com absolutas tranquilidade e irresponsabilidade. Nada mais natural supor que, com um pouco mais de boa vontade, a estarrecedora estatística de "erros" judiciários seria ainda mais alarmante.
O objetivo desta postagem não era fazer uma crítica sobre o filme, tarefa que deixo aos que realmente entendem do riscado, os quais dividirão espaço com os inúmeros donos da verdade que habitam a internet. Mas, ainda sob o efeito da sessão que compartilhei com minha filha, quis trazer à baila a importância de filmes como este, que não precisam ser originais ou inovadores, porque a repetição de certas fórmulas e temáticas é a prova, que nos soca a cara, do quanto insistimos em não melhorar enquanto humanidade, preferindo os discursos vazios com que pretendemos legitimar o olho por olho como expressão de justiça ainda em nossos dias.
[Post scriptum]
Expliquei a minha filha que essas tantas iniciativas estadunidenses de assistência jurídica a condenados surgiram por causa da pena de morte, uma realidade diferente da brasileira. Ela me questionou se temos pena de morte no Brasil. E aí chegamos ao vespeiro. A Constituição de 1988 dispõe que somente condenados por crimes de guerra, em situação de guerra declarada, poderiam sofrer a tal pena capital (que, segundos muitos, nem pode ser considerada como "pena", já que não possui idoneidade ressocializadora nem preventiva, resumindo-se a mera vingança).
Mas entre as intenções legisladas e a realidade cotidiana do extermínio negro nas ruas de cada cidade brasileira medeia um abismo tão horrendo que, ouso dizer, somos bem piores do que a pior máquina de gastar gente (termo de Darcy Ribeiro) do Ocidente, que é o sistema punitivo daquela que se autoproclama "America". Porque sequer nos damos ao trabalho de fingir uma aparência de legalidade. Vamos pela via da execução sumária, mesmo. Notória, legitimada pelo silêncio obsequioso das agências punitivas e aclamada, com todo o entusiasmo, pelos aplausos da gente de bem.