quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Polícia de trânsito estilo Belém

Dia desses, uma viatura da SEMOB, modelo Toyota Etios hatch, adesivada com as características do órgão de trânsito, estacionou na Av. Júlio César, no sentido Almirante Barroso - Aeroporto, em frente ao Cassino dos Oficiais da Aeronáutica. Obstruindo a ciclofaixa, diga-se de passagem. Ali foi instalado um radar móvel de velocidade, que deve ter causado infelicidade a muita gente. Afinal, há anos o Superior Tribunal de Justiça assentou que são válidas as autuações por excesso de velocidade registradas por radar, mesmo que sem qualquer aviso aos condutores. O objetivo óbvio é que todos se controlem o tempo inteiro, não apenas no momento e nos locais onde há fiscalização.

Hoje, a viatura e o radar móvel estão novamente no mesmo local. Mas eles têm companhia! Na Duque de Caxias, sentido Marco - São Brás, salvo engano entre as travessas Perebebuí e Pirajá, encontra-se um Fiat Uno branco, contendo apenas um adesivo azul na porta, indicativo de veículo a serviço da Prefeitura de Belém, sem especificação do órgão. Convenientemente estacionado à sombra das mangueiras, em cima da calçada. Por isso, os condutores não prestarão atenção. Nem verão o radar móvel posicionado bem ao lado.

Não sou contra a fiscalização de surpresa. O que me emputece na atuação da SEMOB são as coisas de sempre: primeiro, o caráter exclusivamente punitivo (e consequentemente arrecadatório), sem qualquer interesse em medidas educacionais, em abordagem ao condutor, nem que fosse para passar um pito antes de realizar a autuação, o que poderia ter algum efeito pedagógico, que certamente não será alcançado com o mero recebimento da multa pelo correio.

O segundo ponto revoltante é a seletividade. A SEMOB parece obcecada com o controle de velocidade e até está reduzindo o limite em várias vias da cidade (Zé-Nada Coutinho jamais admitirá que está se inspirando em Haddad), mas simplesmente não se interessa por filas duplas e triplas ou por cruzamentos bloqueados, que são diários e causam gravíssimos prejuízos à mobilidade urbana. Não aguento mais falar disso, porque nada é feito. A cidade vive travada e mecanismos, legais e simples, que poderiam ajudar não são aplicados, por falta de interesse.

O resultado é que, entra ano, sai ano, as coisas só pioram. E o meu dia de fúria se aproxima.

Twitterítica XXXVII

Sabe quando você termina de elaborar a prova e diz para si mesmo: "Estou de parabéns!"?
Pois é.

domingo, 22 de novembro de 2015

Luz negra

A pessoa mais pé-no-saco do mundo provavelmente é aquela que desponta como protagonista da belíssima composição de Nelson Cavaquinho, "Luz negra".

O sujeito é tão babaca que se atreve a proclamar que ninguém no mundo sofre mais do que ele. Fome, doença, guerra, injustiças as mais dantescas... nada disso é páreo para a extrema dor de cotovelo desse egocêntrico sem o menor traço de maturidade. Fico me perguntando se ele realmente acha que conseguirá despertar a simpatia de seu interesse amoroso demonstrando um temperamento tão depressivo e descontrolado.

Mas um sujeito como eu, no fundo, consegue entender como é que alguém se torna tão desequilibrado a esse ponto. E talvez por isso eu goste tanto dessa canção, inclusive interpretada na graciosa e convincente versão de Cazuza (aqui o vídeo do YouTube), gravada no programa Chico & Caetano, da TV Globo (1986), em cuja voz eu a escutei pela primeira vez.

Veja o tamanho da doença:

Sempre só
Eu vivo procurando alguém 

Que sofra como eu também
Mas não consigo achar ninguém

Sempre só
A vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim

Tô chegando ao fim

A luz negra de um destino cruel
Ilumina um teatro sem cor
Onde estou representando o papel
Do palhaço do amor

Sempre só
A vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim
Eu tô chegando ao fim

Eu tô chegando ao fim...
Eu tô chegando ao fim...

Eu tô chegando ao fim...

Serei eu um impostor?

Enquanto muitas pessoas fazem de tudo por parecer o que não são, em relação a qualquer coisa ― inteligência, beleza física, felicidade pessoal, realização profissional, harmonia no casamento, prosperidade financeira, etc. ―, outras têm motivos reais para comemorar suas conquistas. No entanto, não comemoram. E não o fazem simplesmente porque duvidam de seu merecimento em relação a elas.

Pode ser modéstia, mas também pode ser coisa mais séria. Você já ouviu falar na síndrome do impostor (ou fenômeno impostor)?

Trata-se de um transtorno psicológico basicamente de autoquestionamento intelectual, descrito ainda na década de 1978 pelas psicólogas Suzanne Imes e Pauline Rose Clance, então pesquisadoras da Universidade Estadual da Geórgia, a partir da observação de grandes empreendedores que não se mostravam capazes de internalizar e de aceitar o próprio sucesso. Como consequência, atribuíam seus avanços à sorte e desenvolviam o temor de serem desmascarados, o que pode conduzir a um quadro de ansiedade e de depressão. Os impostores tendem a ser perfeccionistas e não gostam de pedir ajuda para realizar suas tarefas. Podem chegar ao ponto de não perceber que é possível viver sem esse tipo de angústia.

Quem se acha uma fraude duvida de suas habilidades e, até mesmo, de seu pertencimento ao ambiente em que se encontra. Resulta daí que essas pessoas têm dificuldades até de falar sobre o problema, já que padecem de um medo abrangente de ser descobertas como farsantes. A questão é confundir a aprovação pelo sucesso como amor ou reconhecimento da dignidade.

O tema tem sido objeto de pesquisas e de publicações recentes, embora ainda não reúna condições para ser catalogado como transtorno mental pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Segundo as psicólogas que o analisaram primeiro, e que inicialmente consideraram as mulheres como mais propensas, uma causa pode estar na criação por famílias extremamente preocupadas com o sucesso, mormente se incorrerem em práticas de excesso de elogios ou de críticas. Pressões sociais potencializam o problema. Enquadrar-se em um grupo vulnerável, como uma minoria étnica, também foi considerado. Será que você foi ajudado por questões de simpatia? Outra questão relevante é você estar envolvido com algum tipo de novo empreendimento, como iniciar um curso superior.

Posso dizer que, no universo acadêmico, sofrer da síndrome do impostor é previsível, já que estamos o tempo inteiro sob alguma espécie de fiscalização. Imagino que, nos dias correntes, todos nós, professores, vivenciamos um pouco disso, de ambos os lados do balcão: o problema está em nós mesmos e em nossos alunos, que devemos ajudar, na medida do possível.

A American Psychological Association, responsável pela matéria que baseou esta postagem (link abaixo), lista algumas medidas para enfrentar a síndrome:

Conversar com os mentores. Eles podem oferecer suporte por meio da supervisão dos trabalhos, além de tentar convencer o pupilo da irracionalidade de seus sentimentos. De minha parte, sendo professor da graduação, penso que desvincular o aluno da obsessão por notas pode ser um caminho útil.

Admitir os próprios conhecimentos. Além de olhar para os que estão à frente, o impostor deve trabalhar com quem está em posição menos privilegiada, p. ex. realizando tutorias, o que pode ajudá-lo a perceber que já avançou em sua caminhada e que pode ajudar outros. De quebra, isso ainda permite ajudar outras pessoas, o que sempre vale a pena.

Identificar as próprias habilidades. Obviamente, ninguém é bom em tudo, então o impostor deve avaliar honestamente suas habilidades, a fim de separar aquelas em que já é bom e aquelas outras, que realmente lhe pedem dedicação para o aprimoramento.

Admitir que ninguém é perfeito. Não adianta buscar a perfeição; o seu compromisso deve ser fazer suas tarefas bem o suficiente e, ainda, reservar um tempo para apreciar os frutos do seu trabalho árduo, inventar recompensas para o sucesso e aprender a comemorar. Como sempre digo, nenhum trabalho se justifica por si mesmo. Não é saudável trabalhar por trabalhar: usufruir é humano.

Mudar de ideia acerca das próprias realizações. O impostor precisa romper com o ciclo supersticioso acerca de suas realizações, reduzindo expectativas ou compartilhando responsabilidades (pedindo ajuda para cumprir compromissos).

Procurar ajuda. Sim, procurar ajuda profissional é uma grande ideia.

Fonte: http://www.apa.org/gradpsych/2013/11/fraud.aspx

Mais:

  • Página de Pauline Clance (em que se pode ver que, como boa americana, ela já inventou uma escala para mensurar o transtorno): http://paulineroseclance.com/impostor_phenomenon.html
  • Em português: http://ihjtkent.org.br/pdf/anexo-salixfragilis.pdf

Novembro Criminológico: 1º evento

Foi excelente o IV Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisas "Direito Penal e Democracia", realizado nos dias 19 e 20 últimos, no Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará.

Não digo isso porque sou integrante do grupo, porque fui um dos palestrantes ou por amizade a tantos dos que tomaram parte ativa no evento. Fornecerei argumentos específicos para esta opinião.

Penso que já esgotamos nossa cota de juristas de gabinete, entrincheirados em suas vestes forenses e salas refrigeradas, discutindo questões estéreis que muitas vezes homenageiam uma concepção autocêntrica do Direito, uma visão ególatra, que perde a dimensão do Direito como uma ciência de razões práticas, ou seja, destinada a orientar o comportamento humano de forma concreta.

Penso que precisamos urgentemente de juristas ativistas, que não apenas detenham sólido conhecimento, mas sejam sobretudo fortemente comprometidos com a transformação da realidade ― que, convenhamos, não anda nada boa. Para tanto, precisamos debater com afinco temas substanciais, mas fazer isso não apenas por senso estético e sim com a preocupação de aprimorar o conhecimento jurídico e, na sequência, nossas condições existenciais. Por isso, já merece elogio a menção a "mobilização" no título do seminário e a escolha, para homenageada, de uma professora que representa tudo isto que estou mencionando.

O seminário reuniu uma gama de elementos para torná-lo um respeitável evento acadêmico: teve chamada de artigos e apresentação dos mesmos ao público, após aprovação (e eu não poderia deixar de mencionar a participação de respeitáveis integrantes da comunidade do CESUPA, tais como João Victor Araújo, Emy Mafra, Vitória Oliveira e Tainá Ferreira); teve palestrantes cujo renome extrapola as fronteiras do Brasil, a exemplo de Juarez Tavares, Adriana Facina e, claro, a homenageada, Vera Andrade; teve a presença de ilustres representantes locais, de instituições públicas e da sociedade civil, verdadeiramente comprometidos com as temáticas; teve intensa participação de estudantes na organização; teve envolvimento interinstitucional; teve temas cuidadosamente escolhidos, sobre assuntos urgentes e claramente voltados à valorização do ser humano.

Um aspecto que considero particularmente louvável foi reunir acadêmicos aos ativistas e a integrantes da sociedade civil organizada, dando voz, em pé de igualdade, àqueles que muitas vezes não são ouvidos.


Na foto acima, temos a força jovem que arregaçou as mangas e viabilizou o projeto, à frente a Profa. Luanna Thomaz. Palestrante do primeiro dia, apareço aí entre minha querida amiga dos tempos da graduação, Anna Cláudia Lins, hoje aguerrida advogada de direitos humanos, e o Prof. Juarez Tavares. À direita dele, a Profa. Adriana Facina.



Na segunda foto, nossa equipe comemora a palestra final tendo ao centro a Profa. Lorena Fabeni, que comanda um bonito trabalho em Marabá (UNIFESPA), e à direita dela, a homenageada, Profa. Vera Andrade.

Outro aspecto altamente meritório foi a dimensão cultural do evento. As mesas de trabalho se alternavam com apresentações musicais ou performances, tornando visíveis certos segmentos habitualmente vulneráveis.



No primeiro dia, uma dupla do Guamá se apresentou. Eu, que não gosto de rap, tive que dar o braço a torcer: as letras eram excelentes, de elevada qualidade linguística e com uma mensagem viva, de quem sente na pele aquilo que canta.



No segundo dia, três representantes de um grupo duplamente discriminado ― por serem mulheres e por serem negras ― mandaram o seu recado em uma mesa também composta apenas por mulheres.

Eu estou orgulhoso do que vi. Quem soube aproveitar, p. ex. dando um tempo no onipresente celular, recebeu um grande produto em suas mãos. Já quero mais.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Finalmente, algo sendo feito

Um ano e quatorze dias depois da chacina que vitimou dez pessoas em cinco diferentes bairros de Belém, sendo a primeira um cabo da Polícia Militar e as demais, civis que se supõe terem sido mortos por membros daquela corporação, como retaliação, finalmente foi praticado um ato formal que pode levar ao esclarecimento do caso. Trata-se da instauração do conselho de justificação, instrumento legal de caráter persecutório, por meio do qual se analisa a capacidade de um oficial em permanecer no serviço ativo. Como consequência, o oficial pode ser excluído da força, se responsabilizado por violações graves aos seus deveres funcionais ou ao pundonor militar.

No curso do conselho de justificação, como nos demais procedimentos persecutórios, serão colhidas provas para se decidir se os acusados ("justificantes") são culpados das acusações. Em caso afirmativo, e se os conselheiros decidirem pela indignidade, o governador do Estado deve deliberar e, se acolher a decisão do CJ, pode aplicar prisão por até 30 dias, transferir os oficiais para a reserva remunerada ou, se cabível a declaração de indignidade para o oficialato, remeter os autos para o Tribunal de Justiça do Estado, a quem cabe esse julgamento de ratificação.

Há muitas questões que precisam ser explicadas, seja para se confirmar as suspeitas contra todos os mortos, seja para se limpar seus nomes, pois a ninguém interessa um denuncismo generalizado, capaz de provocar insegurança social. Precisamos saber, por exemplo, se o cabo Antônio Figueiredo realmente possuía envolvimento com o crime organizado, um possível grupo de extermínio e/ou milícia, porque esse tipo de câncer é o que existe de pior dentro de uma corporação policial. Ele precisa ser combatido sem trégua, porque o mínimo que se espera de uma força pública destinada a proteger os cidadãos é que ela não se converta em uma empresa de extorsão e assassinato, dentre outras perversidades.

E precisamos, também, de atitudes enérgicas para combater o vale tudo das ruas, que elimina qualquer legalidade e transforma o mundo real em uma espécie de jogo de video game, daqueles ultraviolentos, em que a meta do jogador é matar o maior número possível de inimigos. Há motivos os mais diversos para isso, sejam os de ordem legal (não existe pena de morte no Brasil), sejam os éticos, que deveriam estar o tempo todo na mente das pessoas, como critério preponderante para as suas decisões.

Por fim, estão de parabéns os integrantes da sociedade civil, familiares e amigos dos mortos, e organizações de defesa dos direitos humanos, que têm envidado imensos esforços para romper a habitual inércia do poder público e os vícios corporativos que mantêm em silêncio mesmo os mais atrozes abusos. Sem a força da sociedade civil, com certeza não teríamos saído da estaca zero. Afinal, a quem interessa?

A respeito: http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/11/pms-acusados-de-omissao-em-chacina-podem-ser-expulsos.html

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sessão de psicanálise III - A segunda temporada

[Alerta de spoiler! Um pequeno spoiler, que não revela o mais importante. Mas, se ler o texto na íntegra, não reclame depois.]

Órfão irresignado de Sessão de terapia, um dos melhores produtos de televisão brasileira, cujo encerramento prematuro, baseado sobretudo em custos de produção, deixou-me uma revolta sem cura, esta semana retornei ao seriado Psi, da HBO Brasil, como forma de tentar aplacar a minha síndrome de abstinência. As postagens abaixo mostram que Carlo Antonini nunca me estimulou tanto quanto Theo Ceccato, a começar pelo fato de que não acredito em psicanálise, mas a segunda temporada da série, ao menos a julgar pelo primeiro episódio, demonstra amadurecimento.

Quando a trama de Psi recomeça, um ano se passou desde os eventos da primeira temporada. O atormentado protagonista realmente se permitiu um ano quase sabático na Itália, junto a suas raízes, e provavelmente a experiência lhe fez bem. Digo isso porque ele se apresenta como um homem bem mais sensato agora, quando ao invés das irresponsabilidades do primeiro ano, ressurge como diretor clínico de um abrigo para mulheres vítimas de violência. Aliás, um senhor abrigo, com infraestrutura para colocar no chinelo muita clínica particular por aí. Inverossimilhanças de TV.

E este primeiro episódio abordou, justamente, o tema da violência contra a mulher, que está na ordem do dia. Nele, vemos a estória de Cecília, uma esposa que afirma vir sendo agredida moralmente há algum tempo, mas que chega ao estágio da surra violenta, a ponto de recorrer a ajuda médica. Mesmo assim, ela insiste em não promover medidas legais contra o pai de sua filha.

Pelo que entendi, o objetivo do roteiro era enfatizar a extrema resistência que muitas mulheres têm de responsabilizar seus companheiros, pelos mais diversos motivos. No caso de Cecília, o motivo alegado era a filha: o que ela pensará de mim se souber que mandei seu pai para a cadeia? A certa altura, Carlo fornece uma leitura psicanalítica para esse comportamento: Cecília acha que o marido bate nela porque se importa e isso seria uma expressão de amor, então ela não consegue desvencilhar-se dele. O rumo que os acontecimentos tomam, quando ela, já divorciada, vai atrás do ex, parece ratificar essa interpretação.

Na subtrama, vemos a filha do mantenedor do abrigo conversando com Carlo. Um ano antes, ela foi agredida pelo marido, que lhe arrancou um olho. Ela fala disso aparentemente sem mágoa. "Ele arrancou meu olho. Foi para a cadeia." Pronto. Parece que tudo está resolvido. Suas demonstrações de raiva recaem sobre a época em que eles ainda eram casados e se agrediam mutuamente. O ex-marido era um perdedor que nem se interessava sexualmente por ela, que o humilhava publicamente. Relacionamentos são assim, ela acredita. Então tá.

O fato é que o episódio "O abrigo" foi realmente muito bom. Gostei de sua condução, assim como da linguagem empregada. O aborrecido didatismo da série continua lá. A palestra inicial, a conversa com a jornalista e depois com um policial são os recursos encontrados para fornecer as explicações "técnicas", mastigadas, que o telespectador não descobriria sozinho. Mesmo assim, parece uma saída cênica menos forçada que as anteriores.

Destaco, quanto à linguagem, duas cenas. A primeira, logo no começo, expõe em off os gritos de Cecília sendo espancada. Enquanto isso, a câmera vaga lentamente pelos apartamentos em volta e vemos um casal reagindo àqueles sons, que eles sabem o que são, mas mesmo assim nada fazem. Eles parecem constrangidos em conhecer aquele segredo que não pode vir à tona. Uma cena brevíssima, mas eficiente em mostrar o silêncio cúmplice daqueles que conhecem casos de violência doméstica.

A segunda cena corresponde à imagem acima. Nela, vemos Cecília tomando café com o marido, após a surra (e após ter procurado ajuda, contando o ocorrido para estranhos). Como ficar indiferente? Como negar os sentimentos agudos em volta? O marido ensaia uma nova agressão e a mulher, apavorada, recua. Farelo de bolo se espalha. Ela se levanta, pega um pano e limpa o marido. Ele ri do farelo preso no cabelo comprido dela e ajuda a tirar. Ela descasca uma maçã e lhe serve. Ele come a fruta com uma raiva crescente e então explode: a segunda surra acontece. A maquiagem feita na atriz ficou muito convincente.

Enfim, os meandros da mente humana merecem muita atenção. Por isso, vale a pena ver Psi. Espero que os próximos episódios mantenham a qualidade.

Antecedentes no blog:

Postagem após ver um episódio: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/04/sessao-de-psicanalise.html

Postagem após ver toda a primeira temporada: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/06/sessao-de-psicanalise-ii-depois-do-fim.html

Novembro criminológico

Algo está acontecendo no cenário acadêmico paraense. Algo de importante, promissor e  assim espero  transformador. Porque, como afirmam os adeptos da Teoria Crítica, o conhecimento não se justifica por si só: ele precisa ser um elemento de transformação do mundo. E se há um campo que precisa ser mudado drástica e urgentemente é o das práticas punitivas. Precisamos de políticas públicas realmente sensatas, mas elas só começarão a surgir quando a própria sociedade mudar as concepções que hoje defende, o mais das vezes por pura ignorância, uma ignorância dolosamente forjada entre inúmeras agências, notadamente a mídia e políticos ordinários em busca de votos irracionais.

Mudanças profundas exigem conhecimento, reflexão e debate. Por isso, é valiosíssimo que, neste mês de novembro, tenhamos em nossa cidade nada menos do que três eventos dedicados especificamente ao estudo das criminologias.


Nos dias 19 e 20, o Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia, da Universidade Federal do Pará, que gentilmente acolhe acadêmicos de outras instituições, promoverá o seu IV Seminário, tendo como tema "Criminologias, punitivismo e mobilização: homenagem à Profa. Vera Pereira de Andrade", no auditório do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA.

Tudo me agrada neste evento, a começar pelo fato de que é uma construção dos estudantes, sob a condução da Profa. Luanna Tomaz. É extremamente importante conclamar os estudantes à ação, em vez de serem meros observadores de um processo de ensino-aprendizagem do qual eles são, na verdade, os protagonistas. Além disso, a percepção da alteridade e a proposta transformadora estão presentes desde o título do evento, deixando claro o que existe no DNA de quem se interessa por criminologia.

Organizado sob a forma de grupos de trabalho, o evento terá importantes painelistas (e eu lá no meio), organizados em mesas, conforme abaixo:

Punitivismo e resistência democrática ― Juarez Tavares (UERJ), Ernani Chaves (UFPA) e Marco Apolo (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos), sob a coordenação do Prof. Jeferson Bacelar (UNAMA).

Neoliberalismo, criminologia e subjetividades ― Flávia Lemos e Hélio Moreira (UFPA), Yúdice Andrade (CESUPA) e Max Costa (UNIPOP), sob a coordenação do Prof. Paulo Corrêa (UFPA).

Criminologia crítica e a política criminal sobre drogas ― José Araújo de Brito Neto (OAB) e Artur Couto (Frente Paraense de Drogas), sob a coordenação do defensor Público Vladimir König. Apesar de constar do folder, Salo de Carvalho (UFRJ), infelizmente, teve um imprevisto e não poderá comparecer.

Criminologia, cultura e resistência ― Adriana Facina (UFRJ), Tony Leão da Costa (UEPA), Francisco Batista (Comissão Justiça e Paz da CNBB e Tela Firme), sob a coordenação do Prof. Rômulo Moraes (UFPA).

Cidades rebeldes: território policiado ― Aiala Couto (NAEA), Jean-François Deluchey (UFPA), Jorge Lopes Farias (Comissão de Defesa da Igualdade Racial e Etnia da OAB/PA), sob a coordenação do advogado Lucas Sá (Instituto Paraense de Direito de Defesa).

Entre criminologias, mulher e o sistema de justiça criminal ― Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC), Lourdes Barreto (GEMPAC) e Luanna Tomaz (UFPA), sob a coordenação da Profa. Lorena Fabeni (UNIFESPA).

Na oportunidade, a Profa. Vera de Andrade relançará o seu livro Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização, um grande título da criminologia brasileira, que estava esgotado há anos.


Para maiores informações: 
https://www.facebook.com/Grupos-de-Estudos-e-Pesquisas-Direito-Penal-e-Democracia-194816343930223/?pnref=lhc

Nos dias 24 e 25, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região abrigará o II Fórum Internacional de Criminologia de Língua Portuguesa, sob o tema "Crime, justiça & latinidade: contribuições criminológicas". Trata-se de um evento da Associação Internacional de Criminologia de Língua Portuguesa com o apoio local do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, à frente os professores Marcus Alan de Melo Gomes e Ana Cláudia Bastos de Pinho. Da comissão científica também faz parte a Profa. Cristina Sílvia Alves Lourenço (CESUPA).

Teremos, como conferencistas, Cândido da Agra (Portugal), Renato Campos Pinto de Vitto (Brasília), Vera Malaguti Batista (Rio de Janeiro) e Máximo Sozzo (Argentina). 

Como painelistas, teremos representantes de instituições ligadas à gestão criminal (Vladimir König e José Arruda da Silva, pela Defensoria Pública, o último também pelo Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária); e Sumaya Saady Morhy Pereira (pelo Ministério Público do Estado); além de acadêmicos: Jorge Quintas (Universidade do Porto), Marília Montenegro Pessoa de Mello (UNICAP e UFPE), Ruth Estêvão (USP Ribeirão Preto) e Fernando Albuquerque (UFPA).


Para maiores informações: http://forum-aiclp.blogspot.com.br/

O evento internacional acima atraiu dois criminólogos com formação em História, o que lhes permite abordagens interessantíssimas para o nosso campo. Assim, o nosso Grupo Cabano de Criminologia Crítica, recentemente criado, aproveitou a oportunidade para convidá-los a palestrar no que será o primeiro evento científico de nossa realização.

Surgiu, assim, o "Seminário História, Criminologia e Crítica", que será realizado no dia 23 de novembro, no Auditório Prof. Ney Sardinha, do curso de Direito do CESUPA.

Os palestrantes serão Hugo Leonardo Santos, professor de Direito Penal e Criminologia da CESMAC/AL, que falará sobre "História crítica dos conceitos jurídico-penais", e Marco Alexandre Serra, professor da PUC/PR, cujo tema é "Percepções criminológicas quanto às revoltas populares no Brasil do século XIX". Ambos os palestrantes são doutorandos e têm obras publicadas.

Antes deles, falará um dos fundadores do grupo, Adrian Silva, mestrando pela UFPA e já ativo palestrante, para apresentar as nossas propostas de trabalho e estimular mais gente a se juntar a nós.


Para maiores informações: http://criminologiacabana.com/

Tenham certeza de que é um privilégio aprender com mentes tão privilegiadas e produtivas, nessa inédita e rara oportunidade de tê-las reunidas em nossa cidade. Afinal, fazer academia é difícil em si mesmo, mas é especialmente difícil em uma região como o Pará, prejudicada desde as distâncias colossais dos grandes centros até à falta de políticas públicas consistentes para o desenvolvimento de regiões como a nossa. Portanto, nós é que precisamos arregaçar as mangas e fazer acontecer.

Por oportuno, destaco a necessidade imperiosa de que cada grupo e cada instituição que trabalha com o conhecimento procure somar esforços, em benefício de todos. Precisamos estar realmente juntos nesta missão dificílima de transformar o nosso Estado em um autêntico celeiro de conhecimentos científicos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Entre caranguejos, amigos e lembranças

Somos uma família que recebe. Minha mãe se tornou uma pessoa dessas que sentia falta dos amigos e, vez por outra, inventava um almoço sem nenhum motivo além de reunir aqueles de quem se gosta. Sua casa era, de certa forma, um ponto de encontro. Houve épocas em que estranhávamos se não aparecia ninguém para almoçar por três, quatro semanas consecutivas.

A verdade é que minha mãe era um elemento agregador. Mesmo que fossem os amigos dos filhos, ela era o amálgama da casa, para tudo. Houve quem nos dissesse, durante os funerais, "não se esqueçam de nós", justamente pela percepção de que, sem ela, estaremos mais dispersos. A partir de sua ausência, portanto, tornou-se difícil pensar na ocorrência desses encontros, mesmo que todos saibamos o quanto eles são importantes para todos nós.

Ontem, pela primeira vez em algumas semanas, tivemos um encontro desses. E ele surgiu de maneira absolutamente espontânea. Minha esposa e tia, irmã de minha mãe e que com ela morou desde os 10 anos, decidiram comer caranguejo. Era apenas o nosso almoço de domingo, mas elas decidiram convidar duas pessoas muito próximas, que também apreciam a iguaria. Isso implicaria em dois maridos e duas crianças. Então mencionei uma família querida, que já vinha demandando se reunir a nós, justamente os amigos que estiveram conosco em Mosqueiro, no dia 27 de setembro, o último momento feliz de minha mãe.

Acabamos então com 12 visitantes para o almoço, compartilhando caranguejos graúdos, saborosos e cuja carne se soltava facilmente, um feijão maravilhoso, carne para as crianças, sobremesa. Apenas mais um almoço típico em nossa família. Mas era diferente, pela ausência, dura como rocha.

Anos atrás, tomei conhecimento de um samba famosíssimo, gravado por vários artistas conhecidos de antigamente, tais como Elizeth Cardoso, que o popularizou, Nelson Gonçalves e Clara Nunes. Chama-se "Naquela mesa". Informa-me a Wikipedia que se trata de uma composição de Sérgio Bittencourt, filho do conhecido músico Jacob do Bandolim, que compôs sob o impacto da morte de seu pai.

Quando escutei o samba pela primeira vez, fiquei muito emocionado. E olha que, naquela época, minha mãe nem doente estava. Felizmente, não me lembrei do samba ontem. Lembrei só agora, ao escrever estas linhas. Basta conhecer a letra para saber o motivo.

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre, o que é viver melhor,
Naquela mesa ele contava estórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente e contava contente
O que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho, eu fiquei seu fã

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa no canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto doi a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala no seu bandolim
Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele
Tá doendo em mim

sábado, 7 de novembro de 2015

Um shopping e duas crônicas de Júlia

Desde março de 2014 não publico nenhuma das historietas proporcionadas por minha filha, com suas tiradas e provocações. Abstraindo os motivos para tanto, quero compartilhar dois episódios ocorridos ontem, quando uma contingência de origem escolar me levou a um dos shoppings da cidade, acompanhado da dita cuja.

I

Júlia se interessou pela decoração natalina, uma imensa árvore instalada sobre um iglu. Já estávamos de saída, subindo de escada rolante. A cada lanço de escada, ela parava e olhava mais um pouco, o que estava me atrasando e aborrecendo. De repente, ela soltou uma exclamação irritada e me disse que precisávamos falar com alguém que cuida da decoração do shopping. Eu me aproximei e ela disse:

 Veja! ― Apontou, para baixo, um dedo enérgico.

― De que você está falando? ― Perguntei porque ainda não identificara o motivo da reprovação.

― No Polo Norte não existem pinguins!

Olhei melhor a decoração e vi que, em volta do tal iglu, havia estátuas de pessoas vestidas de esquimós (inuit é o termo adequado), ursinhos polares e pinguins (os ursos, por sinal, bem menores do que os pinguins). Júlia ficou furiosa porque, como você bem sabe, no Polo Norte existem ursos polares, porém não pinguins. E no Polo sul existem pinguins, porém não ursos polares. E Júlia, assim como o pai, não tolera esse tipo de erro, uma clara demonstração de preguiça: montaram a decoração em cima de um clichê, sem nenhuma pesquisa.

Só para constar, Júlia aprendeu essa informação em uma das fontes mais ricas de conhecimento para as crianças brasileiras: um gibi da Turma da Mônica. Na estória, Franjinha explicava noções de geografia para a turminha e Cebolinha ficava zoando Mônica, que errava tudo o que dizia, inclusive comentários sobre os aludidos animais.

Também para constar, eu não procurei o SAC para reclamar da decoração. Mas bem que Júlia queria.

II

Júlia pediu para brincar no malsinado iglu. Olhei para a desgraça, lá embaixo, enquanto estávamos a um lanço do guichê de pagamento do estacionamento. Neguei e disse que, com certeza, alguém estava cobrando ingresso para alguma coisa boba.

― Como você sabe que é pago? ―  protestou a pequena.

― Ora, porque tudo custa dinheiro na vida ― respondi.

― Isso não é verdade! Será possível que tudo tem que custar dinheiro?! Isso não é certo!

―  Mas, infelizmente, minha filha, é assim.

Júlia me lançou um olhar inconformado e percebi que ela queria desafiar o meu argumento. Começou assim:

― A gente paga para nascer?

― Para nascer em si, não. Mas hoje em dia precisamos de dinheiro para pagar um plano de saúde e, com isso, ter direito a consultas médicas, exames, parto. Também precisamos comprar remédios, etc.

Por não retrucar, percebi que ela não tinha argumentos para aquela questão. Então apelou para o que, provavelmente, seria o seu trunfo:

― A gente paga para morrer?

― Nós precisamos de dinheiro para comprar um caixão e o lugar onde a pessoa será enterrada. E se quisermos algum tipo de cerimônia, isso custa dinheiro também.

Júlia ficou visivelmente amuada. Talvez, aos 7 anos, ela finalmente esteja começando a entender que a vida tem ônus que, até aqui, ela ignorou. E, admito, em geral sou muito seco para lidar com questões práticas. Fui criado por uma mulher que, com a melhor das intenções, deixou pouco espaço para a fantasia. Eu, pelo menos, deixo que minha filha seja simplesmente uma criança, então mudei o rumo da prosa, até porque tinha o meu próprio trunfo: um presentinho, que obviamente, também custou dinheiro para mim. E, para Júlia, a submissão a algumas ordens, tais como dizer que todos os personagens de My little pony são horrorosos. O que uma criança não faz por um presente?!

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Dia 3

Em algum momento, o dia 3 do mês deixará de ser uma sombra triste. Mas hoje, em especial, ele marca exatamente o primeiro mês de ausência de nossa mãe, então é uma data soturna, que potencializa essa perene sensação de estranheza.

Mas as lamúrias precisam parar. Este é apenas um registro.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dias de finados passados e o atual

Em 2007, publiquei alguns poemas demonstrando visões artísticas sobre o dia de finados:

  • Um haicai do chinês Bashô, de antes de Cristo: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dia-de-finados-bash.html
  • Dois textos da poetisa portuguesa Dalila Teles Veras: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dias-de-finados-dalila-teles-veras.html
  • Um poema do brasileiro Manuel Bandeira: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dia-de-finados-manuel-bandeira.html
  • E uma bela contribuição do poeta argentino Jorge Luís Borges: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dia-de-finados-jorge-lus-borges.html
Sempre fui atraído por assuntos ligados à morte; sou de cemitérios e arte tumular. Mas, até então, era apenas curiosidade. Há quase 11 anos, senti pela primeira vez o gosto amargo de uma perda realmente doída. E há meros 30 dias, minha mãe deixou este plano, colocando-me em um vazio que arte alguma expressou até o momento. 

Somos um país de colonização portuguesa e, por isso, com forte influência do catolicismo. Devido a isso, de geração a geração, somos ensinados a promover o culto ao sofrimento, ao jejum, aos sacrifícios. Somos ensinados de que a alegria e o prazer são venenosos e devem ser contidos, porque paira sobre nós um Senhor dos Exércitos, pronto a justiçar qualquer mau passo e colocar a vingança na conta do nosso próprio livre arbítrio. Vendo reportagens sobre o dia de finados, feitas hoje, pude ver como essas ideias são arraigadas entre nós.

Museo de las Momia de Guanajuato: de repente, senti vontade de visitar
o México. Saiba mais em http://www.momiasdeguanajuato.gob.mx/index.html
Em um dia como hoje, sinto inveja dos mexicanos. Como eu já sabia e esta reportagem aqui ajuda a esclarecer, desde cedo eles são educados sob a compreensão de que a morte faz parte da vida; não adianta nem é razoável temê-la e sofrer por ela.

O dia de los muertos é um dos momentos mais gloriosos da vida mexicana, um dia em que se lembram as pessoas amadas que já partiram, com festa, comida e estímulo ao senso de família. É apoteótico. Tem os seus exageros, claro, como mandar limpar os ossos inumados a cada dois anos, mas é também libertador.

Se não fôssemos doutrinados a estacionar na dor, seria mais fácil fazer o caminho da esperança.

domingo, 1 de novembro de 2015

Necessárias tintas vermelhas ― Sugestão de leituras críticas


Preocupadas com a necessidade de suscitar debates sobre temas pouco explorados e, em geral, dominados pela ignorância e pelo preconceito, a Boitempo Editorial e a Carta Maior lançaram, em 2012, a coleção Tinta Vermelha, autodefinida como um conjunto de "obras de intervenção e teorização sobre acontecimentos atuais". Bem na linha crítica segundo a qual mais importante do que explicar a realidade é transformá-la, ou seja, nós estudamos e teorizamos sempre com a intenção de modificar o que precisa ser mudado na sociedade.

A editora explica que o título da coleção alude ao discurso do filósofo esloveno Slavoj Žižek, aos participantes do Occupy Wall Street, ocorrido na Liberty Plaza, Nova Iorque, em 9.10.2011, que se tornou um marco porque originou um novo modo de fazer protesto popular, tendo como foco as políticas neoliberais que regem o mundo. Disse ele: "Temos toda a liberdade que desejamos ― a única coisa que falta é a 'tinta vermelha': nos 'sentimos  livres' porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade".

A proposta de esquerda fica clara no próprio modo de produzir a obra coletiva: a partir da seleção do tema, alguns autores são convidados a produzir seus artigos, mas os direitos autorais são cedidos (assim como sobre fotografias) e o responsável pela arte gráfica também abre mão de remuneração, tudo para baratear o preço de venda ao público, permitindo maior difusão das ideias. Nem por isso a qualidade cai.

A obra de lançamento (2012) teve como tema Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que me foi apresentada por minha querida monitora Vitória Monteiro e por ela utilizada em sua excelente monografia de conclusão de curso, assim como o título seguinte, Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013). Depois vieram Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? (2014) e, finalmente, Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (2015).

Acabei de ler Bala perdida, uma interessante compilação sobre violência policial, a violência que tanto é legitimada pelo Estado por meio de mentiras sobre fatos (os autos de resistência são a expressão formal mais extrema disso) e ideologias ligadas ao tema da segurança pública quanto, sobretudo, pela própria sociedade, tendo em vista um fenômeno que considero da maior importância em nosso tempo: a legitimação social da barbárie pela progressiva perda dos vínculos comunitários, o que repercute na produção de normas jurídicas crescentemente negadoras de direitos fundamentais.

Bala perdida reúne 17 ensaios breves, que dão voz não apenas a estudiosos, profissionais e acadêmicos, mas também aos familiares das vítimas da violência policial e a um oficial da própria Polícia Militar. As abordagens versam sobre a falência do modelo organizacional adotado no Brasil, herança dos desvarios dos militares que comandavam o país sob a forma de um Estado de exceção: foi em 1970 que surgiu a Polícia Militar, como força auxiliar do Exército, treinada para a solução de conflitos pela lógica do enfrentamento bélico ― algo completamente incompatível com um Estado democrático de Direito.

Além disso, a obra também versa sobre a violência inerente às práticas policiais, a guerra às drogas, a militarização do cotidiano e a exploração midiática, terminando com uma comovente narrativa sobre mais uma das vítimas do que, não à toa, Zaffaroni chama de genocídio ― que, em nosso país, assume a feição de extermínio institucionalizado de jovens pobres e negros (ou, como diriam Caetano e Gil, "quase pretos de tão pobres").

De modo mais pontual, esta leitura fornece importantes informações para entendermos a importância da desmilitarização da polícia, proposta com a qual mais de 74% dos membros da própria PM concordam (exceto, como é previsível, entre os oficiais de mais alta patente, sequiosos de conservar seus privilégios). Esse é o conteúdo da Proposta de Emenda à Constituição n. 51, de 2013, que teve como última movimentação uma audiência pública em 21 de outubro passado. Trata-se da mais completa proposta disponível sobre unificação das carreiras das polícias civil e militar, que hoje estão organizadas de modo a competir e a atrapalhar uma à outra, sendo essa uma das causas dos números pífios de elucidação policial de crimes no Brasil, abaixo de 10%.

A quem se interessa pelos temas e pelo tipo de abordagem, vale muito a pena ler.

Em tempo:

Justamente hoje, o Empório do Direito publicou artigo contendo uma crítica feroz aos principais aspectos da PEC acima referida: a desmilitarização e a unificação das polícias, estabelecendo o chamado "ciclo completo", por meio do qual a mesma corporação exerceria as atividades de policiamento ostensivo, prevenção e investigação criminal (leia aqui). Invocando fundamentos da criminologia crítica, o autor sugere deslumbramento e ingenuidade por parte de quem defende essas propostas, desde a premissa de que seriam meras importações acríticas de modelos estrangeiros, algumas oriundas de países subdesenvolvidos.

Como acadêmico, entendo ser da maior importância debater os diferentes enfoques que um tema permite, ainda mais em se tratando de questão assaz delicada e polêmica. São oportunos os senões suscitados no artigo, mas devo admitir o meu saco cheio com essa mania de criticar o status quo, criticar a crítica e depois criticar a crítica da crítica, que nos mergulha em uma regressão infinita que somente poderia interessar a quem não tem um problema a resolver.

Parece-me bastante óbvio que qualquer assunto sempre pode ser aprofundado em um nível mais sutil do que o da discussão atual. Contudo, as grandes mudanças que o país reclama exigem tempo para virarem leis e, depois, para serem implementadas. Precisamos começar em algum momento. Não podemos permitir que vidas continuem sendo perdidas a rodo enquanto não atingimos o nível de satisfação plena dos teóricos (nível que, provavelmente, não existe). Estamos cientes de que mudanças estruturais nas polícias são insuficientes para resolver o descalabro que vivemos, mas entendo que são medidas importantes e urgentes. No mesmo livro Bala perdida, Maria Lúcia Karam é enfática em asseverar que, sem o fim da política de guerra às drogas, a desmilitarização seria inútil. Mas ela não menospreza a desmilitarização por causa disso.

Então este é o meu ponto: precisamos fazer alguma coisa já. Muito ajudaria, ao menos, que os críticos das propostas existentes fizessem algo mais do que criticar e oferecessem alternativas concretas, viáveis, ao quanto está posto.