Tenho um jogo que pratico comigo mesmo: especular. Imagino coisas, às vezes absurdas, e me ponho a elucubrar sobre seus desdobramentos. Dia desses, pus-me a matutar sobre a seguinte questão: se eu fosse presidente da República (eleito, tá? legítimo!), e precisasse indicar alguém para uma vaga no Supremo Tribunal Federal, quem seria essa pessoa?
Como se pode ver nos arquivos aqui do blog, e também como afirmei em inúmeras ocasiões, em aulas e palestras, pagamos um preço elevado pela inexistência de um penalista na Suprema Corte. Não se trata de bairrismo, e sim de identificar as cada vez mais frequentes e despudoradas agressões contra a Constituição de 1988, perpetradas por quem deveria defendê-la. Não é apenas uma questão de conhecimento, mas de experiência no campo e de sensibilidade. Até de humanidade. Basta ver que uma mente processualista civil (Teori Zavascki) comandou uma das mais obscenas inconstitucionalidades de que temos notícia: a execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação. Aos que quiserem dizer que a mentalidade processualista civil não tem nada a ver, recomendo que leiam o acórdão e vejam quais foram os argumentos do relator. Formalidades, eficientismo, estatísticas: tudo, menos principiologia penal.
Pensando em um nome para o STF, o primeiro que me vem à mente é o do advogado paranaense Juarez Cirino dos Santos. Maior criminólogo brasileiro, esquerdista convicto, dono de um belíssimo currículo e de uma reputação verdadeiramente ilibada (no sentido lato da palavra e não como aplicada para preenchimento de certos cargos), sua presença na Suprema Corte certamente tiraria todos da zona de conforto. De quebra, o mestre Juarez é de uma simplicidade marcante. Em evento ocorrido aqui em Belém, não faz muito tempo, no qual ele era homenageado, o professor chegou sozinho e, ao encontrar um grupo de pessoas à porta do auditório (era onde eu estava), abriu um largo sorriso e disse: "Boa noite. Eu sou o Juarez". Fosse uns e outros por aí, que não têm um décimo de seu conhecimento e muito menos do seu caráter, teria chegado com um séquito de puxa-sacos.
Ocorre que Juarez já tem 75 anos, o que inviabiliza legalmente a sua indicação ao cargo. Só legalmente, porque ele tem toda a energia necessária para revolucionar aquela corte. Diante disso, acredite, eu me permiti uma longa reflexão sobre o tema, como se realmente precisasse indicar alguém. Gastei um tempo na internet, lendo informações sobre meus possíveis ungidos. E, ao final desse exercício, cheguei a uma conclusão. Eu indicaria:
Vera Regina Pereira de Andrade. Com pós-doutorado em Criminologia e Direito Penal, tem vasta experiência acadêmica nos três eixos da educação superior: ensino, pesquisa e extensão, sendo professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina e também visitante em diversas instituições, inclusive na Espanha, além de pesquisadora do CNPq. E, sim, também uma pessoa muito cordial e acessível.
Sua indicação ajudaria a suprir o déficit de representação feminina no STF, que hoje só tem duas mulheres (que, convenhamos, não fazem lá muita diferença, considerando as decisões proferidas), especialmente pelo conhecido engajamento de Vera de Andrade nas agendas feministas. Mas seu compromisso com a afirmação da cidadania envolve outras lutas e se deu a conhecer em sua valorosa produção científica. Ela traria ventos de humanidade e de busca por igualdade, justamente onde esses ideais são mais necessários.
Vamos brincar de presidente (legítimo!)? Quem seria o seu indicado? Diga o nome e seus motivos para escolhê-lo.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
Multiculturalismo do deboche
Nunca antes vi tantas pessoas defendendo a liberdade de expressão e o direito de sustentar suas convicções e opiniões. Mas essas bandeiras sempre existiram. O que mudou, afinal? Tenho uma hipótese, que compartilho neste momento.
A resposta estaria nas potencialidades trazidas pela internet. Para o bem e para o muito mal, qualquer incluído digital pode (no sentido de estar fisicamente apto a, e não no de ser eticamente legitimado a) defender qualquer ponto de vista e obter um enorme alcance para as suas manifestações. Graças a isso, e em especial à capacidade de aglutinação de interesses comuns, gerando movimentos espontâneos e ampla repercussão pública, aqueles que historicamente sempre reivindicaram liberdades e direitos puderam, enfim, ser escutados e, com isso, ter algumas de suas agendas implementadas.
Esses reivindicantes correspondem às chamadas minorias sociais. Não tenho dúvidas de que, não fosse pela capilaridade proporcionada pelos recursos da internet, muitas pautas defendidas por movimentos sociais seguiriam ignoradas pelos grupos aboletados nas instâncias de poder. Mulheres, negros, LGBT e, até mesmo, trabalhadores não teriam sido ouvidos. Que motivo haveria para a reforma da previdência do governo golpista ter sido barrada, sem sequer chegar aos plenários do Congresso Nacional? Não teriam os congressistas se sentido ameaçados pelos eleitores que, no próximo ano, irão às urnas?
O fato (segundo vejo) é que, agora, o outro lado do balcão passou a postular liberdades e direitos. Se eu fizer uma manifestação séria, ou mesmo uma piada, que possa ser interpretada como machista, racista, homofóbica, pedófila, etc., a reação será poderosa. Posso ter meus apoiadores, mas meus opositores compartilharão à exaustão os prints de tela. Campanhas serão feitas para identificar ou localizar o sujeito. Avisos serão mandados ao empregador, a fim de que o fulano seja posto na rua. Essas coisas têm acontecido. Resulta daí que os canalhas de ontem e de hoje, que sempre foram livres para fazer e dizer tudo o que pensam, agora... pedem liberdades e direitos.
Precisamos refletir. A Igreja Católica permitia liberdade religiosa? Foi receptiva à reforma protestante, que acabou de completar 500 anos? Os brancos são humanos com os negros e indígenas? Os colonizadores foram decentes com os autóctones? Os homens são justos com as mulheres e abriram espaço à população LGBT? Os nacionais são generosos com os imigrantes? Os ricos são amigáveis com os pobres? Os brasileiros do Centro-Sul são respeitosos com os do Norte e Nordeste? Os ditadores permitem dissidências?
A questão me parece muito clara: há grupos que sempre estiveram no poder e o exerceram da maneira mais absoluta e desumana possível. Seus herdeiros e sucessores estão aí, por toda parte, como se vê pelas manifestações nas redes sociais e caixas de comentários dos portais de notícias. Também estão nos governos e no Congresso Nacional, fazendo cultos em prédios públicos, cerceando direitos, debochando das minorias e propondo que se curvem às maiorias. Que, por sinal, nem são maiorias numéricas. Mas uma vez que se vejam pressionadas pelo Big Brother orwelliano da vida real, clamam, exigem liberdades e direitos. Exatamente o que jamais fariam em relação a ninguém.
É por isso que classifico como deboche, o mais rematado cinismo, essa atitude súbita e surpreendentemente pluralista. Porque não há pluralismo algum. Não há tolerância, mas apenas um profundo defensivismo do canalha, que se vê perplexo ante a dificuldade de continuar sendo canalha como sempre foi, já que para ele isso é a coisa mais natural do mundo. São esses que criarão a "ditadura do politicamente correto", a "ideologia de gênero", a "defesa da família" e inúmeros outros chavões. São os obreiros da última hora, que apareceram de repente para defender as liberdades constitucionais, a igualdade e outros valores, dos quais se lembram apenas e tão somente quando se sentem por baixo.
Compete a cada um de nós decidir se aplicaremos essa suposta concepção de liberdade e de justiça. Muitos conhecidos meus defendem que precisamos assegurar os direitos de nossos opositores, inclusive para não descermos ao nível deles. Olho com extrema desconfiança essa postura, por motivos históricos. Para afirmar seus direitos, as mulheres não tiraram nada dos homens. Os homens é que acreditam que seu papel no mundo depende do pisoteio e da exploração sexual das mulheres. Um umbandista jamais tentará impedir um cristão de sê-lo, mas os cristãos têm massacrado há séculos os adeptos de outros credos. Em 2017, umbandistas estão sendo espancados pelo simples fato de andarem nas ruas ou sendo torturados por traficantes evangélicos. A diferença é clara: enquanto uns querem apenas o direito de existir em paz, outros querem seguir oprimindo.
É por isso que travo minha batalha íntima em torno do que fazer neste mundo. Não serei eu a impedir as liberdades dos outros, mas não vou embarcar, por enquanto, nesse discurso de deixar os fascistas à vontade. Se já tivéssemos alcançado níveis razoáveis de igualdade, isso seria um preço a se pagar pela convivência no planeta. Mas enquanto permanecermos nessa tensão entre minorias que querem ser indulgentes com seus algozes, e algozes que só querem uma oportunidade para mais violência e opressão, eu realmente recomendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade, como já aconselhava Thomas Jefferson há mais de dois séculos.
A resposta estaria nas potencialidades trazidas pela internet. Para o bem e para o muito mal, qualquer incluído digital pode (no sentido de estar fisicamente apto a, e não no de ser eticamente legitimado a) defender qualquer ponto de vista e obter um enorme alcance para as suas manifestações. Graças a isso, e em especial à capacidade de aglutinação de interesses comuns, gerando movimentos espontâneos e ampla repercussão pública, aqueles que historicamente sempre reivindicaram liberdades e direitos puderam, enfim, ser escutados e, com isso, ter algumas de suas agendas implementadas.
Esses reivindicantes correspondem às chamadas minorias sociais. Não tenho dúvidas de que, não fosse pela capilaridade proporcionada pelos recursos da internet, muitas pautas defendidas por movimentos sociais seguiriam ignoradas pelos grupos aboletados nas instâncias de poder. Mulheres, negros, LGBT e, até mesmo, trabalhadores não teriam sido ouvidos. Que motivo haveria para a reforma da previdência do governo golpista ter sido barrada, sem sequer chegar aos plenários do Congresso Nacional? Não teriam os congressistas se sentido ameaçados pelos eleitores que, no próximo ano, irão às urnas?
O fato (segundo vejo) é que, agora, o outro lado do balcão passou a postular liberdades e direitos. Se eu fizer uma manifestação séria, ou mesmo uma piada, que possa ser interpretada como machista, racista, homofóbica, pedófila, etc., a reação será poderosa. Posso ter meus apoiadores, mas meus opositores compartilharão à exaustão os prints de tela. Campanhas serão feitas para identificar ou localizar o sujeito. Avisos serão mandados ao empregador, a fim de que o fulano seja posto na rua. Essas coisas têm acontecido. Resulta daí que os canalhas de ontem e de hoje, que sempre foram livres para fazer e dizer tudo o que pensam, agora... pedem liberdades e direitos.
Precisamos refletir. A Igreja Católica permitia liberdade religiosa? Foi receptiva à reforma protestante, que acabou de completar 500 anos? Os brancos são humanos com os negros e indígenas? Os colonizadores foram decentes com os autóctones? Os homens são justos com as mulheres e abriram espaço à população LGBT? Os nacionais são generosos com os imigrantes? Os ricos são amigáveis com os pobres? Os brasileiros do Centro-Sul são respeitosos com os do Norte e Nordeste? Os ditadores permitem dissidências?
A questão me parece muito clara: há grupos que sempre estiveram no poder e o exerceram da maneira mais absoluta e desumana possível. Seus herdeiros e sucessores estão aí, por toda parte, como se vê pelas manifestações nas redes sociais e caixas de comentários dos portais de notícias. Também estão nos governos e no Congresso Nacional, fazendo cultos em prédios públicos, cerceando direitos, debochando das minorias e propondo que se curvem às maiorias. Que, por sinal, nem são maiorias numéricas. Mas uma vez que se vejam pressionadas pelo Big Brother orwelliano da vida real, clamam, exigem liberdades e direitos. Exatamente o que jamais fariam em relação a ninguém.
É por isso que classifico como deboche, o mais rematado cinismo, essa atitude súbita e surpreendentemente pluralista. Porque não há pluralismo algum. Não há tolerância, mas apenas um profundo defensivismo do canalha, que se vê perplexo ante a dificuldade de continuar sendo canalha como sempre foi, já que para ele isso é a coisa mais natural do mundo. São esses que criarão a "ditadura do politicamente correto", a "ideologia de gênero", a "defesa da família" e inúmeros outros chavões. São os obreiros da última hora, que apareceram de repente para defender as liberdades constitucionais, a igualdade e outros valores, dos quais se lembram apenas e tão somente quando se sentem por baixo.
Eu devo ser leniente com pedidos de liberdade de escrever e divulgar coisas como esta? |
É por isso que travo minha batalha íntima em torno do que fazer neste mundo. Não serei eu a impedir as liberdades dos outros, mas não vou embarcar, por enquanto, nesse discurso de deixar os fascistas à vontade. Se já tivéssemos alcançado níveis razoáveis de igualdade, isso seria um preço a se pagar pela convivência no planeta. Mas enquanto permanecermos nessa tensão entre minorias que querem ser indulgentes com seus algozes, e algozes que só querem uma oportunidade para mais violência e opressão, eu realmente recomendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade, como já aconselhava Thomas Jefferson há mais de dois séculos.
sábado, 28 de outubro de 2017
Jogos para perder
Seriados e filmes com temáticas criminais sempre fizeram grande sucesso, porque o público em geral sente atração pelo mundo-cão. Em outubro de 2000, foi lançada a série que revolucionou a linguagem nesse tipo de programa, CSI, posteriormente CSI: Las Vegas, que abriu uma franquia longeva e bem sucedida (e produtos assemelhados, como NCIS), até a fórmula se esgotar. O motivo do sucesso foi apresentar tramas sob um viés explicativo, de base científica. De repente, ao invés de apenas assistir a uma estória, o público se viu levado para dentro da investigação criminal, recebendo explicações didáticas sobre ciências forenses.
Sucesso gera audiência, que gera dinheiro, que gera... novos produtos! Em setembro de 2005 estreou Criminal minds, que explora outro filão, agora o das ciências psi aplicadas ao universo criminal. Outro grande sucesso, permanece em exibição (e também gerou spin-offs). O fato é que, nessas quase duas décadas, desenvolveu-se um público fortemente interessado em programas que exploram o universo do crime e da atividade persecutória por dentro. Se precisávamos dar mais um passo, ele foi dado quando o mundo conheceu a Netflix.
A par da revolução comercial provocada pelos serviços de streaming, a Netflix possui uma proposta audaciosa quanto à qualidade de seus programas originais. Não apenas o investimento é elevado, como existe um claro desejo de explorar temas polêmicos, questões sensíveis e, inclusive, fazer revisão das bagunças que as pessoas adorariam enfiar embaixo do tapete. Foi assim que tiveram a felicíssima ideia das séries documentais. Lançaram Making a murderer e, como se diz hoje em dia, quebraram a internet.
O sucesso da série sobre a possível armação da polícia do Condado de Manitowoc contra Steven Avery rendeu uma anunciada segunda temporada, mas trouxe a reboque vários outros produtos. São tantos, que é difícil listá-los, mas este blog já explorou, além do próprio Making a murderer, Amanda Knox, além de séries que não são do acervo próprio da Netflix, mas que ela exibe, tais como Kids for cash (clique nos links para ler as postagens).
Não cheguei a escrever sobre, mas vi e recomendo fortemente The keepers, sobre o nunca esclarecido assassinato de uma freira que pode ter sido morta por querer revelar um escândalo de pedofilia em uma escola administrada pela Arquidiocese de Baltimore; Deep web, sobre a investigação criminal em torno do suposto criador do Silk Road, sítio utilizado para a prática de diversos crimes; e, claro, o poderoso, célebre e premiado 13ª emenda.
O fato é que esse caldeirão de títulos nos permite um vigoroso mergulho no universo criminal e, se você é iniciado nesse campo, e quer ir além do simples entretenimento, pode aprender muito com eles. Vou incluir na lista a série antológica de drama criminal American crime, do canal AXN, que já está na terceira temporada.
Contudo, as lições aprendidas são profundamente angustiantes. O sistema de justiça criminal dos Estados Unidos é monstruoso. Ele claramente funciona para promover um violento controle sobre minorias sociais, que naquele país são representadas por uma maioria populacional (atualmente), composta por negros, chicanos e outros imigrantes. Uma nação colonizada por brancos de religião puritana aprendeu a ser cruel com aqueles que não considera semelhantes. Para piorar, o individualismo excessivo, o culto por armas de fogo, a privatização das prisões e as políticas de "tolerância zero" e de guerra às drogas, além da deturpação da utilidade da ciência para fins criminais, são ingredientes que tornam o direito estadunidense uma prática corretamente classificável como um jogo. Só que é um jogo no qual você não tem chances de ganhar.
Isso nos leva ao seriado criminal do momento, novamente da Netflix: Mindhunter. Produzido pelo aclamado cineasta David Fincher e pela premiada e respeitada atriz Charlize Theron, a partir do livro do agente do FBI John Douglas, escrito com o pesquisador Mark Olshaker, o programa mostra uma abordagem sobre fatos reais, em torno do nascimento da ciência comportamental como técnica forense, naquela agência. Demonstra o gosto dos americanos por pesquisa empírica, o que é bom, mas sofre a má influência da visão cartesiana de mundo que eles possuem. Eles acreditam ser possível objetivar conceitos, classificações e padrões de comportamento e, com isso, produzir métodos confiáveis de predição de riscos.
Graças a entrevistas com famosos serial killers (na série, há uma cena na qual os personagens decidem usar essa terminologia), o grupo tenta identificar as causas do comportamento criminoso mais violento (a velha obsessão etiológica!) e, com isso, desenvolver manuais para que todo e qualquer policial possa aplicar na sua comunidade e, com isso, possa prevenir crimes, salvar vidas e talvez o mundo. Eles só se esquecem de combinar com o resto do mundo e as coisas não saem exatamente dentro do esperado. Exemplo contundente disso é o recente massacre em Las Vegas, que resultou em 58 mortes e mais de 500 feridos. O atirador Stephen Paddock era um homem branco, de ótima condição financeira, tinha 64 anos (a maioria dos "criminosos" é jovem), sem relações conhecidas com grupos extremistas ou com atividades ilícitas. Era o perfeito cidadão de bem e seria aprovado com louvor em qualquer análise de perfil made in USA.
Para ilustrar como a vida real não cabe nas idealizações e nas simplificações dos sistemas de "justiça" criminal, temos mais uma série documental a recomendar, novamente da Netflix: The confession tapes. São seis histórias reais, nas quais pessoas foram condenadas por homicídios após terem confessado os crimes. Posteriormente, entretanto, elas negaram essas confissões e disseram ter sido induzidas, pelos policiais, a assumir culpas inexistentes.
Situo, por fim, a minha crítica ao sistema estadunidense. Como se pode ver em Making a murderer, em American crime (primeira temporada) e em The confession tapes (refiro-me, em especial, ao episódio 3), tornou-se uma prática absolutamente rotineira e legitimada, nas polícias daquele país, usar técnicas psicológicas, desenvolvidas por causa dos métodos que se veem em Mindhunter e mesmo em Criminal Minds, nas quais o poder público mente, engana, trapaceia, desestabiliza deliberadamente o suspeito, levando-o a uma situação de perturbação mental cuja finalidade é obter uma confissão.
Na Idade Média, considerava-se a confissão como regina probatorum. Para obtê-la, tudo era válido, inclusive a tortura. Se o acusado confessasse, não fariam a menor diferença as circunstâncias dessa confissão. Existe uma lógica estúpida, mística, segundo a qual se uma pessoa admite algo que a prejudica, está falando a verdade. Por isso, ontem como hoje, se o suspeito diz que é culpado, acreditamos. Se alega inocência, duvidamos. Só que o poder público faz de tudo para encontrar um meio de levá-lo à confissão. Ou seja, não existe presunção de inocência, declaradamente uma das principais garantias individuais penais. Embora se diga que o processo se destina a descobrir a verdade, ninguém quer a verdade; querem apenas um culpado. Serve qualquer um, preferencialmente o primeiro suspeito a aparecer.
O que as séries acima mostram é que, até hoje, não evoluímos tanto assim. Apenas substituímos o misticismo religioso pela ilusão da ciência, mas continuamos tão desonestos e crueis como sempre. E isso é um problema particularmente grave nos Estados Unidos, cuja "justiça" criminal é deliberadamente concebida para decidir os processos mediante acordos, sem levar as causas a julgamento. O réu é pressionado de todas as formas a assumir alguma culpa, em troca de uma pena menor. É a aplicação forense da teoria dos jogos, na qual o indivíduo busca sofrer o menor prejuízo possível, mesmo que a custos pesados. O risco de ser condenado à morte, prisão perpétua ou de longuíssima duração, em um sistema com poucas chances de acolhimento das teses defensórias, além de extremamente caro, leva as pessoas a aceitar condenações, muitas vezes porque não podem pagar pelo acesso ao judiciário. E assim a profecia se autorrealiza: disseram que o sujeito era culpado e ele é mesmo, porque confessou. Ele vai para a cadeia por um bom tempo, a tal "justiça" é alcançada e todos se regozijam.
Não duvide: para mim, isso já é uma sociedade distópica o suficiente. Não é o mundo em que desejo viver.
Sucesso gera audiência, que gera dinheiro, que gera... novos produtos! Em setembro de 2005 estreou Criminal minds, que explora outro filão, agora o das ciências psi aplicadas ao universo criminal. Outro grande sucesso, permanece em exibição (e também gerou spin-offs). O fato é que, nessas quase duas décadas, desenvolveu-se um público fortemente interessado em programas que exploram o universo do crime e da atividade persecutória por dentro. Se precisávamos dar mais um passo, ele foi dado quando o mundo conheceu a Netflix.
A par da revolução comercial provocada pelos serviços de streaming, a Netflix possui uma proposta audaciosa quanto à qualidade de seus programas originais. Não apenas o investimento é elevado, como existe um claro desejo de explorar temas polêmicos, questões sensíveis e, inclusive, fazer revisão das bagunças que as pessoas adorariam enfiar embaixo do tapete. Foi assim que tiveram a felicíssima ideia das séries documentais. Lançaram Making a murderer e, como se diz hoje em dia, quebraram a internet.
O sucesso da série sobre a possível armação da polícia do Condado de Manitowoc contra Steven Avery rendeu uma anunciada segunda temporada, mas trouxe a reboque vários outros produtos. São tantos, que é difícil listá-los, mas este blog já explorou, além do próprio Making a murderer, Amanda Knox, além de séries que não são do acervo próprio da Netflix, mas que ela exibe, tais como Kids for cash (clique nos links para ler as postagens).
Não cheguei a escrever sobre, mas vi e recomendo fortemente The keepers, sobre o nunca esclarecido assassinato de uma freira que pode ter sido morta por querer revelar um escândalo de pedofilia em uma escola administrada pela Arquidiocese de Baltimore; Deep web, sobre a investigação criminal em torno do suposto criador do Silk Road, sítio utilizado para a prática de diversos crimes; e, claro, o poderoso, célebre e premiado 13ª emenda.
O fato é que esse caldeirão de títulos nos permite um vigoroso mergulho no universo criminal e, se você é iniciado nesse campo, e quer ir além do simples entretenimento, pode aprender muito com eles. Vou incluir na lista a série antológica de drama criminal American crime, do canal AXN, que já está na terceira temporada.
Contudo, as lições aprendidas são profundamente angustiantes. O sistema de justiça criminal dos Estados Unidos é monstruoso. Ele claramente funciona para promover um violento controle sobre minorias sociais, que naquele país são representadas por uma maioria populacional (atualmente), composta por negros, chicanos e outros imigrantes. Uma nação colonizada por brancos de religião puritana aprendeu a ser cruel com aqueles que não considera semelhantes. Para piorar, o individualismo excessivo, o culto por armas de fogo, a privatização das prisões e as políticas de "tolerância zero" e de guerra às drogas, além da deturpação da utilidade da ciência para fins criminais, são ingredientes que tornam o direito estadunidense uma prática corretamente classificável como um jogo. Só que é um jogo no qual você não tem chances de ganhar.
Isso nos leva ao seriado criminal do momento, novamente da Netflix: Mindhunter. Produzido pelo aclamado cineasta David Fincher e pela premiada e respeitada atriz Charlize Theron, a partir do livro do agente do FBI John Douglas, escrito com o pesquisador Mark Olshaker, o programa mostra uma abordagem sobre fatos reais, em torno do nascimento da ciência comportamental como técnica forense, naquela agência. Demonstra o gosto dos americanos por pesquisa empírica, o que é bom, mas sofre a má influência da visão cartesiana de mundo que eles possuem. Eles acreditam ser possível objetivar conceitos, classificações e padrões de comportamento e, com isso, produzir métodos confiáveis de predição de riscos.
Graças a entrevistas com famosos serial killers (na série, há uma cena na qual os personagens decidem usar essa terminologia), o grupo tenta identificar as causas do comportamento criminoso mais violento (a velha obsessão etiológica!) e, com isso, desenvolver manuais para que todo e qualquer policial possa aplicar na sua comunidade e, com isso, possa prevenir crimes, salvar vidas e talvez o mundo. Eles só se esquecem de combinar com o resto do mundo e as coisas não saem exatamente dentro do esperado. Exemplo contundente disso é o recente massacre em Las Vegas, que resultou em 58 mortes e mais de 500 feridos. O atirador Stephen Paddock era um homem branco, de ótima condição financeira, tinha 64 anos (a maioria dos "criminosos" é jovem), sem relações conhecidas com grupos extremistas ou com atividades ilícitas. Era o perfeito cidadão de bem e seria aprovado com louvor em qualquer análise de perfil made in USA.
Para ilustrar como a vida real não cabe nas idealizações e nas simplificações dos sistemas de "justiça" criminal, temos mais uma série documental a recomendar, novamente da Netflix: The confession tapes. São seis histórias reais, nas quais pessoas foram condenadas por homicídios após terem confessado os crimes. Posteriormente, entretanto, elas negaram essas confissões e disseram ter sido induzidas, pelos policiais, a assumir culpas inexistentes.
Situo, por fim, a minha crítica ao sistema estadunidense. Como se pode ver em Making a murderer, em American crime (primeira temporada) e em The confession tapes (refiro-me, em especial, ao episódio 3), tornou-se uma prática absolutamente rotineira e legitimada, nas polícias daquele país, usar técnicas psicológicas, desenvolvidas por causa dos métodos que se veem em Mindhunter e mesmo em Criminal Minds, nas quais o poder público mente, engana, trapaceia, desestabiliza deliberadamente o suspeito, levando-o a uma situação de perturbação mental cuja finalidade é obter uma confissão.
Na Idade Média, considerava-se a confissão como regina probatorum. Para obtê-la, tudo era válido, inclusive a tortura. Se o acusado confessasse, não fariam a menor diferença as circunstâncias dessa confissão. Existe uma lógica estúpida, mística, segundo a qual se uma pessoa admite algo que a prejudica, está falando a verdade. Por isso, ontem como hoje, se o suspeito diz que é culpado, acreditamos. Se alega inocência, duvidamos. Só que o poder público faz de tudo para encontrar um meio de levá-lo à confissão. Ou seja, não existe presunção de inocência, declaradamente uma das principais garantias individuais penais. Embora se diga que o processo se destina a descobrir a verdade, ninguém quer a verdade; querem apenas um culpado. Serve qualquer um, preferencialmente o primeiro suspeito a aparecer.
O que as séries acima mostram é que, até hoje, não evoluímos tanto assim. Apenas substituímos o misticismo religioso pela ilusão da ciência, mas continuamos tão desonestos e crueis como sempre. E isso é um problema particularmente grave nos Estados Unidos, cuja "justiça" criminal é deliberadamente concebida para decidir os processos mediante acordos, sem levar as causas a julgamento. O réu é pressionado de todas as formas a assumir alguma culpa, em troca de uma pena menor. É a aplicação forense da teoria dos jogos, na qual o indivíduo busca sofrer o menor prejuízo possível, mesmo que a custos pesados. O risco de ser condenado à morte, prisão perpétua ou de longuíssima duração, em um sistema com poucas chances de acolhimento das teses defensórias, além de extremamente caro, leva as pessoas a aceitar condenações, muitas vezes porque não podem pagar pelo acesso ao judiciário. E assim a profecia se autorrealiza: disseram que o sujeito era culpado e ele é mesmo, porque confessou. Ele vai para a cadeia por um bom tempo, a tal "justiça" é alcançada e todos se regozijam.
Não duvide: para mim, isso já é uma sociedade distópica o suficiente. Não é o mundo em que desejo viver.
quinta-feira, 26 de outubro de 2017
Decida quem você é
A facilidade de externar opiniões a qualquer público, graças à internet, trouxe à tona uma população de psicopatas convictos. Já estamos tão acostumados a isso que, possivelmente, nem nos damos mais conta do quão errado e doentio isso é. De minha parte, não sei se por autocrítica ou se por ter voltado à terapia, tenho tentado manter alguma coerência e não disseminar discursos de ódio, haja vista que os condeno nos outros.
Ontem, foi divulgado que o presidente usurpador e para sempre golpista Michel Temer sofreu uma obstrução urinária, cuja causa mais comum é o aumento da próstata. Rapidamente, começaram a surgir boatos e, inclusive, especulações sobre câncer. Muitos comemoraram.
Mesmo tendo ódio ao PT ou às esquerdas, uma pessoa que conservasse um mínimo de lucidez, ao olhar o que Temer fez em apenas um ano e meio, teria todos os motivos do mundo para odiá-lo e para querer vê-lo apeado de todo e qualquer cargo e de toda e qualquer convivência comunitária. Mas desejar-lhe o mal, a doença, a morte, é mesmo uma atitude adequada? Nem falo por ele. A pergunta seria descer a esse padrão é bom para você?
Já convivi com câncer na família e, honestamente, não acho que isso seja motivo de brincadeira. Não desejo isso para ninguém. Nem mesmo para Temer. Ou para Gilmar Mendes. Ou para qualquer um desses aí. Não quero deixar de ser quem sou para mergulhar nessa espiral de violência. Se tudo desabar, quero ao menos ter a possibilidade de dizer que continuei sendo a pessoa que era, sem me deixar arrastar para esse lodaçal. Descer ao nível dos fascitoides de todos os matizes da internet.
Quero Temer e toda a sua camarilha alijados dos poderes públicos para sempre. Quero-os responsabilizados por tudo que fizeram. De acordo com o ordenamento jurídico vigente. E o resto não me cabe. Xô, caô.
Ontem, foi divulgado que o presidente usurpador e para sempre golpista Michel Temer sofreu uma obstrução urinária, cuja causa mais comum é o aumento da próstata. Rapidamente, começaram a surgir boatos e, inclusive, especulações sobre câncer. Muitos comemoraram.
Mesmo tendo ódio ao PT ou às esquerdas, uma pessoa que conservasse um mínimo de lucidez, ao olhar o que Temer fez em apenas um ano e meio, teria todos os motivos do mundo para odiá-lo e para querer vê-lo apeado de todo e qualquer cargo e de toda e qualquer convivência comunitária. Mas desejar-lhe o mal, a doença, a morte, é mesmo uma atitude adequada? Nem falo por ele. A pergunta seria descer a esse padrão é bom para você?
Já convivi com câncer na família e, honestamente, não acho que isso seja motivo de brincadeira. Não desejo isso para ninguém. Nem mesmo para Temer. Ou para Gilmar Mendes. Ou para qualquer um desses aí. Não quero deixar de ser quem sou para mergulhar nessa espiral de violência. Se tudo desabar, quero ao menos ter a possibilidade de dizer que continuei sendo a pessoa que era, sem me deixar arrastar para esse lodaçal. Descer ao nível dos fascitoides de todos os matizes da internet.
Quero Temer e toda a sua camarilha alijados dos poderes públicos para sempre. Quero-os responsabilizados por tudo que fizeram. De acordo com o ordenamento jurídico vigente. E o resto não me cabe. Xô, caô.
sábado, 9 de setembro de 2017
Maioridade
Na tarde da quinta-feira, 9 de setembro de 1999, pelas mãos de minha amiga Bárbara Dias, entrei em uma sala de aula, pela primeira vez como professor. Bárbara ia se mudar para o Rio de Janeiro, a fim de cursar doutorado, e me indicou para substituí-la em suas três turmas do curso de Tecnologia em Processamento de Dados do Centro Universitário do Pará (CESUPA). A disciplina era Noções de Direito, Legislação e Ética. Minha contratação foi realizada pela saudosa Profa. Conceição Fiúza de Mello, a quem eu e minha esposa muito devemos, por sua permanente e carinhosa preocupação conosco. Além dela, também sou muito reconhecido à diretora da Área de Ciências Sociais Aplicadas, Prof. Maria Lúcia Santos.
Foi assim que comecei minha carreira docente. Um pouco depois, fiz um processo seletivo para professor substituto da Universidade Federal do Pará, oficialmente para orientar no Núcleo de Prática Jurídica (NPJ). Contudo, meu objetivo era outro e foi realizado quando dividiram minha carga horária entre a orientação dos estagiários e a sala de aula. Assumi duas turmas de Direito Penal e, com isso, tornei-me exatamente o que eu queria ser.
Em janeiro de 2000, recebi um telefonema que eu esperava muito. A primeira coordenadora do curso de Direito do CESUPA, Profa. Angelina Panzutti, propunha-me assumir as duas primeiras turmas de Direito Penal da instituição. Imaginem o que respondi! Graças a isso, na mesma época, lecionei a disciplina dos meus sonhos nas duas instituições.
Com o passar do tempo, sendo temporário o vínculo com a UFPA, fiquei exclusivamente no CESUPA e tem sido assim desde então. Nos primeiros anos, passei por todas as turmas existentes, participei da criação de seu NPJ e das atividades do convênio com a Pastoral Carcerária, visitei a ilha de Jutuba em um projeto de extensão que antecedeu o atual Ilhas Legais, ajudei na coordenação, etc. Vivi cada fase da história do curso, que cresceu e se consolidou. Já no terceiro ano eu não podia dar conta da demanda, então vieram os professores seguintes para a minha disciplina, começando por Alexandre Rodrigues.
E a história seguiu seu curso. Quando cheguei, eu me fascinava ante o fato de ser colega daqueles que haviam sido meus professores, dos mais queridos, como Angelina e Haroldo Guilherme. Tive o privilégio de ser colega, também, de mestres icônicos, como o inigualável Ney Sardinha. E com o passar dos anos, comecei a ser colega de alguns haviam sido meus alunos. Atualmente, nosso corpo docente possui 10 deles, incluindo Eduardo Lima Filho e Adrian Silva, que foram meus monitores. Houve outros, que não estão mais conosco.
Hoje completo 18 anos de docência ininterrupta, com todo o desejo e disposição de prosseguir até quando corpo e mente me permitirem. Tenho estudado, expandido fontes, interagido com pessoas novas, diversificado técnicas, tudo em busca de aprimoramento pessoal, que possa servir para qualificar o meu trabalho e me permitir falar a língua das atuais gerações. Educar é desafiador e trabalhoso. Muitas vezes me questionei, e ainda me questiono, se estou à altura. Mas como disse em um evento na semana passada, ser professor é ter um pé na esperança. Então cultivo a minha de ser apto para essa missão tão singular. O resto é trabalho, algo de que não tenho medo. Principalmente quando tenho, diante de mim, alunos que dão sentido, cor e vida a tudo isso.
Não podendo agradecer nominalmente a todos que me ajudaram na caminhada, deixo para cada um deles um abraço carinhoso. Pois gratidão significa muito para mim. Não poderia, contudo, omitir nomes como Sandro Simões, nosso coordenador durante os anos de consolidação do curso; Ana Darwich, orientadora no mestrado, e o do Prof. Sérgio Mendes, que ao apertar minha mão e me chamar pelo nome, sem jamais me ter visto antes, por ocasião da comemoração do dia dos professores de 1999, um mês após minha chegada, deu-me a certeza de que eu estava no time.
O maior agradecimento, contudo, vai para as gerações de alunos que se sucederam ao longo desses 18 anos. Afinal, o que me torna professor não é um contrato, mas a relação estabelecida com os jovens de todas as idades que passaram por mim. Eles me transformaram e me deram um sentido para a vida. Por causa disso, palavras nunca seriam suficientes. Só posso tentar fazer algum bem para os atuais e os futuros.
Foi assim que comecei minha carreira docente. Um pouco depois, fiz um processo seletivo para professor substituto da Universidade Federal do Pará, oficialmente para orientar no Núcleo de Prática Jurídica (NPJ). Contudo, meu objetivo era outro e foi realizado quando dividiram minha carga horária entre a orientação dos estagiários e a sala de aula. Assumi duas turmas de Direito Penal e, com isso, tornei-me exatamente o que eu queria ser.
Em janeiro de 2000, recebi um telefonema que eu esperava muito. A primeira coordenadora do curso de Direito do CESUPA, Profa. Angelina Panzutti, propunha-me assumir as duas primeiras turmas de Direito Penal da instituição. Imaginem o que respondi! Graças a isso, na mesma época, lecionei a disciplina dos meus sonhos nas duas instituições.
Com o passar do tempo, sendo temporário o vínculo com a UFPA, fiquei exclusivamente no CESUPA e tem sido assim desde então. Nos primeiros anos, passei por todas as turmas existentes, participei da criação de seu NPJ e das atividades do convênio com a Pastoral Carcerária, visitei a ilha de Jutuba em um projeto de extensão que antecedeu o atual Ilhas Legais, ajudei na coordenação, etc. Vivi cada fase da história do curso, que cresceu e se consolidou. Já no terceiro ano eu não podia dar conta da demanda, então vieram os professores seguintes para a minha disciplina, começando por Alexandre Rodrigues.
E a história seguiu seu curso. Quando cheguei, eu me fascinava ante o fato de ser colega daqueles que haviam sido meus professores, dos mais queridos, como Angelina e Haroldo Guilherme. Tive o privilégio de ser colega, também, de mestres icônicos, como o inigualável Ney Sardinha. E com o passar dos anos, comecei a ser colega de alguns haviam sido meus alunos. Atualmente, nosso corpo docente possui 10 deles, incluindo Eduardo Lima Filho e Adrian Silva, que foram meus monitores. Houve outros, que não estão mais conosco.
Hoje completo 18 anos de docência ininterrupta, com todo o desejo e disposição de prosseguir até quando corpo e mente me permitirem. Tenho estudado, expandido fontes, interagido com pessoas novas, diversificado técnicas, tudo em busca de aprimoramento pessoal, que possa servir para qualificar o meu trabalho e me permitir falar a língua das atuais gerações. Educar é desafiador e trabalhoso. Muitas vezes me questionei, e ainda me questiono, se estou à altura. Mas como disse em um evento na semana passada, ser professor é ter um pé na esperança. Então cultivo a minha de ser apto para essa missão tão singular. O resto é trabalho, algo de que não tenho medo. Principalmente quando tenho, diante de mim, alunos que dão sentido, cor e vida a tudo isso.
Não podendo agradecer nominalmente a todos que me ajudaram na caminhada, deixo para cada um deles um abraço carinhoso. Pois gratidão significa muito para mim. Não poderia, contudo, omitir nomes como Sandro Simões, nosso coordenador durante os anos de consolidação do curso; Ana Darwich, orientadora no mestrado, e o do Prof. Sérgio Mendes, que ao apertar minha mão e me chamar pelo nome, sem jamais me ter visto antes, por ocasião da comemoração do dia dos professores de 1999, um mês após minha chegada, deu-me a certeza de que eu estava no time.
O maior agradecimento, contudo, vai para as gerações de alunos que se sucederam ao longo desses 18 anos. Afinal, o que me torna professor não é um contrato, mas a relação estabelecida com os jovens de todas as idades que passaram por mim. Eles me transformaram e me deram um sentido para a vida. Por causa disso, palavras nunca seriam suficientes. Só posso tentar fazer algum bem para os atuais e os futuros.
quinta-feira, 7 de setembro de 2017
Apenas um feriado
Hoje se comemora o dia da independência do Brasil. Um evento com significado mais histórico do que prático, eis que jamais fomos independentes de verdade. Saímos da colonização em sentido estrito em relação a Portugal para sermos colônia de fato da Inglaterra e, no século XX, dos Estados Unidos ― neste caso, com o acréscimo da colonização mental também, em que nos colocamos com pulinhos de alegria.
Nestes tempos em que usurpadores do poder político estão vendendo o país inteiro com toda a pressa, que independência poderíamos comemorar?
Há alguma coisa para comemorar, além de um dia de ócio?
Nestes tempos em que usurpadores do poder político estão vendendo o país inteiro com toda a pressa, que independência poderíamos comemorar?
Há alguma coisa para comemorar, além de um dia de ócio?
Aborrecimento recorrente
A cerca de 50 metros de minha casa, dobrando a esquina, há um poste. Aboletado nele, um transformador cujo esporte parece ser dar defeito. Este ano, já perdi a conta das vezes que o nojento pegou fogo ― a última, pouco mais de dois dias atrás, na noite de segunda-feira. Ontem à noite não houve fogo, mas novamente uma fase caiu, deixando um quarteirão às escuras. Minha casa foi atingida apenas parcialmente. Por ocasião do conserto, no entanto, é claro que o fornecimento de energia precisa ser suspenso. Graças a isso, em meio a um calor danado, tivemos uma madrugada difícil. E as famílias que desde o começo ficaram totalmente no escuro passaram sufoco maior.
Na segunda-feira, devo ter sido o primeiro a telefonar pedindo o conserto. Foram quase duas horas para o pessoal da manutenção chegar. O reparo em si não demora muito, mas deve ser feito com muita incompetência, ou com material de má qualidade, ou ambas as coisas, para aguentar só dois dias.
Nós, brasileiros, somos aviltados cotidianamente. Nosso abastecimento de energia é ruim, assim como o de água, telefonia móvel e celular, internet, TV a cabo, etc., o que não nos livra de pagar caro pelos serviços, inclusive mais caro do que em qualquer outro país do mundo. Isso se soma à malha viária ruim, policiamento ruim, fiscalização de trânsito ruim, serviços públicos em geral deficitários e por aí vai. E aceitamos isso. Porque, se não aceitássemos, alguma coisa concreta já teria acontecido para mudar o cenário.
No caso que inspirou esta postagem, temos um problema adicional, que se chama Rede CELPA, a concessionária de energia que enlouquece os paraenses com seus péssimos serviços, cobranças abusivas e um esporte bizarro: acusar as pessoas de desvio de energia. Muitas acusações são verídicas, claro, mas algumas situações beiram a desfaçatez. Sei disso porque a empresa é hoje, com folga, a mais demandada no judiciário paraense. Juízes reclamam que alguns órgãos jurisdicionais estão virando quase serviços de atendimento ao consumidor da CELPA, de tanto que se ocupam dela. Já ouvi que há juizados especiais, em Belém, em que 70% do acervo processual envolve a dita cuja.
Era hora de o poder público tomar medidas concretas contra a empresa, mas é claro que nada acontece. No mínimo, porque o grupo político que formalmente administra o Estado é o mesmo, inclusive com vários dos mesmos atores, que em 1998 vendeu a CELPA à iniciativa privada a preço vil. Reza a lenda ― e eu obviamente acredito ― que para fazer caixa de campanha.
O fato é que o povo nunca passou bem após a privatização, a despeito da cortina de fumaça lançada com o argumento de expansão da rede, investimentos em infraestrutura, etc. Lógico que houve investimentos! Mesmo no Brasil, seria impossível não haver. Mas eles serviram para aumentar o número de clientes ou, efetivamente, em nome da satisfação desse público?
De tudo isso resulta bastante desesperança em relação ao transformador que avisto aqui do meu quarto. Ele deve continuar iluminando as noites com fogo, ao mesmo tempo em que escurecendo os lares e expondo-os ao risco de prejuízos secundários, como danos a aparelhos eletro-eletrônicos, que a CELPA sempre dá um jeito de dizer que não precisa indenizar por falta de comprovação de causalidade.
Abaixo, o link para publicação do Sindicato dos Urbanitários do Pará, com dados concretos, inclusive este: a Rede CELPA está na 62ª colocação no ranking das concessionárias de energia, quanto à satisfação do consumidor. Entre 63! Por aqui, brincamos que o Pará é tão ruim que não consegue nem ficar em último! É sempre penúltimo, naquilo em que precisamos que estivesse entre os primeiros.
Na segunda-feira, devo ter sido o primeiro a telefonar pedindo o conserto. Foram quase duas horas para o pessoal da manutenção chegar. O reparo em si não demora muito, mas deve ser feito com muita incompetência, ou com material de má qualidade, ou ambas as coisas, para aguentar só dois dias.
Nós, brasileiros, somos aviltados cotidianamente. Nosso abastecimento de energia é ruim, assim como o de água, telefonia móvel e celular, internet, TV a cabo, etc., o que não nos livra de pagar caro pelos serviços, inclusive mais caro do que em qualquer outro país do mundo. Isso se soma à malha viária ruim, policiamento ruim, fiscalização de trânsito ruim, serviços públicos em geral deficitários e por aí vai. E aceitamos isso. Porque, se não aceitássemos, alguma coisa concreta já teria acontecido para mudar o cenário.
No caso que inspirou esta postagem, temos um problema adicional, que se chama Rede CELPA, a concessionária de energia que enlouquece os paraenses com seus péssimos serviços, cobranças abusivas e um esporte bizarro: acusar as pessoas de desvio de energia. Muitas acusações são verídicas, claro, mas algumas situações beiram a desfaçatez. Sei disso porque a empresa é hoje, com folga, a mais demandada no judiciário paraense. Juízes reclamam que alguns órgãos jurisdicionais estão virando quase serviços de atendimento ao consumidor da CELPA, de tanto que se ocupam dela. Já ouvi que há juizados especiais, em Belém, em que 70% do acervo processual envolve a dita cuja.
Era hora de o poder público tomar medidas concretas contra a empresa, mas é claro que nada acontece. No mínimo, porque o grupo político que formalmente administra o Estado é o mesmo, inclusive com vários dos mesmos atores, que em 1998 vendeu a CELPA à iniciativa privada a preço vil. Reza a lenda ― e eu obviamente acredito ― que para fazer caixa de campanha.
O fato é que o povo nunca passou bem após a privatização, a despeito da cortina de fumaça lançada com o argumento de expansão da rede, investimentos em infraestrutura, etc. Lógico que houve investimentos! Mesmo no Brasil, seria impossível não haver. Mas eles serviram para aumentar o número de clientes ou, efetivamente, em nome da satisfação desse público?
De tudo isso resulta bastante desesperança em relação ao transformador que avisto aqui do meu quarto. Ele deve continuar iluminando as noites com fogo, ao mesmo tempo em que escurecendo os lares e expondo-os ao risco de prejuízos secundários, como danos a aparelhos eletro-eletrônicos, que a CELPA sempre dá um jeito de dizer que não precisa indenizar por falta de comprovação de causalidade.
Abaixo, o link para publicação do Sindicato dos Urbanitários do Pará, com dados concretos, inclusive este: a Rede CELPA está na 62ª colocação no ranking das concessionárias de energia, quanto à satisfação do consumidor. Entre 63! Por aqui, brincamos que o Pará é tão ruim que não consegue nem ficar em último! É sempre penúltimo, naquilo em que precisamos que estivesse entre os primeiros.
http://www.urbanitarios-pa.org.br/index.php/noticias/1499-19-anos-de-privatizacao-da-celpa
terça-feira, 5 de setembro de 2017
Anotações da rehab
Faz pouco mais de um dia e meio que desativei minha conta no Facebook e... o mundo não se acabou, como diria o choro de Assis Valente, de 1938. Tudo segue como antes, como sabíamos que seria.
Não há ansiedade, apenas hábitos ainda não ressignificados. Ainda pego o telefone de repente, mas quando olho o aparelho percebo que não há nenhuma atualização para ver. Se estou à toa, acesso um portal de notícias e vejo o que há.
Dei-me conta de que, acostumado a ficar de cara para o computador por horas a fio, posso usar esse tempo para ler um sem-número de arquivos em .pdf que tenho. Acabei de aumentar o acervo. Logo, esta moratória pode me ajudar bastante.
Vamos em frente.
Não há ansiedade, apenas hábitos ainda não ressignificados. Ainda pego o telefone de repente, mas quando olho o aparelho percebo que não há nenhuma atualização para ver. Se estou à toa, acesso um portal de notícias e vejo o que há.
Dei-me conta de que, acostumado a ficar de cara para o computador por horas a fio, posso usar esse tempo para ler um sem-número de arquivos em .pdf que tenho. Acabei de aumentar o acervo. Logo, esta moratória pode me ajudar bastante.
Vamos em frente.
domingo, 3 de setembro de 2017
Hoje eu saí do Facebook
Não me considero viciado em internet, embora deva reconhecer que passo tempo demais nela. Alterno leituras dos noticiários e pesquisas de interesse acadêmico-profissional com o uso da mais famosa rede social. Na verdade, ela foi tão naturalizada em minha vida que é o primeiro site normalmente acessado. Ligo o computador e vou me atualizar antes de fazer qualquer outra coisa. Isso já me custou um tempo precioso, em momentos bem mais atarefados do que o atual.
Tenho uma regra, contudo: manter conta em uma única rede social. Quando todo mundo começou a falar em Facebook, eu me mantive no Orkut, até ficar evidente que a rede pioneira estava com os dias contados. Então migrei para a propriedade de Zuckerberg e deixei de usar o Orkut. Não tenho conta no Twitter, porque sou prolixo demais para 140 caracteres, nem no Instagram, que é mais visual. Sempre fui avesso a essa bobagem de viver postando fotos pessoais. Assim como tenho horror a postar sobre cada passo que dou. Há outras redes sociais, mas nem sei quais são.
Acho que as redes sociais cumprem uma função importante: preservam vínculos, fazem-nos reencontrar pessoas que o tempo tirou de nosso convívio, lembram dos aniversários (!!!), etc. Sempre considerei esse aspecto humano muito relevante. Mas elas também permitem que, à simples navegação, deparemo-nos com notícias, recomendações culturais, indicação de estudos e um monte de outras informações de nosso interesse, que simplesmente surgem ante nossos olhos. Mas há um preço, que vai muito além do tempo perdido.
O mundo enlouqueceu. As pessoas estão furiosas e intolerantes em um novo nível, porque como a internet dá voz a qualquer pessoa, encolhida em seu cantinho, qualquer fulano pacato tem a oportunidade de virar um petardo virtual. E vira.
Antes, tínhamos problemas na internet por causa de indivíduos que não gostavam de nós. Tive muitos conflitos com isso aqui no blog, em seus primeiros anos. Conteúdo público, o sujeito lê, não gosta e vem de lá com paus e pedras. Por isso, minha conta no Facebook estava configurada para que minhas publicações fossem vistas apenas por meus amigos. Todavia, com o tempo, começaram os problemas também com estes ― lembrando que contato do Facebook não significa amigo de verdade.
Atritei muito com contatos cujas ideias eram diametralmente opostas, normalmente no campo político. As contendas por minhas posições garantistas no direito penal também eram um fator recorrente. Mas, de uns tempos para cá, avolumaram-se as discórdias com os amigos, amigos mesmo. Gente que eu considerava estar no mesmo lugar ideológico ou sentimental que eu. E os assuntos polêmicos se diversificaram e expandiram. Briga-se por gosto musical, pelas séries a que se assiste, obviamente por política (em um país polarizado) e, cada vez mais, pela eclosão de discursos que antes não tinham a necessária visibilidade.
Hoje, todo mundo usa as mesmas técnicas para defender seus pontos de vista. E a pior delas talvez seja a convicção de se estar do lado certo. Estamos divididos entre nós (os puros e inteligentes) e eles (os ímpios e idiotas). Não importa se você é de esquerda ou de direita, religioso ou ateu, casto ou putanheiro: há necessidade de anulação do outro. E questionamentos servem apenas para confirmar que o outro tem razão. Expor-se virou uma armadilha, porque qualquer retórica confirma que você caiu nas sombras. Daí que eu cansei.
Há muito tempo considerei pela primeira vez sair do Facebook, mas fui ficando, por gostar da sacanagem. Resisti a muitos momentos em que pensei nisso. Hoje, entretanto, decidi dar um tempo. Sei que é temporário, porque sentirei falta de muitas coisas. Mas percebi que já estava me fazendo mal. A facilidade trazida pela internet nos torna impulsivos e eu detesto gente impulsiva. Logo, não posso sê-lo. Falhei nesse e em outros sentidos várias vezes, apenas porque era fácil. Por outro lado, vi manifestações de pessoas queridas que me encheram de tristeza. Apenas porque elas estavam publicadas ali.
Então hoje saí do Facebook, o que estou considerando um experimento psicológico pessoal. É uma desintoxicação. Estou na rehab. Preciso me recordar de como era a vida antes disso tudo. Reaprender como era não ter tantas informações, esquecer aniversários (ou me lembrar espontaneamente). Deixar de compartilhar coisas que deveriam ser íntimas. Preciso ter trabalho para me comunicar com as pessoas e, com isso, pensar duas vezes antes de fazê-lo. Perceber que não tenho como publicar aquela provocação a esta ou aquela pessoa ou talvez a todo mundo. Como ensinou Barbárvore, personagem de Tolkien em O senhor dos aneis, os ents levam muito tempo para falar qualquer coisa, por isso aprenderam a falar apenas quando havia algo que valia a pena ser dito.
O Facebook me custou até o blog. Pela maior capacidade de disseminação e imediatidade lá, deixei de publicar muita coisa aqui. Então esta é uma chance de tentar o caminho oposto. Não morri nem me calei. Posso estar apenas qualificando as minhas ideias neste ambiente doméstico para mim. Enfim, para saber, só fazendo. Por isso comecei. A experiência pode durar um dia, um mês, um ano ou sei lá. Não importa. Não tenho contas a prestar e meu compromisso é com minha própria paz.
Tenho uma regra, contudo: manter conta em uma única rede social. Quando todo mundo começou a falar em Facebook, eu me mantive no Orkut, até ficar evidente que a rede pioneira estava com os dias contados. Então migrei para a propriedade de Zuckerberg e deixei de usar o Orkut. Não tenho conta no Twitter, porque sou prolixo demais para 140 caracteres, nem no Instagram, que é mais visual. Sempre fui avesso a essa bobagem de viver postando fotos pessoais. Assim como tenho horror a postar sobre cada passo que dou. Há outras redes sociais, mas nem sei quais são.
Acho que as redes sociais cumprem uma função importante: preservam vínculos, fazem-nos reencontrar pessoas que o tempo tirou de nosso convívio, lembram dos aniversários (!!!), etc. Sempre considerei esse aspecto humano muito relevante. Mas elas também permitem que, à simples navegação, deparemo-nos com notícias, recomendações culturais, indicação de estudos e um monte de outras informações de nosso interesse, que simplesmente surgem ante nossos olhos. Mas há um preço, que vai muito além do tempo perdido.
O mundo enlouqueceu. As pessoas estão furiosas e intolerantes em um novo nível, porque como a internet dá voz a qualquer pessoa, encolhida em seu cantinho, qualquer fulano pacato tem a oportunidade de virar um petardo virtual. E vira.
Antes, tínhamos problemas na internet por causa de indivíduos que não gostavam de nós. Tive muitos conflitos com isso aqui no blog, em seus primeiros anos. Conteúdo público, o sujeito lê, não gosta e vem de lá com paus e pedras. Por isso, minha conta no Facebook estava configurada para que minhas publicações fossem vistas apenas por meus amigos. Todavia, com o tempo, começaram os problemas também com estes ― lembrando que contato do Facebook não significa amigo de verdade.
Atritei muito com contatos cujas ideias eram diametralmente opostas, normalmente no campo político. As contendas por minhas posições garantistas no direito penal também eram um fator recorrente. Mas, de uns tempos para cá, avolumaram-se as discórdias com os amigos, amigos mesmo. Gente que eu considerava estar no mesmo lugar ideológico ou sentimental que eu. E os assuntos polêmicos se diversificaram e expandiram. Briga-se por gosto musical, pelas séries a que se assiste, obviamente por política (em um país polarizado) e, cada vez mais, pela eclosão de discursos que antes não tinham a necessária visibilidade.
Hoje, todo mundo usa as mesmas técnicas para defender seus pontos de vista. E a pior delas talvez seja a convicção de se estar do lado certo. Estamos divididos entre nós (os puros e inteligentes) e eles (os ímpios e idiotas). Não importa se você é de esquerda ou de direita, religioso ou ateu, casto ou putanheiro: há necessidade de anulação do outro. E questionamentos servem apenas para confirmar que o outro tem razão. Expor-se virou uma armadilha, porque qualquer retórica confirma que você caiu nas sombras. Daí que eu cansei.
Há muito tempo considerei pela primeira vez sair do Facebook, mas fui ficando, por gostar da sacanagem. Resisti a muitos momentos em que pensei nisso. Hoje, entretanto, decidi dar um tempo. Sei que é temporário, porque sentirei falta de muitas coisas. Mas percebi que já estava me fazendo mal. A facilidade trazida pela internet nos torna impulsivos e eu detesto gente impulsiva. Logo, não posso sê-lo. Falhei nesse e em outros sentidos várias vezes, apenas porque era fácil. Por outro lado, vi manifestações de pessoas queridas que me encheram de tristeza. Apenas porque elas estavam publicadas ali.
Então hoje saí do Facebook, o que estou considerando um experimento psicológico pessoal. É uma desintoxicação. Estou na rehab. Preciso me recordar de como era a vida antes disso tudo. Reaprender como era não ter tantas informações, esquecer aniversários (ou me lembrar espontaneamente). Deixar de compartilhar coisas que deveriam ser íntimas. Preciso ter trabalho para me comunicar com as pessoas e, com isso, pensar duas vezes antes de fazê-lo. Perceber que não tenho como publicar aquela provocação a esta ou aquela pessoa ou talvez a todo mundo. Como ensinou Barbárvore, personagem de Tolkien em O senhor dos aneis, os ents levam muito tempo para falar qualquer coisa, por isso aprenderam a falar apenas quando havia algo que valia a pena ser dito.
O Facebook me custou até o blog. Pela maior capacidade de disseminação e imediatidade lá, deixei de publicar muita coisa aqui. Então esta é uma chance de tentar o caminho oposto. Não morri nem me calei. Posso estar apenas qualificando as minhas ideias neste ambiente doméstico para mim. Enfim, para saber, só fazendo. Por isso comecei. A experiência pode durar um dia, um mês, um ano ou sei lá. Não importa. Não tenho contas a prestar e meu compromisso é com minha própria paz.
sábado, 2 de setembro de 2017
Simpáticos e bem treinados predadores
Eles nos abordam e dizem que temos o perfil de casal que procuram. Convidam-nos para conhecer um empreendimento imobiliário, no modelo de propriedade compartilhada. Falam sobre qualidade de vida, renda complementar, união familiar, visão de futuro, felicidade, paz, amor. E nos prometem uma chance de ajudá-los com uma bolsa de estudos caso batam a meta. Ou, quem sabe, ajudar umas crianças doentes.
O convite para conhecer uma ideia então se transforma em uma proposta de assunção de dívida extremamente agressiva, que apela para as mais escandalosas técnicas de manipulação. O objetivo é nos fazer assinar o contrato naquele momento, a qualquer preço, sem chance de qualquer reflexão. Vale até simular que o casal da mesa ao lado fechou negócio, com direito a ritual de celebração, brinde com espumante e discurso ao estilo culto evangélico.
Um dia me deixei levar por esses meliantes, por curiosidade quanto ao empreendimento. Não tinha a menor intenção de contratar nada. Ao perceber que todos os sorrisos e gentilezas eram apenas uma cortina de fumaça e a cada recusa ou ponderação minha o vendedor puxava outra estratégia ainda mais voraz; ao ler em seus olhos uma frustração crescente; ao encerrar a questão e ele se levantar para chamar o seu gerente, como último recurso para me convencer; sobretudo, ao perceber que a estratégia era pegar pessoas vulneráveis para levá-las a assinar um contrato da maneira mais irresponsável possível, dei um basta.
Passado um bom tempo, esses abutres a serviço do capital estão à solta pelos shoppings. Sinal de que o empreendimento não vendeu como esperado. Abordam-nos do mesmo jeito. Tudo ensaiado, treinado, coreografado, cronometrado. Hoje, escutando pessoas amigas relatando a sua experiência com eles, que teve lances inacreditáveis, como a vendedora oferecendo o próprio cartão de crédito para que pagassem a entrada, um desejo nasceu em mim.
Quero voltar ao front com eles. Fingir-me de incauto com dinheiro disponível e ver tudo que o vendedor fará para me tomar o sangue. Só que, agora, com conhecimento de causa, além de prática advocatícia e alguma familiaridade com análise de comportamento. Quero dizer não a cada tática que o malfeitor utilizar. Admito: quero levá-lo ao desespero, triturá-lo, para fazer minha justiça com as próprias mãos em honra de cada pessoa que caiu nas mãos desses facínoras. Quero me levantar dizendo "você se esforçou muito, mas eu sei o que você está fazendo e não vai dar certo".
Sim, eu sei que é um desejo perverso. Mas nunca prometi ser um bom menino. Minha esposa não quer participar, então estou precisando de uma esposa de fachada para me ajudar a demolir essas ridículas e odiosas, porém eficientes, técnicas de marketing.
Alguém se habilita a fazer essa má ação?
quarta-feira, 2 de agosto de 2017
A magistrada e a mãe
A imprensa e as redes sociais têm repercutido, há uma semana, o fato de que a desembargadora do Mato Grosso do Sul e atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral daquele Estado, Tânia Garcia de Freitas Borges, teria liberado o filho da prisão pessoalmente, ao arrepio das normas aplicáveis à matéria. Por isso, já foi instaurado um procedimento disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Lendo as matérias sobre o caso, pus-me a matutar sobre a responsabilidade da desembargadora, mas decidi articular uma opinião influenciado por uma postagem no Facebook, de autoria de minha amiga Krystima Karem. Ei-la:
Quando li reportagem sobre possível punição a ser aplicada pelo CNJ, minha cabeça de penalista/criminólogo (essencial esclarecer que é deste local que falo, pois não sou filósofo, psicólogo ou especialmente versado no estudo da Ética) se fez duas perguntas: (1) Existe mesmo alguma possibilidade de a magistrada ser punida, em um ambiente tão corporativista como é o judiciário? (2) Podemos pensar em alguma excludente de responsabilidade para ela?
A primeira questão respondi aplicando o conceito criminológico de criminalização por comportamento grotesco (Zaffaroni). Embora o CNJ vá apurar responsabilidade administrativa e não penal, a lógica dos processos sociais de criminalização se aplica com perfeição, a meu ver. Explica-se assim: há pessoas que, em princípio, não pertencem à clientela habitual do sistema punitivo (aquelas vulneráveis por estereotipização), mas que acabam alcançadas por ele devido à prática de um comportamento tão grosseiro que não pode ser ignorado. Afinal, o sistema precisa vender a imagem de honestidade e de legalidade. O que fez a desembargadora foi tão grave, e com tanta repercussão, que é bem provável que ela seja punida, sim. Punida à moda judiciária, é bem verdade.
Quanto à segunda questão, que é o mote da reflexão aqui discutida, pensei imediatamente nos requisitos da culpabilidade, em particular a inexigibilidade de conduta diversa. Afinal, se o meu filho está dentro de uma prisão brasileira, cujo horror dispensa apresentações, e eu disponho de recursos para liberá-lo imediatamente, é razoável que eu o mantenha sob sofrimento para honrar a lei, a ética ou outros motivos que me pareçam menos relevantes, diante da situação extrema em que nos encontramos?
Compreenda: raciocinando muito em tese, podemos até matar e não sofrer responsabilização sob o argumento de inexigibilidade de conduta diversa. Por que a falta da magistrada não poderia, então?
Uma resposta aparentemente favorável à agente, no entanto, começa a desmoronar quando ponderamos o seguinte:
1) Embora possamos, também hipoteticamente, emprestar a tese dirimente para o direito administrativo ― porque, afinal, somos humanos e o ordenamento jurídico se pretende coerente ―, a aplicação de princípios e normas deve respeitar as características próprias do campo. A inexigibilidade de conduta diversa existe porque o direito penal produz as penalidades jurídicas mais severas, sendo um limitador indispensável, a fim de prevenir o excesso, com risco de esgotamento existencial do imputado. Por isso, é cabível a sua aplicação para impedir que uma pessoa fique presa por longos anos, mas seria cabível para evitar uma penalidade disciplinar, mesmo que elevada? Ainda mais sabendo que a maior pena permitida pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional é a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais ao tempo de serviço, uma das maiores imoralidades estabelecidas pela lei?
2) Todo instituto excludente de responsabilidade (penal) possui limites, que separam o direito do abuso de direito, sendo este punível. Com efeito, posso matar em legítima defesa, mas existem limites ao conceito de legítima defesa. De um modo geral, as excludentes se baseiam na ocorrência de situações particularmente graves, excepcionais e urgentes, e no caso da culpabilidade, que limitem consideravelmente a capacidade de reflexão do agente. Não é exigível que uma pessoa tome uma decisão fria e ponderada se não está sob condições existenciais normais (Juarez Cirino dos Santos e Paulo Queiroz).
É aqui que a magistrada se perde. Comecemos pela extrema gravidade das acusações que pairam sobre o filho da mesma, que por sinal é um homem de 37 anos e não um garoto assustado. Ele foi preso portando 129 quilos de maconha (a quantidade excessiva o coloca como traficante), uma arma e enorme quantidade de munição, ambas de uso restrito, o que é fator de maior gravidade (v. minha postagem anterior: https://yudicerandol.blogspot.com.br/2017/07/um-pouco-da-seletividade-penal.html). Em relação a esta prisão em flagrante, o acusado obteve, em tempo recorde, um habeas corpus cuja fundamentação impressiona tanto pelos argumentos quanto por ser exatamente o oposto do que pratica o judiciário brasileiro.
De posse da ordem de habeas corpus, a desembargadora-mãe telefonou para o juiz da execução penal, mas este se recusou a liberar o preso, pois havia contra ele um mandado de prisão em aberto, sob outra acusação grave: envolvimento em uma operação de resgate de preso em penitenciária. Este fato não fora objeto do HC. Sendo assim, o juiz da execução estava corretíssimo: um alvará de soltura somente deve ser cumprido se por outro motivo não deva o agente permanecer preso.
Percebendo que o colega da execução manteria sua posição, a mãe então se vestiu de desembargadora, muniu-se do alvará de soltura e foi soltar o filho pessoalmente. Desculpe, mas não dá para escapar ao argumento de que ela deu uma carteirada imensa, porque o pessoal da penitenciária está acostumado a esses meandros e não engole qualquer argumento. Também é provável que o juiz da execução já houvesse dado instruções.
Por tudo isso, a tese dirimente cai por terra. É uma questão de a agente ter conhecimento especializado sobre a matéria; de ser autoridade incompetente e, mesmo assim, estar em posição de poder de fato sobre as pessoas que cumpriram sua ordem; de ter sido orientada de maneira específica pelo juiz da execução e, em clara desobediência à lei, exercido arbitrariamente as próprias razões; e de lhe ser exigível que buscasse os meios legais, ainda que lentos, de enfrentamento do problema.
Em suma, para mim, os motivos maternais da conduta podem ser considerados para fins de dosagem de uma eventual punição, mas não funcionam, de modo algum, como excludente de responsabilidade. Quanto maior a autoridade, mais exigível deve ser o seu aferramento à legalidade, pois não?
Por tudo isso, compreendo em parte a conduta, mas não posso ser solidário à magistrada, mesmo sendo pai. Pode colocar na conta da minha dureza pessoal. Não se pode praticar uma ação dessas e continuar no exercício da magistratura. A incompatibilidade é intransponível.
Ao fim e ao cabo, o grande problema, o que realmente tem incomodado tanto as pessoas, é saber que existem réus privilegiadíssimos, para os quais são aplicadas até mesmo garantias inexistentes, ao passo que, para a gigantesca massa de imputados em geral, só existem os rigores da lei e os intermináveis discursos moralizantes com que as agências punitivas sempre se expressam. E uma colossal dose de insensibilidade. Não dá para escancarar tão dramaticamente assim as disparidades sociais que tornam nossas instituições o que elas são.
Lendo as matérias sobre o caso, pus-me a matutar sobre a responsabilidade da desembargadora, mas decidi articular uma opinião influenciado por uma postagem no Facebook, de autoria de minha amiga Krystima Karem. Ei-la:
O que mais gosto na reflexão de Krystima é o aspecto humano: ela se lembra de que somos pessoas, inerentemente falíveis e movidas por emoções, e sem fazer um julgamento de valor (aliás, ela se confessa desconfortável para isso), questiona. Ou se questiona. E nos provoca a compartilhar a sua inquietude.
A postagem ensejou alguns comentários, de tom enérgico e moralista, nos moldes em que se movem as pessoas nas redes sociais: profundamente donas da verdade e ávidas por julgar os outros, exigindo moralidades e condutas que, talvez, os críticos não possuem ou não sejam capazes. Comentários também sobre o sistema punitivo brasileiro ser "excessivamente garantista". Não perderei meu tempo com isso. Separei os comentários de duas outras amigas muito amadas, Ana Darwich e Bárbara Dias, pois estes me ajudam a seguir o raciocínio que pretendo fazer.
Quando li reportagem sobre possível punição a ser aplicada pelo CNJ, minha cabeça de penalista/criminólogo (essencial esclarecer que é deste local que falo, pois não sou filósofo, psicólogo ou especialmente versado no estudo da Ética) se fez duas perguntas: (1) Existe mesmo alguma possibilidade de a magistrada ser punida, em um ambiente tão corporativista como é o judiciário? (2) Podemos pensar em alguma excludente de responsabilidade para ela?
A primeira questão respondi aplicando o conceito criminológico de criminalização por comportamento grotesco (Zaffaroni). Embora o CNJ vá apurar responsabilidade administrativa e não penal, a lógica dos processos sociais de criminalização se aplica com perfeição, a meu ver. Explica-se assim: há pessoas que, em princípio, não pertencem à clientela habitual do sistema punitivo (aquelas vulneráveis por estereotipização), mas que acabam alcançadas por ele devido à prática de um comportamento tão grosseiro que não pode ser ignorado. Afinal, o sistema precisa vender a imagem de honestidade e de legalidade. O que fez a desembargadora foi tão grave, e com tanta repercussão, que é bem provável que ela seja punida, sim. Punida à moda judiciária, é bem verdade.
Quanto à segunda questão, que é o mote da reflexão aqui discutida, pensei imediatamente nos requisitos da culpabilidade, em particular a inexigibilidade de conduta diversa. Afinal, se o meu filho está dentro de uma prisão brasileira, cujo horror dispensa apresentações, e eu disponho de recursos para liberá-lo imediatamente, é razoável que eu o mantenha sob sofrimento para honrar a lei, a ética ou outros motivos que me pareçam menos relevantes, diante da situação extrema em que nos encontramos?
Compreenda: raciocinando muito em tese, podemos até matar e não sofrer responsabilização sob o argumento de inexigibilidade de conduta diversa. Por que a falta da magistrada não poderia, então?
Uma resposta aparentemente favorável à agente, no entanto, começa a desmoronar quando ponderamos o seguinte:
1) Embora possamos, também hipoteticamente, emprestar a tese dirimente para o direito administrativo ― porque, afinal, somos humanos e o ordenamento jurídico se pretende coerente ―, a aplicação de princípios e normas deve respeitar as características próprias do campo. A inexigibilidade de conduta diversa existe porque o direito penal produz as penalidades jurídicas mais severas, sendo um limitador indispensável, a fim de prevenir o excesso, com risco de esgotamento existencial do imputado. Por isso, é cabível a sua aplicação para impedir que uma pessoa fique presa por longos anos, mas seria cabível para evitar uma penalidade disciplinar, mesmo que elevada? Ainda mais sabendo que a maior pena permitida pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional é a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais ao tempo de serviço, uma das maiores imoralidades estabelecidas pela lei?
2) Todo instituto excludente de responsabilidade (penal) possui limites, que separam o direito do abuso de direito, sendo este punível. Com efeito, posso matar em legítima defesa, mas existem limites ao conceito de legítima defesa. De um modo geral, as excludentes se baseiam na ocorrência de situações particularmente graves, excepcionais e urgentes, e no caso da culpabilidade, que limitem consideravelmente a capacidade de reflexão do agente. Não é exigível que uma pessoa tome uma decisão fria e ponderada se não está sob condições existenciais normais (Juarez Cirino dos Santos e Paulo Queiroz).
É aqui que a magistrada se perde. Comecemos pela extrema gravidade das acusações que pairam sobre o filho da mesma, que por sinal é um homem de 37 anos e não um garoto assustado. Ele foi preso portando 129 quilos de maconha (a quantidade excessiva o coloca como traficante), uma arma e enorme quantidade de munição, ambas de uso restrito, o que é fator de maior gravidade (v. minha postagem anterior: https://yudicerandol.blogspot.com.br/2017/07/um-pouco-da-seletividade-penal.html). Em relação a esta prisão em flagrante, o acusado obteve, em tempo recorde, um habeas corpus cuja fundamentação impressiona tanto pelos argumentos quanto por ser exatamente o oposto do que pratica o judiciário brasileiro.
De posse da ordem de habeas corpus, a desembargadora-mãe telefonou para o juiz da execução penal, mas este se recusou a liberar o preso, pois havia contra ele um mandado de prisão em aberto, sob outra acusação grave: envolvimento em uma operação de resgate de preso em penitenciária. Este fato não fora objeto do HC. Sendo assim, o juiz da execução estava corretíssimo: um alvará de soltura somente deve ser cumprido se por outro motivo não deva o agente permanecer preso.
Percebendo que o colega da execução manteria sua posição, a mãe então se vestiu de desembargadora, muniu-se do alvará de soltura e foi soltar o filho pessoalmente. Desculpe, mas não dá para escapar ao argumento de que ela deu uma carteirada imensa, porque o pessoal da penitenciária está acostumado a esses meandros e não engole qualquer argumento. Também é provável que o juiz da execução já houvesse dado instruções.
Por tudo isso, a tese dirimente cai por terra. É uma questão de a agente ter conhecimento especializado sobre a matéria; de ser autoridade incompetente e, mesmo assim, estar em posição de poder de fato sobre as pessoas que cumpriram sua ordem; de ter sido orientada de maneira específica pelo juiz da execução e, em clara desobediência à lei, exercido arbitrariamente as próprias razões; e de lhe ser exigível que buscasse os meios legais, ainda que lentos, de enfrentamento do problema.
Em suma, para mim, os motivos maternais da conduta podem ser considerados para fins de dosagem de uma eventual punição, mas não funcionam, de modo algum, como excludente de responsabilidade. Quanto maior a autoridade, mais exigível deve ser o seu aferramento à legalidade, pois não?
Por tudo isso, compreendo em parte a conduta, mas não posso ser solidário à magistrada, mesmo sendo pai. Pode colocar na conta da minha dureza pessoal. Não se pode praticar uma ação dessas e continuar no exercício da magistratura. A incompatibilidade é intransponível.
Ao fim e ao cabo, o grande problema, o que realmente tem incomodado tanto as pessoas, é saber que existem réus privilegiadíssimos, para os quais são aplicadas até mesmo garantias inexistentes, ao passo que, para a gigantesca massa de imputados em geral, só existem os rigores da lei e os intermináveis discursos moralizantes com que as agências punitivas sempre se expressam. E uma colossal dose de insensibilidade. Não dá para escancarar tão dramaticamente assim as disparidades sociais que tornam nossas instituições o que elas são.
Atualização em 21.7.2020
Em junho de 2019, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal manteve a decisão do Conselho Nacional de Justiça, que determinou o afastamento da desembargadora de suas funções (cumprido desde 9.10.2018). Cf.: https://www.conjur.com.br/2019-jun-03/stf-mantem-afastada-desembargadora-acusada-influencia-ilegal
No começo deste mês, o STF voltou a manter o afastamento da desembargadora, mas por outro motivo: paira sobre ela acusações de corrupção passiva e advocacia administrativa, no exercício de suas atribuições como magistrada estadual (venda de sentença). Com dois votos pelo afastamento, dos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, o julgamento deve terminar apenas em agosto. Cf.: https://correiodoestado.com.br/cidades/stf-julga-afastamento-de-desembargadora-por-venda-de-sentenca/374087
Por outro lado, a desembargadora conseguiu que o Superior Tribunal de Justiça confirmasse decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, que rejeitou ação de improbidade administrativa, movida pelo Ministério Público Federal. Cf. https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/stj-mantem-arquivamento-de-acao-por-improbidade-contra-desembargadora
Enquanto isso, em fevereiro deste ano o filho da desembargadora obteve a sua terceira condenação criminal e já pode pedir música no Presídio de Três Lagoas (segurança média), onde se encontra recolhido desde novembro de 2017. Ele acumula condenações por integrar organização criminosa e lavagem de dinheiro (9 anos e 6 meses), por tráfico de drogas e de munições (8 anos e 10 meses) e, por fim, porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (3 anos e 30 dias). Cf.: https://www.msnoticias.com.br/editorias/geral-ms-noticias/filho-de-desembargadora-e-condenado-pela-3a-vez-em-ms/95837/
terça-feira, 1 de agosto de 2017
Esses homens problemáticos
É difícil emitir opinião sobre Chico Buarque, eis que se trata de um ícone da música brasileira, pertencente ao mais inequívoco primeiro escalão. Um compositor genial, sem dúvida, de cuja voz eu particularmente não gosto, assim como de sua evidente desafinação. Mas os fãs berram de volta que essa é justamente a beleza de seu canto e que algumas canções ficam bonitas justamente assim. Enfim, gosto não se discute. Há, também, a questão política, dada a amizade histórica do cantor com o PT, e particularmente com Lula, sendo ele um dos nomes que viveram e enfrentaram, com sua arte, a ditadura. Esta questão o expõe à execração da onda direitizadora que estamos vivendo.
Mas hoje não me interessa o Chico Buarque político. Quero me concentrar apenas no artista, que há alguns dias lançou um single: "Tua cantiga", o qual provocou grande repercussão no público, já que estamos falando de Chico Buarque. Trabalho inédito, autoral, bem ao estilo do compositor. Um delírio para os fãs. Quando li que era uma parceria com Cristóvão Bastos, coautor de "Todo o sentimento" (1987), fui logo escutar. Afinal, sou apaixonado por "Todo o sentimento", especialmente quando interpretada por Verônica Sabino.
Escutei "Tua cantiga" e pensei: "Ah, legal. Interessante". E só. Não tem a força da irmãzinha citada no parágrafo anterior. A mim, particularmente, incomodou a melodia minimalista (que a jornalista Maria Carolina Maia classificou como "agradável, mas quase anódina"1). Então passei a prestar atenção à letra, pois sou um sujeito que só gosta de uma composição se a letra me diz alguma coisa. Esse papo de música legal, "boa para dançar", mas com conteúdo estúpido, fica para um campo popularesco/industrializado do qual quero distância.
A primeira coisa que me passou pela cabeça ao ler a letra de "Tua cantiga" foi a lembrança da enxurrada de críticas sofridas por outro ícone da música brasileira: Roberto Carlos. Não, eu não quero colocar Chico Buarque e Roberto Carlos no mesmo quadrado. Sei que eles se movem em setores distintos da música. Mas a questão é que, em 2012, quando RC lançou "Esse cara sou eu" ― que ganhou o Grammy Latino de melhor canção brasileira e foi tema de protagonistas de novela global, do horário nobre, e por isso tocava nas rádios o tempo inteiro ―, um povo aí recorreu até à psicologia para analisar a letra da canção e traçar um perfil do personagem ali retratado. Machista perigoso é pouco.
Em uma busca rápida pela internet, podemos resgatar artigo da Revista Fórum2, segundo o qual: "Na música do Roberto Carlos, a princípio, a gente pensa que o tal 'cara' é alguém atencioso, alguém preocupado e gentil. Só que nessa atenção escondem-se alguns aspectos interessantes do que a sociedade espera de uma mulher, de um homem e do relacionamento entre os dois." Segundo o artigo, o protagonista da canção é extremamente possessivo e a ideia de posse coisifica a mulher. Esta é a criatura frágil, que precisa de um heroi para protegê-la e, com isso, reforça-se a heteronormatividade social. Mas tudo isso é vendido sob a capa de cavalheirismo, portanto o sujeito aparece como alguém bom; logo, a mulher deve ser grata a ele. Deve corresponder a suas expectativas. O problema é o que ocorre quando a mulher não corresponde às expectativas de seu companheiro.
Em uma linha mais lúdica, mas nem por isso descartável, temos a análise abaixo3:
Como podemos ver, a análise aponta para uma personalidade enfermiça e um possível relacionamento assimétrico e destrutivo, daí a recomendação para fugir de um cara assim. O pior é que, lendo, faz todo o sentido. E, para Roberto Carlos, o pior é que sua obra é construída exatamente sobre esses parâmetros; não é algo eventual, mas constitutivo do pensamento do autor.
E aí voltamos a Chico Buarque. Se aceitamos a crítica contra o cara de Roberto Carlos, como passar em branco o apaixonado de Buarque?
O sujeito é claramente um doente emocional. Com a autoestima no chão, acredita que sua função é fazer a felicidade da mulher amada, mesmo que ao preço de se comportar como um capacho ("e de joelhos vou te seguir") e de causar danos a terceiros. O que esperar de um sujeito que se dispõe a largar mulher e filhos, mesmo ciente de que isso seria um capricho da amada? Meu pai largou mulher e filhos por um rabo de saia. Desculpe, mas eu não vejo nada de bonito nesse personagem aí. Achei um tremendo feladiputa.
Sabemos que a obra de Buarque tem um olhar feminino, de empoderamento e valorização da mulher. Mas veja essa proposta: "Na nossa casa/ Serás rainha/ Serás cruel, talvez/ Vais fazer manha/ Me aperrear/ E eu, sempre mais feliz". Se fosse um homem dominando, todo mundo criticaria. Mas porque é uma mulher vamos achar fofo? Eu não achei. O sujeito se dispõe a sofrer pelas vilanias da amada e acredita que assim será progressivamente feliz. Isso é transtorno mental. Síndrome de Estocolmo, no mínimo. No mais, assim como em Roberto Carlos, também existe a promessa de satisfação sexual como sustentáculo da relação.
Mas convém não romantizar o homem que, no cotidiano, arrasta a bunda por uma mulher. Ele continua sendo um produto de uma sociedade patriarcal. O aviso está dado: "Entre suspiros/ Pode outro nome/ Dos lábios te escapar/ Terei ciúme/ Até de mim/ No espelho a te abraçar". Ele sofre de ciúme patológico. É esse tipo de cara que comete feminicídio e acha que isso é amor.
Enfim, uma canção é uma canção. Pode ser apenas arte, a visão de um artista específico. Ou pode ser que esse artista, inserido em um contexto, cante as ideias de seu tempo. Por isso, convém questionar se o empoderador feminista que vive em Chico Buarque não estaria prestando um desserviço às mulheres, enquanto elas suspiram por seus olhos azuis e suas palavras rasgadas ― as armadilhas do amor romântico.
__________________________
1 Cf. http://veja.abril.com.br/entretenimento/chico-buarque-lanca-samba-soft-tua-cantiga-do-cd-caravanas/#
2 Cf. http://www.revistaforum.com.br/ativismodesofa/2012/12/11/o-machismo-por-tras-da-musica-esse-cara-sou-eu/
3 Encontrei neste endereço: https://futerock.files.wordpress.com/2012/11/anc3a1lise-o-cara.jpg, mas existe em outros lugares.
Mas hoje não me interessa o Chico Buarque político. Quero me concentrar apenas no artista, que há alguns dias lançou um single: "Tua cantiga", o qual provocou grande repercussão no público, já que estamos falando de Chico Buarque. Trabalho inédito, autoral, bem ao estilo do compositor. Um delírio para os fãs. Quando li que era uma parceria com Cristóvão Bastos, coautor de "Todo o sentimento" (1987), fui logo escutar. Afinal, sou apaixonado por "Todo o sentimento", especialmente quando interpretada por Verônica Sabino.
Escutei "Tua cantiga" e pensei: "Ah, legal. Interessante". E só. Não tem a força da irmãzinha citada no parágrafo anterior. A mim, particularmente, incomodou a melodia minimalista (que a jornalista Maria Carolina Maia classificou como "agradável, mas quase anódina"1). Então passei a prestar atenção à letra, pois sou um sujeito que só gosta de uma composição se a letra me diz alguma coisa. Esse papo de música legal, "boa para dançar", mas com conteúdo estúpido, fica para um campo popularesco/industrializado do qual quero distância.
A primeira coisa que me passou pela cabeça ao ler a letra de "Tua cantiga" foi a lembrança da enxurrada de críticas sofridas por outro ícone da música brasileira: Roberto Carlos. Não, eu não quero colocar Chico Buarque e Roberto Carlos no mesmo quadrado. Sei que eles se movem em setores distintos da música. Mas a questão é que, em 2012, quando RC lançou "Esse cara sou eu" ― que ganhou o Grammy Latino de melhor canção brasileira e foi tema de protagonistas de novela global, do horário nobre, e por isso tocava nas rádios o tempo inteiro ―, um povo aí recorreu até à psicologia para analisar a letra da canção e traçar um perfil do personagem ali retratado. Machista perigoso é pouco.
Em uma busca rápida pela internet, podemos resgatar artigo da Revista Fórum2, segundo o qual: "Na música do Roberto Carlos, a princípio, a gente pensa que o tal 'cara' é alguém atencioso, alguém preocupado e gentil. Só que nessa atenção escondem-se alguns aspectos interessantes do que a sociedade espera de uma mulher, de um homem e do relacionamento entre os dois." Segundo o artigo, o protagonista da canção é extremamente possessivo e a ideia de posse coisifica a mulher. Esta é a criatura frágil, que precisa de um heroi para protegê-la e, com isso, reforça-se a heteronormatividade social. Mas tudo isso é vendido sob a capa de cavalheirismo, portanto o sujeito aparece como alguém bom; logo, a mulher deve ser grata a ele. Deve corresponder a suas expectativas. O problema é o que ocorre quando a mulher não corresponde às expectativas de seu companheiro.
Em uma linha mais lúdica, mas nem por isso descartável, temos a análise abaixo3:
Como podemos ver, a análise aponta para uma personalidade enfermiça e um possível relacionamento assimétrico e destrutivo, daí a recomendação para fugir de um cara assim. O pior é que, lendo, faz todo o sentido. E, para Roberto Carlos, o pior é que sua obra é construída exatamente sobre esses parâmetros; não é algo eventual, mas constitutivo do pensamento do autor.
E aí voltamos a Chico Buarque. Se aceitamos a crítica contra o cara de Roberto Carlos, como passar em branco o apaixonado de Buarque?
O sujeito é claramente um doente emocional. Com a autoestima no chão, acredita que sua função é fazer a felicidade da mulher amada, mesmo que ao preço de se comportar como um capacho ("e de joelhos vou te seguir") e de causar danos a terceiros. O que esperar de um sujeito que se dispõe a largar mulher e filhos, mesmo ciente de que isso seria um capricho da amada? Meu pai largou mulher e filhos por um rabo de saia. Desculpe, mas eu não vejo nada de bonito nesse personagem aí. Achei um tremendo feladiputa.
Sabemos que a obra de Buarque tem um olhar feminino, de empoderamento e valorização da mulher. Mas veja essa proposta: "Na nossa casa/ Serás rainha/ Serás cruel, talvez/ Vais fazer manha/ Me aperrear/ E eu, sempre mais feliz". Se fosse um homem dominando, todo mundo criticaria. Mas porque é uma mulher vamos achar fofo? Eu não achei. O sujeito se dispõe a sofrer pelas vilanias da amada e acredita que assim será progressivamente feliz. Isso é transtorno mental. Síndrome de Estocolmo, no mínimo. No mais, assim como em Roberto Carlos, também existe a promessa de satisfação sexual como sustentáculo da relação.
Mas convém não romantizar o homem que, no cotidiano, arrasta a bunda por uma mulher. Ele continua sendo um produto de uma sociedade patriarcal. O aviso está dado: "Entre suspiros/ Pode outro nome/ Dos lábios te escapar/ Terei ciúme/ Até de mim/ No espelho a te abraçar". Ele sofre de ciúme patológico. É esse tipo de cara que comete feminicídio e acha que isso é amor.
Enfim, uma canção é uma canção. Pode ser apenas arte, a visão de um artista específico. Ou pode ser que esse artista, inserido em um contexto, cante as ideias de seu tempo. Por isso, convém questionar se o empoderador feminista que vive em Chico Buarque não estaria prestando um desserviço às mulheres, enquanto elas suspiram por seus olhos azuis e suas palavras rasgadas ― as armadilhas do amor romântico.
__________________________
1 Cf. http://veja.abril.com.br/entretenimento/chico-buarque-lanca-samba-soft-tua-cantiga-do-cd-caravanas/#
2 Cf. http://www.revistaforum.com.br/ativismodesofa/2012/12/11/o-machismo-por-tras-da-musica-esse-cara-sou-eu/
3 Encontrei neste endereço: https://futerock.files.wordpress.com/2012/11/anc3a1lise-o-cara.jpg, mas existe em outros lugares.
domingo, 30 de julho de 2017
O irresponsável mais do mesmo
Para cumprir a missão incessante de criticar o "governo" tucano do Pará ― que, de fato, merece todas as críticas; a questão é que, no contexto, tais críticas têm óbvias finalidades eleitoreiras ―, a coluna Repórter Diário deste domingo começa assim:
"A presença de tropas federais no Rio de Janeiro há três dias mudou a cara da cidade e é saudada por todos os moradores como esperança para a crescente onda de violência."
Segue a crítica ao cantor e dublê de governador (cassado) do Pará, que não pede ajuda federal para não passar recibo de incompetência em relação à segurança pública. Vou-me concentrar só nesse trecho da nota.
Até um leigo como eu pode afirmar que tudo nela transpira antijornalismo. Vejamos: (1) a linguagem do texto é panfletária, sem a esperada isenção jornalística; (2) a afirmação de que a simples presença de tropas federais mudou tudo em apenas três dias é feita para sugerir que essa medida é a oitava maravilha do mundo e que, se aplicada em Belém, iríamos do inferno ao paraíso quase que instantaneamente, o que é falso; (3) é no mínimo estranho falar em "crescente onda de violência" em uma capital que, há décadas, tem sido apontada como extremamente violenta.
Mas eu gostaria de ressaltar, acima de tudo, isto: a irresponsabilidade da nota está em promover uma política militarizada de segurança pública, em um nível superior ao já existente, a cargo da Polícia Militar estadual. A presença de tropas federais e tanques nas ruas é uma situação extraordinária e nada desejável, que mergulha os munícipes em um cenário bélico bastante desagradável. Além disso, segurança pública de rotina e atividade militar são realidades díspares. A militarização da vida comum tem custado caro aos cidadãos, por todo o país. Mas, na nota seguinte, o filho do dono do jornal e futuro recandidato ao governo, atual ministro do governo golpista, é citado como "cidadão responsável e ciente da situação insustentável" porque formalizou um pedido de intervenção militar no Estado.
Por fim, temos o quarto e, a meu ver, mais grave pecado da nota, que é mentir descaradamente. O jornalista pode apontar que fonte foi consultada para afirmar, de modo tão peremptório, quais são os sentimentos dos cariocas em relação às tropas federais? Já existe alguma consulta nesse sentido? Se não há, como pode o colunista afirmar que tais sentimentos existem?
Piora: quem são esses "todos os moradores" tão cheios de esperança? Os moradores dos bairros nobres, das regiões turísticas, das praias, que são os verdadeiros destinatários da "proteção" do Estado? Alguém se deu ao trabalho de perguntar aos moradores das periferias, e sobretudo das favelas, usualmente acostumados às abordagens policiais agressivas (esculachos), à suspeição e à humilhação, se a esperança chegou também a seus lares?
Duvido muito, porque essas populações não têm voz. São elas as grandes atingidas pela militarização da vida. São os suspeitos preconcebidos, por força da cor da pele, das roupas, do pouco dinheiro, da nenhuma influência, da região de moradia, etc. A opinião deles não conta para os elaboradores de políticas públicas que, no fundo, são tão turísticas quanto as praias cariocas ― políticas destinadas a assegurar que os cidadãos de bem possam transitar por seus calçadões, estacionar seus carros, frequentar seus points sem risco de encarar a bandidagem que vem do outro lado.
Esta é uma questão grave, mas não interessa para a coluna dominical do Diário do Pará. Aqui basta a crítica, mesmo que ela venda falácias e ilusões para o eleitor desavisado.
"A presença de tropas federais no Rio de Janeiro há três dias mudou a cara da cidade e é saudada por todos os moradores como esperança para a crescente onda de violência."
Segue a crítica ao cantor e dublê de governador (cassado) do Pará, que não pede ajuda federal para não passar recibo de incompetência em relação à segurança pública. Vou-me concentrar só nesse trecho da nota.
Até um leigo como eu pode afirmar que tudo nela transpira antijornalismo. Vejamos: (1) a linguagem do texto é panfletária, sem a esperada isenção jornalística; (2) a afirmação de que a simples presença de tropas federais mudou tudo em apenas três dias é feita para sugerir que essa medida é a oitava maravilha do mundo e que, se aplicada em Belém, iríamos do inferno ao paraíso quase que instantaneamente, o que é falso; (3) é no mínimo estranho falar em "crescente onda de violência" em uma capital que, há décadas, tem sido apontada como extremamente violenta.
Mas eu gostaria de ressaltar, acima de tudo, isto: a irresponsabilidade da nota está em promover uma política militarizada de segurança pública, em um nível superior ao já existente, a cargo da Polícia Militar estadual. A presença de tropas federais e tanques nas ruas é uma situação extraordinária e nada desejável, que mergulha os munícipes em um cenário bélico bastante desagradável. Além disso, segurança pública de rotina e atividade militar são realidades díspares. A militarização da vida comum tem custado caro aos cidadãos, por todo o país. Mas, na nota seguinte, o filho do dono do jornal e futuro recandidato ao governo, atual ministro do governo golpista, é citado como "cidadão responsável e ciente da situação insustentável" porque formalizou um pedido de intervenção militar no Estado.
Por fim, temos o quarto e, a meu ver, mais grave pecado da nota, que é mentir descaradamente. O jornalista pode apontar que fonte foi consultada para afirmar, de modo tão peremptório, quais são os sentimentos dos cariocas em relação às tropas federais? Já existe alguma consulta nesse sentido? Se não há, como pode o colunista afirmar que tais sentimentos existem?
Piora: quem são esses "todos os moradores" tão cheios de esperança? Os moradores dos bairros nobres, das regiões turísticas, das praias, que são os verdadeiros destinatários da "proteção" do Estado? Alguém se deu ao trabalho de perguntar aos moradores das periferias, e sobretudo das favelas, usualmente acostumados às abordagens policiais agressivas (esculachos), à suspeição e à humilhação, se a esperança chegou também a seus lares?
O blindado do Exército passou toda a manhã de ontem no Largo do Machado. Há apoio popular? Sim. Mas também há reclamações. Esqueça a unanimidade. Foto: Domingos Peixoto/ Agência O Globo |
Esta é uma questão grave, mas não interessa para a coluna dominical do Diário do Pará. Aqui basta a crítica, mesmo que ela venda falácias e ilusões para o eleitor desavisado.
segunda-feira, 24 de julho de 2017
Um pouco da seletividade penal brasileira
Um dos conceitos mais centrais para o estudo do campo penal é o de seletividade. Aos estudiosos, há ótimas referências para entender a questão mas, por todas, recomendo a obra Direito penal brasileiro, I, de Eugenio Raúl Zaffaroni et alli, publicado pela Editora Revan.
Zaffaroni explica que a seletividade é uma realidade inafastável de qualquer ordenamento penal, haja vista que todas as agências punitivas possuem limitações infraestruturais. Logo, nunca seria possível instaurar persecução criminal em relação a todos os fatos criminosos em tese que ocorrem, dando origem ao conceito de cifra oculta da criminalidade. Contudo, ao lado dos problemas infraestruturais, existe a questão das finalidades que movem as agências punitivas, as quais não são isentas. A despeito do discurso oficial de proteção dos bens jurídicos, na verdade elas atuam para manter a dinâmica de forças desiguais que já existem na sociedade, como bem explicam autores como Juarez Cirino dos Santos e Nilo Batista.
Daí surge uma outra seletividade, que é de natureza político-criminal, clandestina, porque as agências punitivas jamais admitirão que são comprometidas com as classes hegemônicas. Aquela seletividade quem se tornará cliente do sistema penal, mesmo que inocente, e quem está imune a ele, mesmo que claramente culpado.
Esta é uma questão muito séria, mas que no Brasil de hoje, para variar, encontra-se severamente deturpada por causa da crise político-partidária. Com efeito, devido à recorrência do argumento de que o Ministério Público, o judiciário e a imprensa tratam com ferocidade as imputações criminais aos petistas e com leniência os malfeitos dos tucanos, inclusive isentando-os de responsabilidade ou arquivando inquéritos, a intelligentsia à brasileira reagiu passando a negar a própria existência da seletividade, como se fosse desculpismo de corruptos, comprando o discurso alucinado de isenção das agências punitivas.
Que a seletividade é real, temos exemplos diários. Selecionei aqui um único caso, para demonstrar. Vou transcrever dois textos sobre ele, naturalmente indicando a fonte, e em itálico colocarei alguns breves comentários.
Primeira matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/preso-com-130-quilos-de-maconha-e-199-municoes-de-fuzil-filho-de-desembargadora-e-libertado/
Zaffaroni explica que a seletividade é uma realidade inafastável de qualquer ordenamento penal, haja vista que todas as agências punitivas possuem limitações infraestruturais. Logo, nunca seria possível instaurar persecução criminal em relação a todos os fatos criminosos em tese que ocorrem, dando origem ao conceito de cifra oculta da criminalidade. Contudo, ao lado dos problemas infraestruturais, existe a questão das finalidades que movem as agências punitivas, as quais não são isentas. A despeito do discurso oficial de proteção dos bens jurídicos, na verdade elas atuam para manter a dinâmica de forças desiguais que já existem na sociedade, como bem explicam autores como Juarez Cirino dos Santos e Nilo Batista.
Daí surge uma outra seletividade, que é de natureza político-criminal, clandestina, porque as agências punitivas jamais admitirão que são comprometidas com as classes hegemônicas. Aquela seletividade quem se tornará cliente do sistema penal, mesmo que inocente, e quem está imune a ele, mesmo que claramente culpado.
Esta é uma questão muito séria, mas que no Brasil de hoje, para variar, encontra-se severamente deturpada por causa da crise político-partidária. Com efeito, devido à recorrência do argumento de que o Ministério Público, o judiciário e a imprensa tratam com ferocidade as imputações criminais aos petistas e com leniência os malfeitos dos tucanos, inclusive isentando-os de responsabilidade ou arquivando inquéritos, a intelligentsia à brasileira reagiu passando a negar a própria existência da seletividade, como se fosse desculpismo de corruptos, comprando o discurso alucinado de isenção das agências punitivas.
Que a seletividade é real, temos exemplos diários. Selecionei aqui um único caso, para demonstrar. Vou transcrever dois textos sobre ele, naturalmente indicando a fonte, e em itálico colocarei alguns breves comentários.
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Primeira matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/preso-com-130-quilos-de-maconha-e-199-municoes-de-fuzil-filho-de-desembargadora-e-libertado/
Preso com 130 quilos de maconha e 199 munições de fuzil,
filho de desembargadora é libertado
O jornalista Alcemo Góis informa em sua coluna do
jornal O Globo algo que merece ampla apuração, mas que provavelmente vai ficar
na notinha e ser tratado como algo da vida. Mais ou menos como no caso do
helicóptero pertencente à família do senador Perrella. [O blogueiro se refere ao famosíssimo caso do "helicoca", helicóptero pertencente à empresa dos filhos do senador por Minas Gerais Zezé Perrella, apreendido com 445 quilos de pasta base de cocaína em novembro de 2013. Como a pasta base pode ser processada para produzir uma quantidade muito maior de cocaína em pó, estima-se que a carga valia 50 milhões de reais. Perrella é um dos grandes aliados do senador Aécio Neves. O piloto assumiu a culpa sozinho e, embora devesse ser caracterizado como um grande narcotraficante, já está em liberdade. Enquanto isso, temos pessoas presas por terem sido flagradas portando 2 gramas de maconha. A tese de que eram usuárias foi recusada e essas pessoas acabaram na cadeia como traficantes.]
- Para saber mais sobre o caso, consulte, p. ex.: https://oglobo.globo.com/brasil/helicoptero-da-empresa-dos-filhos-de-senador-apreendido-com-quase-meia-tonelada-de-pasta-de-cocaina-10878457 e a série de reportagens publicada em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/categorias/especiais-dcm/helicoca/.
Segundo Góis, o plantão judiciário do TJ-MS,
soltou na última sexta-feira Breno Fernando Solon Borges, de 37 anos. Ele teria
sido preso com 130 quilos de maconha, 199 munições de fuzil calibre 762 e uma
pistola nove milímetros. E tinha contra ele dois mandados de prisão, que foram
suspensos pela Justiça. [Observe para a imensa quantidade de droga e de munições, além de uma arma. Nos termos do Estatuto do Desarmamento, é crime não apenas a posse ou o porte ilegal de armas, mas também de munições. Como a pistola era uma 9 mm e a munição era para fuzil, pode-se inferir que a carga visava suprir algum arsenal. Tanto a pistola quanto fuzis são armas de uso restrito às Forças Armadas ou a agentes de segurança pública, o que torna o crime mais grave, com penas de 3 a 6 anos de reclusão e multa, nos termos do art. 16 da Lei n. 10.826, de 2003. Embora se trate se crimes em tese muito graves, e de serem acusações distintas, todos os mandados de prisão foram suspensos.]
Ainda segundo o jornalista, Breno seria filho
da desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, presidente do Tribunal
Regional Eleitoral (TRE-MS) e integrante do Pleno do Tribunal de Justiça do
Mato Grosso do Sul.
O Tribunal Regional Eleitoral, a saber,
é entre outras coisas, quem conduz o processo eleitoral e que julga
processos envolvendo candidatos.
Ou seja, aqueles que dizem que os problemas do
Brasil são os políticos e a corrupção deveriam olhar melhor para o judiciário.
Segunda matéria: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/filho-da-desembargadora-solto-na-madrugada-de-sexta-e-considerado-de-alta-periculosidade-pela-pf/
Filho da desembargadora solto na madrugada de sexta é considerado de alta periculosidade pela PF
O blogue foi atrás de mais informações sobre o caso da controvertida
libertação do engenheiro Breno Fernando Solon Borges, 37 anos, filho da
presidente do Tribunal Regional Eleitoral e integrante do Tribunal Pleno do
Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, desembargadora Tânia Garcia de
Freitas Borges.
Como já dito no post anterior, ele foi preso por portar, entre
outras coisas, 130 quilos de maconha, 199 munições de fuzil calibre 762, de uso
exclusivo das forças armadas e só utilizado por facções criminosas como PCC, e
uma pistola nove milímetros.
Na imprensa do estado, quem tem tratado do assunto é o blogue O Jacaré, do jornalista Edvaldo
Bitencourt. Pela leitura de suas matérias a história fica ainda mais cabeluda
do que parecia no post que publiquei há pouco.
A saga de Solon Borges com a Justiça começou em 8 de abril, quando ele,
a namorada, Isabela Lima Vilalva, e o funcionário da sua serralheria, Cleiton
Jean Chaves, foram presos. [A prática de crimes em situação de concurso de agentes também é uma circunstância de maior gravidade, nos termos da lei, que, no entanto, não parece ter sido sopesada na decisão judicial que concedeu a liberdade.]
Na ocasião, o juiz da Vara Única de Água Clara, Idail de Toni Filho,
decretou sua imediata prisão no presídio de Três Lagoas, mas na última
sexta-feira, na madrugada, o desembargador de plantão José Ale Ahmad Netto,
suspendeu os dois mandados de prisão e determinou o cumprimento do habeas
corpus para interná-lo numa clínica médica particular. [O Brasil aplica uma política de guerra em matéria de drogas. Os discursos punitivistas mais radicais, que são usualmente sustentados pelas agências punitivas, repudiam com virulência a tese de que drogas devem ser tratadas como questão de saúde pública e não de segurança pública. Neste caso específico, porém, aplicou-se a orientação de saúde.]
No seu despacho, o magistrado ainda criticou os dois juízes que
decretaram a prisão preventiva do filho da desembargadora. E não levou em
consideração que a Polícia Federal considera o filho de sua colega de toga
alguém de alta periculosidade. [Criminólogos críticos repudiam a ideia de "periculosidade" como fundamento da persecução criminal. No entanto, esse é justamente um dos argumentos mais comuns na atuação histérica das agências punitivas. Por isso, é no mínimo estranho quando a periculosidade é ignorada com tanta veemência.]
Por conta dessa decisão de José Ale Ahmad Neto, o filho da sua colega
não deve mais ser julgado por associação ao tráfico e venda de armas de grosso
calibre, mas por ser doente e usuário de drogas. [Uma solução para acalmar a opinião pública: as agências fingem estar cumprindo a lei e só o fizeram porque se viram forçadas a isso, o que chamamos de "criminalização por comportamento grotesco" ― o crime é tão grave que não dá para fazer vista grossa. Na verdade, estão protegendo o acusado privilegiado. Em vez de cadeia, internação em clínica particular, com acesso a todo conforto que a família pode proporcionar-lhe.]
O local do tratamento de Breno ainda não foi definido. O Tribunal de
Justiça determinou que fosse em Campo Grande, apesar do pedido da mãe para que
se realizasse em Atibaia (SP).
Só que as duas clínicas da Capital, Nosso Lar e Carandá, segundo a
defesa, informaram que não possuem vaga para receber o réu.
Segundo o blog O Jacaré, a história daqui para frente passa a ser um
mistério, já que a defesa de Breno pediu, e os desembargadores decretaram,
segredo de Justiça no caso. [Outro fato inusitado. A regra é que processos criminais sejam públicos, mas motivos específicos podem determinar a decretação do segredo de justiça: situações envolvendo crianças e adolescentes; crimes sexuais; investigações que envolvam quebra de sigilo de dados pessoais ou bancários ou que versem sobre organizações criminosas. Não está claro qual seria o fundamento no caso deste acusado que, afinal, é apenas um usuário de maconha, segundo o desembargador.]
Entre outras coisas, as investigações realizadas pela Polícia Federal
apontam que Breno teria participado ativamente da orquestração para garantir a
fuga de Tiago Vinicius Vieira, chefe de uma facção criminosa, em março deste
ano do presídio de Três Lagoas. [Parece uma acusação de crime muito grave, não? Para o judiciário do Mato Grosso do Sul, não é.]
O caso revela muito do que é o Partido da Justiça Brasileira. Uma lei
pra alguns, outra lei para muitos.
[Agora você se informa melhor e tira as suas conclusões.]
OAB: e pur si muove
Sou extremamente crítico ao modo como são realizados os concursos públicos no Brasil ― atividade que se tornou uma rentável indústria e, como tal, incompatibilizada com a valorização do conhecimento científico. Sem meias palavras, concursos públicos são imbecilizantes, mormente no que tange às provas objetivas. As subjetivas favorecem outras habilidades além da memorização, mas se essas habilidades não tiverem peso relevante na correção, de nada adiantará.
Como demonstra o histórico deste blog, sou amplamente favorável ao exame da Ordem, questionando entretanto o modo de sua execução. Quanto mais se aproxima do estilo concurso público, pior. No entanto, há uma grande diferença entre os concursos, que se esgotam em si mesmos, pois têm uma finalidade específica de selecionar para o provimento de certo número de cargos, e o exame da OAB, que pode ser posto em uma perspectiva temporal. Com efeito, ainda que mude a instituição executora, trata-se da mesma instituição comandando um processo de verificação de proficiência, sem caráter classificatório além do "apto". Com isso, podemos identificar os movimentos que a OAB faz para adequar seu exame a diferentes contextos.
Antes da unificação nacional (2010), já observávamos um fenômeno curioso. Os candidatos consideravam certa disciplina mais fácil e se inscreviam nela para a segunda fase (conhecimentos específicos). O aumento da demanda fazia a OAB reagir e, de repente, aquela disciplina oferecia uma prova complicadíssima. Daí os candidatos em busca de facilidade migravam para a área menos exigente, de acordo com os últimos certames. Com a unificação, nossa instituição ganha maior capacidade para tomar decisões sobre a estrutura da prova e, com isso, implementar uma visão específica de política profissional.
Noticia-se hoje que a OAB surpreendeu candidatos e a indústria concurseira com uma prova de estrutura diferente (veja matéria aqui). Basicamente, suprimiu questões das áreas de ética (deontologia) e direitos humanos, transferindo-as para processo civil, processo penal e direito tributário. Vale dizer, reduziu o campo da formação humanista e aumentou o das disciplinas profissionalizantes, notadamente processo. Sintomático, claro. Faz-me pensar se isso não favorece, em última análise, um profissional mais técnico e menos cidadão. Isso me preocupa, dada a imagem que a profissão de advogado já possui. Segundo a matéria, as questões de ética (na verdade, não é apenas ética, mas normas próprias da atividade advocatícia) estavam voltadas a temas técnicos, tais como sociedade de advogados e mais processo.
Não tenho como saber se o movimento feito pela OAB indica, realmente, um redesenho na expectativa de perfil profissional ou se foi algo mais imediatista: gerar uma prova mais difícil ou talvez, apenas, surpreender, sinalizando que não adianta buscar zonas de conforto. Certamente, a prova do XXIII Exame de Ordem Unificado, aplicada ontem, mandou um recado para os cursinhos: reinventem-se, porque nós estamos vivos e vamos sempre buscar abordagens diferentes. E vocês nunca saberão quando. A velha estratégia de buscar o acervo de provas já aplicadas para fazer prognósticos sobre o que tem maior propensão de ser cobrado na próxima acaba de ficar mais insegura.
Não sou especialista nesse tipo de avaliação. Esta postagem mais não é do que uma mera opinião, mas acredito que o maior impacto desse tal recado não recai sobre os candidatos. Afinal, estes dispõem de um edital e precisam se preparar para o que vem pela frente. O impacto maior recai sobre a indústria concurseira, que vende um serviço com todo um marketing de suposta eficiência, medida por índices de aprovação, e precisará agir com maior inteligência doravante. Só macete não vai adiantar.
Termino como comecei: provas são imbecilizantes quando enfatizam, sobretudo, a habilidade de memorização, forçada por conteúdos programáticos gigantes que são sondados por meio de provas acríticas, fortemente presas à letra da lei. Ao fim e ao cabo, provas construídas sobre temas instigantes, sobre a realidade da vida ― e não aquela baboseira de Caio, Tício e Mélvio enredados em uma trama rocambolesca ―, que ensejam a tomada de decisão e a assunção de posturas, seguem sendo um caminho mais garantido para a formação de bons profissionais. E de bons cidadãos.
Nossos alunos precisam pensar de verdade, não apenas reproduzir. Trata-se de uma estratégia tão vetusta quanto eficaz.
Como demonstra o histórico deste blog, sou amplamente favorável ao exame da Ordem, questionando entretanto o modo de sua execução. Quanto mais se aproxima do estilo concurso público, pior. No entanto, há uma grande diferença entre os concursos, que se esgotam em si mesmos, pois têm uma finalidade específica de selecionar para o provimento de certo número de cargos, e o exame da OAB, que pode ser posto em uma perspectiva temporal. Com efeito, ainda que mude a instituição executora, trata-se da mesma instituição comandando um processo de verificação de proficiência, sem caráter classificatório além do "apto". Com isso, podemos identificar os movimentos que a OAB faz para adequar seu exame a diferentes contextos.
Antes da unificação nacional (2010), já observávamos um fenômeno curioso. Os candidatos consideravam certa disciplina mais fácil e se inscreviam nela para a segunda fase (conhecimentos específicos). O aumento da demanda fazia a OAB reagir e, de repente, aquela disciplina oferecia uma prova complicadíssima. Daí os candidatos em busca de facilidade migravam para a área menos exigente, de acordo com os últimos certames. Com a unificação, nossa instituição ganha maior capacidade para tomar decisões sobre a estrutura da prova e, com isso, implementar uma visão específica de política profissional.
Noticia-se hoje que a OAB surpreendeu candidatos e a indústria concurseira com uma prova de estrutura diferente (veja matéria aqui). Basicamente, suprimiu questões das áreas de ética (deontologia) e direitos humanos, transferindo-as para processo civil, processo penal e direito tributário. Vale dizer, reduziu o campo da formação humanista e aumentou o das disciplinas profissionalizantes, notadamente processo. Sintomático, claro. Faz-me pensar se isso não favorece, em última análise, um profissional mais técnico e menos cidadão. Isso me preocupa, dada a imagem que a profissão de advogado já possui. Segundo a matéria, as questões de ética (na verdade, não é apenas ética, mas normas próprias da atividade advocatícia) estavam voltadas a temas técnicos, tais como sociedade de advogados e mais processo.
Não tenho como saber se o movimento feito pela OAB indica, realmente, um redesenho na expectativa de perfil profissional ou se foi algo mais imediatista: gerar uma prova mais difícil ou talvez, apenas, surpreender, sinalizando que não adianta buscar zonas de conforto. Certamente, a prova do XXIII Exame de Ordem Unificado, aplicada ontem, mandou um recado para os cursinhos: reinventem-se, porque nós estamos vivos e vamos sempre buscar abordagens diferentes. E vocês nunca saberão quando. A velha estratégia de buscar o acervo de provas já aplicadas para fazer prognósticos sobre o que tem maior propensão de ser cobrado na próxima acaba de ficar mais insegura.
Não sou especialista nesse tipo de avaliação. Esta postagem mais não é do que uma mera opinião, mas acredito que o maior impacto desse tal recado não recai sobre os candidatos. Afinal, estes dispõem de um edital e precisam se preparar para o que vem pela frente. O impacto maior recai sobre a indústria concurseira, que vende um serviço com todo um marketing de suposta eficiência, medida por índices de aprovação, e precisará agir com maior inteligência doravante. Só macete não vai adiantar.
Termino como comecei: provas são imbecilizantes quando enfatizam, sobretudo, a habilidade de memorização, forçada por conteúdos programáticos gigantes que são sondados por meio de provas acríticas, fortemente presas à letra da lei. Ao fim e ao cabo, provas construídas sobre temas instigantes, sobre a realidade da vida ― e não aquela baboseira de Caio, Tício e Mélvio enredados em uma trama rocambolesca ―, que ensejam a tomada de decisão e a assunção de posturas, seguem sendo um caminho mais garantido para a formação de bons profissionais. E de bons cidadãos.
Nossos alunos precisam pensar de verdade, não apenas reproduzir. Trata-se de uma estratégia tão vetusta quanto eficaz.
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