Se eu fosse presidente da República, general do Exército estaria preso neste momento, por ameaçar a ordem democrática. Só por cogitar do assunto ele já estaria na cela, assim como qualquer um que lhe sorrisse.
Mas existem umas categorias, neste país, que podem falar e fazer qualquer sandice e ninguém se move. Somos um caso perdido. Tenho pena de nossas crianças e dos incapazes mentais. Para os demais, já estou achando que merecem tudo de ruim que venha por aí. Eu, inclusive.
Mas existem umas categorias, neste país, que podem falar e fazer qualquer sandice e ninguém se move. Somos um caso perdido. Tenho pena de nossas crianças e dos incapazes mentais. Para os demais, já estou achando que merecem tudo de ruim que venha por aí. Eu, inclusive.
NOLITE TE BASTARDES CARBORUNDORUM(*)
Provocado por uma acusação de defender "garantismo seletivo", respondi que minha proposta dizia respeito a prisão disciplinar, não a processo penal. Ninguém sensato defende a utilização do direito penal como forma de solucionar conflitos, sejam eles individuais ou sociais. Ainda no século XIX o grande jurista brasileiro Tobias Barreto (1839-1889) já desvelava a incapacidade do direito penal de enfrentar os verdadeiros problemas do país, limitando-se a funcionar como expressão da força que o Estado possui, a tal violência legítima, como aprendi na disciplina Introdução ao estudo do Direito I, nos idos de 1992, expressão essa a que, hoje, me oponho com convicção.
Sou reticente, por incredulidade, em relação ao abolicionismo penal (que considero um belo objetivo, pelo qual deveríamos trabalhar, mas que só poderíamos alcançar se fôssemos criaturas melhores do que somos, e eu me refiro à espécie humana), de modo que nunca propus a eliminação do crime e da pena como reação a certas práticas, cuja seleção não convém investigar neste momento, para evitar perda de foco. Por conseguinte, somente aí eu já teria motivos para não enxergar incoerência em minha postura.
Acima de tudo, porém, se o limite para tolerarmos a punição é a gravidade da conduta e a sua intencionalidade, então a minha justificativa existe. Afirmei que, se em tempos de paz a sugestão de um golpe militar já é gravíssima, em tempos de grave instabilidade institucional, como a que vivemos, o nível de irresponsabilidade desse tipo de manifestação é inadmissível, notadamente porque feita por um general do Exército, cuja imagem do perfil, no Twitter, obviamente o mostra todo engalanado, passando às pessoas a ideia de que está no exercício da função militar (embora, na verdade, seja um oficial da reserva). Por conseguinte, o cidadão comum verá, naquela postagem, o próprio Exército falando, percepção que se confirmará à medida que outros malfeitores de farda se pronunciaram, chegando ao ponto de se declararem prontos para a ação.
Tais ações inflamam ainda mais as ações dos inúmeros políticos oportunistas; de expoentes dos setores mais reacionários da sociedade, interessados em consolidar a extrema direita no poder custe o que custar; e da gigantesca malta de imbecis que, não tendo quaisquer recursos para resistir à violência de Estado, acreditam-se inteligentes e moralmente superiores por conclamá-la. Por conseguinte, retomando mais uma vez a máxima do filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994), não devemos ser tolerantes com os intolerantes. Enquanto deturpamos a liberdade de expressão em favor daqueles que jamais teriam a mesma atitude conosco, eles ganham força para suas atrocidades.
Para minimizar o impacto de minhas preferências políticas sobre a análise (outra crítica que recebi), gostaria de acrescentar à manifestação um aspecto objetivo, normativo e que independe da minha vontade. Refiro-me ao Decreto n. 4.346, de 26.8.2002, que "aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências". Nem vou comentar; apenas transcrever algumas passagens:
Art. 1º O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas.
Art. 2º Estão sujeitos a este Regulamento os militares do Exército na ativa, na reserva remunerada e os reformados.
Art. 8º A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar.
§ 1º São manifestações essenciais de disciplina:
IV - a colaboração espontânea para a disciplina coletiva e a eficiência das Forças Armadas.
§ 2º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos permanentemente pelos militares na ativa e na inatividade.
Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.
ANEXO I - RELAÇÃO DAS TRANSGRESSÕES
5. Deixar de punir o subordinado que cometer transgressão, salvo na ocorrência das circunstâncias de justificação previstas neste Regulamento;
32. Assumir compromissos, prestar declarações ou divulgar informações, em nome da corporação ou da unidade que comanda ou em que serve, sem autorização;
59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado;
Com base nos dispositivos acima, ratifico minha manifestação, inclusive ressaltando que a ausência de punição dos generais que se pronunciaram configura, no mínimo, a transgressão do item 5, acima. Contudo, o § 1º do art. 14 do R-4 dispõe que "Quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar". E enxergo indícios de crime, possível prevaricação ou condescendência criminosa (arts. 319 e 322 do Código Penal Militar), a depender de maiores informações, de que não disponho.
Não me apraz ficar em cima do muro. Mas não é pelo fato de eu assumir minhas convicções ― evitando a simulação de isenção, que não existe ―, que eu necessariamente esteja de má-fé. Às vezes, as coisas realmente são o que parecem. Como neste caso, em que as manifestações dos generais são ilícitas e reclamam resposta oficial à altura.
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(*) Expressão celebrizada na literatura pelo romance O conto da aia, de Margaret Atwood, vai-se popularizando graças ao enorme sucesso da série de TV. Parece latim, mas não é. No romance, é esclarecido que se trata de uma brincadeira de estudantes, mas aplicadas as regras do latim seria possível chegar a uma tradução como "não deixes que os bastardos te esmaguem" ou "te derrubem". Além de ser um excelente conselho, considerando que aquela obra nos compele a lutar contra o totalitarismo, nada mais oportuno para este momento da vida brasileira.