Tenho um jogo que pratico comigo mesmo: especular. Imagino coisas, às vezes absurdas, e me ponho a elucubrar sobre seus desdobramentos. Dia desses, pus-me a matutar sobre a seguinte questão: se eu fosse presidente da República (eleito, tá? legítimo!), e precisasse indicar alguém para uma vaga no Supremo Tribunal Federal, quem seria essa pessoa?
Como se pode ver nos arquivos aqui do blog, e também como afirmei em inúmeras ocasiões, em aulas e palestras, pagamos um preço elevado pela inexistência de um penalista na Suprema Corte. Não se trata de bairrismo, e sim de identificar as cada vez mais frequentes e despudoradas agressões contra a Constituição de 1988, perpetradas por quem deveria defendê-la. Não é apenas uma questão de conhecimento, mas de experiência no campo e de sensibilidade. Até de humanidade. Basta ver que uma mente processualista civil (Teori Zavascki) comandou uma das mais obscenas inconstitucionalidades de que temos notícia: a execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação. Aos que quiserem dizer que a mentalidade processualista civil não tem nada a ver, recomendo que leiam o acórdão e vejam quais foram os argumentos do relator. Formalidades, eficientismo, estatísticas: tudo, menos principiologia penal.
Pensando em um nome para o STF, o primeiro que me vem à mente é o do advogado paranaense Juarez Cirino dos Santos. Maior criminólogo brasileiro, esquerdista convicto, dono de um belíssimo currículo e de uma reputação verdadeiramente ilibada (no sentido lato da palavra e não como aplicada para preenchimento de certos cargos), sua presença na Suprema Corte certamente tiraria todos da zona de conforto. De quebra, o mestre Juarez é de uma simplicidade marcante. Em evento ocorrido aqui em Belém, não faz muito tempo, no qual ele era homenageado, o professor chegou sozinho e, ao encontrar um grupo de pessoas à porta do auditório (era onde eu estava), abriu um largo sorriso e disse: "Boa noite. Eu sou o Juarez". Fosse uns e outros por aí, que não têm um décimo de seu conhecimento e muito menos do seu caráter, teria chegado com um séquito de puxa-sacos.
Ocorre que Juarez já tem 75 anos, o que inviabiliza legalmente a sua indicação ao cargo. Só legalmente, porque ele tem toda a energia necessária para revolucionar aquela corte. Diante disso, acredite, eu me permiti uma longa reflexão sobre o tema, como se realmente precisasse indicar alguém. Gastei um tempo na internet, lendo informações sobre meus possíveis ungidos. E, ao final desse exercício, cheguei a uma conclusão. Eu indicaria:
Vera Regina Pereira de Andrade. Com pós-doutorado em Criminologia e Direito Penal, tem vasta experiência acadêmica nos três eixos da educação superior: ensino, pesquisa e extensão, sendo professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina e também visitante em diversas instituições, inclusive na Espanha, além de pesquisadora do CNPq. E, sim, também uma pessoa muito cordial e acessível.
Sua indicação ajudaria a suprir o déficit de representação feminina no STF, que hoje só tem duas mulheres (que, convenhamos, não fazem lá muita diferença, considerando as decisões proferidas), especialmente pelo conhecido engajamento de Vera de Andrade nas agendas feministas. Mas seu compromisso com a afirmação da cidadania envolve outras lutas e se deu a conhecer em sua valorosa produção científica. Ela traria ventos de humanidade e de busca por igualdade, justamente onde esses ideais são mais necessários.
Vamos brincar de presidente (legítimo!)? Quem seria o seu indicado? Diga o nome e seus motivos para escolhê-lo.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
Multiculturalismo do deboche
Nunca antes vi tantas pessoas defendendo a liberdade de expressão e o direito de sustentar suas convicções e opiniões. Mas essas bandeiras sempre existiram. O que mudou, afinal? Tenho uma hipótese, que compartilho neste momento.
A resposta estaria nas potencialidades trazidas pela internet. Para o bem e para o muito mal, qualquer incluído digital pode (no sentido de estar fisicamente apto a, e não no de ser eticamente legitimado a) defender qualquer ponto de vista e obter um enorme alcance para as suas manifestações. Graças a isso, e em especial à capacidade de aglutinação de interesses comuns, gerando movimentos espontâneos e ampla repercussão pública, aqueles que historicamente sempre reivindicaram liberdades e direitos puderam, enfim, ser escutados e, com isso, ter algumas de suas agendas implementadas.
Esses reivindicantes correspondem às chamadas minorias sociais. Não tenho dúvidas de que, não fosse pela capilaridade proporcionada pelos recursos da internet, muitas pautas defendidas por movimentos sociais seguiriam ignoradas pelos grupos aboletados nas instâncias de poder. Mulheres, negros, LGBT e, até mesmo, trabalhadores não teriam sido ouvidos. Que motivo haveria para a reforma da previdência do governo golpista ter sido barrada, sem sequer chegar aos plenários do Congresso Nacional? Não teriam os congressistas se sentido ameaçados pelos eleitores que, no próximo ano, irão às urnas?
O fato (segundo vejo) é que, agora, o outro lado do balcão passou a postular liberdades e direitos. Se eu fizer uma manifestação séria, ou mesmo uma piada, que possa ser interpretada como machista, racista, homofóbica, pedófila, etc., a reação será poderosa. Posso ter meus apoiadores, mas meus opositores compartilharão à exaustão os prints de tela. Campanhas serão feitas para identificar ou localizar o sujeito. Avisos serão mandados ao empregador, a fim de que o fulano seja posto na rua. Essas coisas têm acontecido. Resulta daí que os canalhas de ontem e de hoje, que sempre foram livres para fazer e dizer tudo o que pensam, agora... pedem liberdades e direitos.
Precisamos refletir. A Igreja Católica permitia liberdade religiosa? Foi receptiva à reforma protestante, que acabou de completar 500 anos? Os brancos são humanos com os negros e indígenas? Os colonizadores foram decentes com os autóctones? Os homens são justos com as mulheres e abriram espaço à população LGBT? Os nacionais são generosos com os imigrantes? Os ricos são amigáveis com os pobres? Os brasileiros do Centro-Sul são respeitosos com os do Norte e Nordeste? Os ditadores permitem dissidências?
A questão me parece muito clara: há grupos que sempre estiveram no poder e o exerceram da maneira mais absoluta e desumana possível. Seus herdeiros e sucessores estão aí, por toda parte, como se vê pelas manifestações nas redes sociais e caixas de comentários dos portais de notícias. Também estão nos governos e no Congresso Nacional, fazendo cultos em prédios públicos, cerceando direitos, debochando das minorias e propondo que se curvem às maiorias. Que, por sinal, nem são maiorias numéricas. Mas uma vez que se vejam pressionadas pelo Big Brother orwelliano da vida real, clamam, exigem liberdades e direitos. Exatamente o que jamais fariam em relação a ninguém.
É por isso que classifico como deboche, o mais rematado cinismo, essa atitude súbita e surpreendentemente pluralista. Porque não há pluralismo algum. Não há tolerância, mas apenas um profundo defensivismo do canalha, que se vê perplexo ante a dificuldade de continuar sendo canalha como sempre foi, já que para ele isso é a coisa mais natural do mundo. São esses que criarão a "ditadura do politicamente correto", a "ideologia de gênero", a "defesa da família" e inúmeros outros chavões. São os obreiros da última hora, que apareceram de repente para defender as liberdades constitucionais, a igualdade e outros valores, dos quais se lembram apenas e tão somente quando se sentem por baixo.
Compete a cada um de nós decidir se aplicaremos essa suposta concepção de liberdade e de justiça. Muitos conhecidos meus defendem que precisamos assegurar os direitos de nossos opositores, inclusive para não descermos ao nível deles. Olho com extrema desconfiança essa postura, por motivos históricos. Para afirmar seus direitos, as mulheres não tiraram nada dos homens. Os homens é que acreditam que seu papel no mundo depende do pisoteio e da exploração sexual das mulheres. Um umbandista jamais tentará impedir um cristão de sê-lo, mas os cristãos têm massacrado há séculos os adeptos de outros credos. Em 2017, umbandistas estão sendo espancados pelo simples fato de andarem nas ruas ou sendo torturados por traficantes evangélicos. A diferença é clara: enquanto uns querem apenas o direito de existir em paz, outros querem seguir oprimindo.
É por isso que travo minha batalha íntima em torno do que fazer neste mundo. Não serei eu a impedir as liberdades dos outros, mas não vou embarcar, por enquanto, nesse discurso de deixar os fascistas à vontade. Se já tivéssemos alcançado níveis razoáveis de igualdade, isso seria um preço a se pagar pela convivência no planeta. Mas enquanto permanecermos nessa tensão entre minorias que querem ser indulgentes com seus algozes, e algozes que só querem uma oportunidade para mais violência e opressão, eu realmente recomendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade, como já aconselhava Thomas Jefferson há mais de dois séculos.
A resposta estaria nas potencialidades trazidas pela internet. Para o bem e para o muito mal, qualquer incluído digital pode (no sentido de estar fisicamente apto a, e não no de ser eticamente legitimado a) defender qualquer ponto de vista e obter um enorme alcance para as suas manifestações. Graças a isso, e em especial à capacidade de aglutinação de interesses comuns, gerando movimentos espontâneos e ampla repercussão pública, aqueles que historicamente sempre reivindicaram liberdades e direitos puderam, enfim, ser escutados e, com isso, ter algumas de suas agendas implementadas.
Esses reivindicantes correspondem às chamadas minorias sociais. Não tenho dúvidas de que, não fosse pela capilaridade proporcionada pelos recursos da internet, muitas pautas defendidas por movimentos sociais seguiriam ignoradas pelos grupos aboletados nas instâncias de poder. Mulheres, negros, LGBT e, até mesmo, trabalhadores não teriam sido ouvidos. Que motivo haveria para a reforma da previdência do governo golpista ter sido barrada, sem sequer chegar aos plenários do Congresso Nacional? Não teriam os congressistas se sentido ameaçados pelos eleitores que, no próximo ano, irão às urnas?
O fato (segundo vejo) é que, agora, o outro lado do balcão passou a postular liberdades e direitos. Se eu fizer uma manifestação séria, ou mesmo uma piada, que possa ser interpretada como machista, racista, homofóbica, pedófila, etc., a reação será poderosa. Posso ter meus apoiadores, mas meus opositores compartilharão à exaustão os prints de tela. Campanhas serão feitas para identificar ou localizar o sujeito. Avisos serão mandados ao empregador, a fim de que o fulano seja posto na rua. Essas coisas têm acontecido. Resulta daí que os canalhas de ontem e de hoje, que sempre foram livres para fazer e dizer tudo o que pensam, agora... pedem liberdades e direitos.
Precisamos refletir. A Igreja Católica permitia liberdade religiosa? Foi receptiva à reforma protestante, que acabou de completar 500 anos? Os brancos são humanos com os negros e indígenas? Os colonizadores foram decentes com os autóctones? Os homens são justos com as mulheres e abriram espaço à população LGBT? Os nacionais são generosos com os imigrantes? Os ricos são amigáveis com os pobres? Os brasileiros do Centro-Sul são respeitosos com os do Norte e Nordeste? Os ditadores permitem dissidências?
A questão me parece muito clara: há grupos que sempre estiveram no poder e o exerceram da maneira mais absoluta e desumana possível. Seus herdeiros e sucessores estão aí, por toda parte, como se vê pelas manifestações nas redes sociais e caixas de comentários dos portais de notícias. Também estão nos governos e no Congresso Nacional, fazendo cultos em prédios públicos, cerceando direitos, debochando das minorias e propondo que se curvem às maiorias. Que, por sinal, nem são maiorias numéricas. Mas uma vez que se vejam pressionadas pelo Big Brother orwelliano da vida real, clamam, exigem liberdades e direitos. Exatamente o que jamais fariam em relação a ninguém.
É por isso que classifico como deboche, o mais rematado cinismo, essa atitude súbita e surpreendentemente pluralista. Porque não há pluralismo algum. Não há tolerância, mas apenas um profundo defensivismo do canalha, que se vê perplexo ante a dificuldade de continuar sendo canalha como sempre foi, já que para ele isso é a coisa mais natural do mundo. São esses que criarão a "ditadura do politicamente correto", a "ideologia de gênero", a "defesa da família" e inúmeros outros chavões. São os obreiros da última hora, que apareceram de repente para defender as liberdades constitucionais, a igualdade e outros valores, dos quais se lembram apenas e tão somente quando se sentem por baixo.
Eu devo ser leniente com pedidos de liberdade de escrever e divulgar coisas como esta? |
É por isso que travo minha batalha íntima em torno do que fazer neste mundo. Não serei eu a impedir as liberdades dos outros, mas não vou embarcar, por enquanto, nesse discurso de deixar os fascistas à vontade. Se já tivéssemos alcançado níveis razoáveis de igualdade, isso seria um preço a se pagar pela convivência no planeta. Mas enquanto permanecermos nessa tensão entre minorias que querem ser indulgentes com seus algozes, e algozes que só querem uma oportunidade para mais violência e opressão, eu realmente recomendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade, como já aconselhava Thomas Jefferson há mais de dois séculos.
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