quinta-feira, 28 de maio de 2020

Fogo anda comigo?


Sou apaixonado pelo fogo. Ele traz uma paleta de tons de amarelo, minha cor favorita. É luminoso e eu adoro luz. Ele conversa conosco, crepitando. Ele carrega um poder imenso, avassalador e destrutivo, como poucas coisas no mundo conseguem fazer, mas também pode ser associado à renovação da vida, como acontece em terrenos varridos por lava vulcânica. O fogo é respeitado, temido, adorado ou repudiado, mas ninguém lhe fica indiferente. Provavelmente por isso ele também é um símbolo em várias culturas. O Livro do Êxodo diz que Deus falou com Moisés sob a forma de uma sarça ardente. Na mitologia grega, a fênix era um pássaro que morria em autocombustão, porém retornava de suas cinzas.

São tantos os símbolos que, quando se quer fazer um protesto, o fogo é uma linguagem recorrente. Pode-se destruir de várias formas, mas incendiar exige um nível de ousadia que sugere o tamanho da intolerabilidade daquilo contra que se protesta.

A foto acima mostra uma delegacia da cidade estadunidense de Minneapolis sendo consumida pelas chamas. A população em fúria também incendiou e saqueou diversas lojas e, perdoem o trocadilho, pôs mais combustível em uma onda de protestos que se alastra por várias cidades. Tudo começou quando a polícia daquela cidade, com sua longa lista de abusos racistas, matou George Floyd, negro, 46 anos, por asfixia. Um policial branco apertou seu joelho contra o homem já indefeso por vários minutos, provocando-lhe a morte, mesmo com ele implorando pela vida, avisando que não conseguia respirar. Asfixia, vale lembrar, provoca tanto sofrimento que é utilizada como técnica de tortura.

A imprensa está lembrando caso semelhante, de morte por asfixia, ocorrido no passado e que também gerou protestos intensos, mas o rol de brutalidade policial nos Estados Unidos é interminável e, por isso mesmo, há reação dessa espécie e nessa intensidade. E no Brasil? A letalidade policial contra negros e pobres, conceitos que se confundem em nossa realidade, é uma característica indissociável do cotidiano. Sendo que aqui temos uma obsessão por balas perdidas, supostas trocas de tiros e autos de resistência. Este ano estamos contabilizando um aumento de vítimas entre crianças e adolescentes.

O mote desta postagem é: e nós, brasileiros, protestaríamos assim? Além da experiência yankee, que clama contra a desigualdade racial, temos o exemplo dos franceses, habitués de incendiar prédios e veículos quando o governo tenta emplacar alguma medida que lhes retire direitos, trabalhistas, p. ex. O que pretendo dizer é, literalmente, mobilizar uma força extrema por uma boa causa. Não parece ser do nosso feitio. Nem as famosas jornadas de junho de 2013 tiveram essa feição.

Nossa tradição autoritária, que antecede a ditadura civil-militar de 1964-1985, gosta de enfatizar a expressão "protesto pacífico". De um modo geral, o brasileiro médio costuma tachar de vagabundo qualquer um que proteste, porque protesta por liberdade ou por direitos. Às vezes, pela vida. É como se manifestações somente fossem toleráveis quando "pacíficas". Qualquer força do ativista provoca a deslegitimação da luta, seja qual for. Assim fica fácil para o opressor. Porque este segue monopolizando a violência, inclusive e principalmente a de Estado, incensado pela opinião pública, com amplo suporte dos veículos de comunicação.

Lamento informar, contudo, que está cada vez mais próximo o dia em que os protestos levarão a atos de destruição colossais como esse da foto. Só que os incendiários não estarão protestando por liberdade, por direitos ou pela vida. Eles estarão construindo um novo período de exceção, a destruição da democracia e a aniquilação de direitos populares. São as pessoas que se vestem de verde e amarelo para mandar seus serviçais acompanhá-los nas passeatas ou carreatas. São as pessoas que disparam tiros contra um ônibus em movimento, sem se importar com quem poderia morrer, só porque lá dentro viaja um pré-candidato que odeiam. São as pessoas que agridem para fazer recuar os jornalistas. São os empresários que subjugam seus funcionários, para que se fantasiem ou se ajoelhem pela causa que impõem. São os terroristas da internet. São os incendiários da floresta. E o prédio a arder será algum que se oponha a suas intenções, p. ex. a sede de um Supremo Tribunal Federal ou a sua casa, se você tiver, p. ex., se manifestado em uma rede social contra eles.

E nós estamos deixando os cães hidrófobos tomarem conta de tudo. Pelo visto, e como sempre, não aprendemos com o nosso passado nem com a a experiência alheia.

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Usei informações publicadas em https://oglobo.globo.com/mundo/policia-de-minneapolis-acusada-de-racismo-enfrenta-ira-da-cidade-apos-morte-de-negro-24449859, mas o caso está sendo amplamente divulgado pela imprensa.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Meu novo normal?

É uma segunda-feira qualquer. Já anoiteceu.

Enquanto o bebê dorme, saio do meu cantinho de trabalho, estabelecido há anos, e desço para a sala de estar, que praticamente não usamos. Precisei fazer isso para trabalhar, já que no quarto não é possível acender luzes e fazer barulho, temporariamente, até o berço ser deslocado para o seu local definitivo, no quarto de Margot. Júlia, a primogênita, é pré-adolescente, então está fechada no quarto, fazendo as suas coisas.

Trabalho cuidando dos meus processos, por meio do processo judicial eletrônico, o famigerado PJe. O sinal de internet neste ponto da casa não é o melhor, mas está bastando. Consigo trabalhar enquanto escuto Planeta fome, disco de Elza Soares. Muitos versos fortes e necessários.

Mais cedo, terminamos de ver uma série que acompanhávamos. La casa de las flores. É quase inacreditável que eu me tenha dedicado a uma comédia, mas essa é mexicana e valeu a pena. Principalmente a sua inesquecível cena, no quinto capítulo da terceira temporada, em que a personagem Paulina de la Mora briga com alguém perguntando se ele é burro, se nasceu no Alabama ou se tem Bolsonaro no sobrenome. O mundo inteiro concorda comigo nesse ponto. Que fazer?

Paulina: para sempre em nossos corações

Enquanto a pandemia grassa lá fora e o Brasil, sem governo, cuidado ou decência, segue acumulando mortos, aqui no Pará as autoridades tentam nos convencer de que a curva de contágio está em queda na capital, embora aumente perigosamente no interior. Hoje foi o primeiro dia sem lockdown, após duas semanas. O povo achou que já era um liberou geral. Por ignorância, uns, e esperteza, outros.

Dito tudo isto, informo que esta postagem não possui nenhum assunto especial, não. Tenho lido postagens antigas e sentido tanto prazer em relembrar eventos passados que, talvez, este blog pouco atualizado tenha, finalmente, encontrado a sua vocação: ser o que os blogs supostamente eram quando surgiram ― diários pessoais, só que eletrônicos. Algo para que seus donos possam conservar memórias. O acesso à internet nos convenceu de que éramos todos especiais e que nossas palavras, e em especial nossas opiniões, mereciam ser difundidas mundo afora. E, pasmem, que alguém se daria ao trabalho de lê-las. A grande rede criou vários novos transtornos mentais, um deles relacionado à caça por seguidores.

Da minha parte, a esta altura da vida, só penso em uma coisa nesta noite quente, mas ainda suportável: em relação a algumas coisas, cheguei onde queria; em relação a outras, não poderia estar mais longe. Deve ser assim com a esmagadora maioria das pessoas mundo afora, aquelas que são pessoas comuns. Já deve ser um privilégio ficar na casa dos 50%.

Mas, enfim, um dia eu hei de ler estas palavras e gostar do nada que significam para você, eventual leitor, e do muito que significam para mim, já que se trata da minha vida. Da vida real. Sem qualquer fantasia. Para mim, sua existência está justificada.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Uma mente mais ou menos isolada

Já estamos na segunda quinzena de maio. Mais um pouco e se acabará o quinto mês do ano. E já se está completando o segundo mês desde o momento em que percebi que, sim, eu não devia mais sair de casa. Não que eu estivesse na rua o tempo inteiro. Ao contrário. Esposa em fim de gestação, várias atividades já suspensas (notadamente aulas e aquelas ligadas a meu trabalho como advogado). Mas eu ainda achava que podia fazer um lanche em uma padaria ou até ver O homem invisível no cinema. Essas atividades ainda funcionavam. E eu não tinha lá muita experiência com pandemias globais.

Recolhi-me em casa, então, embora àquela altura fosse um arremedo de isolamento. Por causa da gestação, havia consultas e exames do pré-natal para fazer. Polyana não saía de casa para nada além disso, mas eu saía para farmácia, supermercado e outras tarefas domésticas. Cortei o cabelo, levei o carro para lavar, coisas que ainda pareciam necessárias e não tão graves assim, tomadas certas cautelas. O Pará ainda não registrava nenhum caso oficial de covid-19. Mas ela chegou, claro, e o isolamento foi ficando cada vez mais rigoroso.

Sou um sujeito caseiro. Estar em casa com a família, cachorra inclusive, tendo acesso a meus livros, filmes e séries, e tendo trabalho para realizar via computador e internet, permitia-me ficar em paz. Estava muito focado na gravidez. Depois que Margot nasceu, obviamente, o foco era ela e suas necessidades. Entramos em um ritmo intenso de adaptação a um novo ser humano, que só se expressa por meio de choro. Foi nesse momento que a pandemia nos afetou de verdade. Tivemos enormes dificuldades para conseguir a consulta pediátrica, que as autoridades sanitárias recomendavam fazer presencialmente, mesmo no contexto do isolamento social. E nosso bebê andava febril há uma semana e meia. E eu mesmo tive uma gripe (???) forte, assim que retornamos da maternidade. Foi um terror.

Durante a consulta, a pediatra mandou a real: "Quero reavaliar Margot daqui a uma semana, mas vamos ver se estarei aqui. Os colegas estão caindo aos montes". Era isso: cada vez mais médicos doentes ou isolados.

Com nossa menina saudável, as coisas foram se ajeitando. Havia apenas as exigências normais de um recém-nascido. Complicado dizer isso, mas a pandemia acabou nos deixando em casa, em família, sem saídas desnecessárias, concentrados. Ajudou-nos a enfrentar o momento de neopaternidade. A única que deu mostras de ansiedade, em momentos pontuais, foi nossa primogênita. Júlia está com 11 anos e 9 meses (e uma inexplicável obsessão por dizer que já tem 12).

Dias atrás, precisei fazer supermercado, atividade que detesto, mas só tem eu para o sacrifício. Andando por entre as gôndolas de mercadorias, tive a sensação de atravessar nuvens de coronavírus. Peguei-me ansioso, pela primeira vez. Voltei para casa assustado. Dois dias depois (o período de incubação é de 2 a 5 dias), comecei a somatizar: tosse e pressão no peito. Disse a mim mesmo que era loucura da minha cabeça. E era. No dia seguinte, estava normal, sem sintoma algum. E assim permaneço, quase um mês e mais um supermercado depois. Nesta última ida, mantive a calma e não somatizei. O período de incubação já passou e ninguém está doente por aqui, que saibamos.

Não há como passar incólume por uma experiência dessas. Não fomos atingidos diretamente, mas amigos próximos tiveram perdas terríveis. Sou solidário, obviamente. E me preocupo com o bem estar psíquico e emocional de todos. Se o contexto em si é péssimo, pior é não termos a menor noção de quanto a pandemia será contida e poderemos, ao menos, circular por aí, imersos no que agora se chama de novo normal. Como qualquer um, quero poder caminhar sem medo, ver um filme, levar minha primogênita para tomar um sorvete. Quero até trabalhar como antes! Afinal, faz parte da vida. Acima de tudo, se essas rotinas forem retomadas, isso significa que as pessoas mais vulneráveis poderão, quem sabe, lutar com seus recursos de antes, sem tantas privações quanto agora. Tomara.

Enfim, desejo a vocês saúde. Que estejam tranquilos, em paz e em condições de conviver com seus amores, mesmo que com visitas virtuais e promessas de abraços. Fiquem bem.