Quando éramos crianças, meu irmão ganhou de presente um livro, uma belíssima encadernação intitulada
Grandes vidas, grandes obras (publicação de
Seleções do Reader's Digest), que compilava diversos artigos biográficos ilustrados, de diferentes autores, indo de Confúcio a Walt Disney, passando por expoentes das artes e da ciência. Foi através desse livro que tomei conhecimento de personalidades como Florence Nightingale, Francisco de Goya e Gengis Khan, nome este que, até então, eu associava apenas a uma estranhíssima e cafona banda que fazia sucesso no programa dominical do Silvio Santos.
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Graças às biografias, escapei do ridículo de achar que Gengis Khan era apenas isto. |
Foi lendo esse livro que descobri o prazer de degustar biografias. Naturalmente, com o tempo, passei a valorizar as biografias alentadas, não simples artigos, mas volumes inteiros e bem fundamentados contando a vida de alguém que, por alguma razão, fez diferença no mundo.
Os motivos que levam uma pessoa a se tornar pública e de interesse para a posteridade são os mais variados. Nestes tempos obscuros em que se cultua tanto o conceito de "celebridade", o qual acabou por estabelecer uma nova doença da contemporaneidade — a
obsessão por ser celebridade —, a questão pode ganhar novo fôlego.
O fato é que há mais ou menos três semanas está sendo travada uma batalha pública entre jornalistas e artistas, a respeito do direito que os primeiros reivindicam de escrever biografias não autorizadas, o que faz parte da atividade jornalística e, por isso, regida pelas liberdades de expressão e de imprensa. A premissa é de que a sociedade tem interesse de conhecer certas personalidades e que isso enseja um direito ao conhecimento dessa informação, porque ela diz muito sobre o país como um todo. Quando se escreve sobre uma pessoa, necessariamente se descortina todo um pano de fundo, de modo que o indivíduo se torna o trampolim para a descrição de uma época, de um modo de viver e, em especial, de certos eventos específicos.
Assim, conhecer a vida de um artista, um cantor, p. ex., pode dizer muito sobre um pedaço da história da cultura brasileira. Já escrevi sobre a
excelente biografia de Renato Russo, da qual se pode extrair um olhar sobre a década de 1980, sobre aqueles tempos em que a ditadura militar cedia espaço à redemocratização, mas os ranços do passado estavam todos em vigor. Lendo aquele livro, pude ver como a indústria fonográfica já ditava as regras, mas ainda havia uma preocupação com a qualidade, com revelar talentos autênticos, e não essa coisa horrível de hoje, em que o interesse é apenas em produtos comerciais. Outro aspecto relevante a ser considerado é a descrição do comportamento dos jovens de classe média de Brasília, naquele período.
Mas alguns artistas decidiram bater o pé e até se organizaram em torno de um movimento, o "Procure Saber", que defende a obrigatoriedade de autorização do biografado ou de seus descendentes, para que a obra seja escrita ou lançada no mercado, assim como compensações financeiras. O Código Civil atual permite a oposição dos atingidos pela obra, que podem impedir a sua divulgação. Como estamos falando de artistas do porte de Roberto Carlos (que já censurou uma biografia sua), Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan e Milton Nascimento, a coisa tomou uma dimensão imensa. E a partir daí a disputa que se travou, longe de um debate qualificado, tornou-se uma sucessão de afirmações toscas e desmentidos.
Djavan, p. ex., alegou que os biógrafos e suas editoras ganham fortunas com tais obras, enquanto o biografado, que teve sua vida explorada, nada ganha com isso e fica apenas com o sofrimento de ter sua vida escancarada. Recebeu respostas contundentes, p. ex. de Mário Magalhães, autor da biografia de Carlos Marighella (minha leitura atual; ver
link abaixo), e de
Luiz Schwarcz, da Cia. das Letras.
Mais feio ainda ficou para o endeusado Chico Buarque, quando
sugeriu que o biógrafo de Roberto Carlos mentira sobre tê-lo entrevistado e, no espaço de poucas horas, tomou pela cara um desmentido com texto, fotos e até mesmo vídeos, levando-o a
pedir desculpas públicas. Contudo, no mesmo texto, persistiu negando alguns fatos. Quando li a tréplica do jornalista Paulo César de Araújo, fiquei totalmente convencido. Chico foi de uma infelicidade colossal e inesquecível.
Outros artistas têm-se manifestado, a maioria pela liberdade de escrever biografias. Ney Matogrosso, p. ex., em cuja biografia (disseram-me) há um capítulo dedicado aos seus desafetos, que obviamente o detonam e nem por isso ele tomou medidas de cerceamento, teria perguntado: "De que essas pessoas têm medo?"
A pergunta é pertinente. Afinal, nem estamos falando especificamente de artistas, mas de pessoas públicas em geral, onde também se incluem os políticos. Veja-se, p. ex., o caso de José Sarney: há duas biografias a seu respeito.
Honoráveis bandidos, de Palmério Dória (nascido em Santarém e criado aqui em Belém), foi aclamada. Já a outra, quase desconhecida, é exemplo das críticas que têm sido feitas: se somente se publica o que for autorizado, então se pode esperar um texto bajulador, inocente ou, como estão dizendo, "chapa branca". Há muita gente neste país que adoraria
deixar quieto, mas é nosso dever não permitir que seus feitos caiam no esquecimento, porque continuam ativos e danosos à sociedade.
Fomentando o debate, o Portal G1 entrevistou biógrafos de sete países diferentes, responsáveis pelos perfis de gente como Vladimir Putin, Paul McCartney e Edith Piaf, dentre outros, e todos se mostraram mal impressionados com a lei brasileira, como era de se esperar,
defendendo a liberdade de escrever esse tipo de obra. Seus argumentos são relevantes e não meramente classistas. Que o diga Masha Gessen, biógrafa de Putin, indivíduo que reúne credenciais mais do que suficientes para ser classificado como ditador, embora reinando em um regime formalmente democrático.
Toda essa discussão sobre um tema que nunca antes ocupara meus pensamentos serviu para que eu me informasse e formasse uma opinião esclarecida. Sou pela liberdade, também. Não vi um só argumento que não denunciasse má fé ou interesse pessoal. Pelo lado oposto, a legislação existente permite a repressão a abusos. No mais, nenhum sistema é perfeito a ponto de impedir que ninguém saia prejudicado. Então o sistema menos agressivo ao bem que se pode obter é o das liberdades.
O
site da Câmara dos Deputados informa que o PL 393/2011, que modifica o Código Civil e assegura a liberdade de escrever biografias não autorizadas,
pode ser votado hoje. Mas acho difícil, porque alguns líderes já disseram que a matéria é importante, porém não urgente, devendo-se dar prioridade a algumas questões bem mais úteis ao funcionamento do país. E me parece que eles têm razão. Enquanto a briga segue, vamos nos divertindo com os exercícios de retórica.
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