terça-feira, 4 de junho de 2013

Banco de dados genéticos para combate ao crime

Inicialmente, a notícia:

EUA autorizam polícia a fazer exame de DNA de suspeito

A Suprema Corte dos EUA decidiu, nesta segunda-feira (3/6) que a polícia pode colher
amostras para exame de DNA de qualquer pessoa suspeita de haver cometido um crime
"sério" — e não apenas de pessoas já condenadas, como era a prática adotada
nacionalmente até agora, de acordo com o Washington PostLos Angeles Times e
Boston.com.
Aparentemente, a polícia decide o que é crime "sério" e quem será submetido a um exame
de DNA, porque não terá necessidade de conseguir um mandado judicial para isso.
"Quando um policial faz uma prisão e leva um suspeito à delegacia, colher uma amostra da
bochecha da pessoa com um cotonete passa a ser um procedimento comum, tal como
obter impressões digitais e tirar fotografias", escreveu o ministro relator Anthony Kennedy
pela maioria.
A decisão foi tomada pelo tradicional placar de 5 a 4, mas, desta vez, um ministro
conservador votou com a minoria liberal e um ministro liberal votou com a maioria
conservadora. Além de Kennedy, votaram com a maioria o presidente da corte John Roberts,
os ministros Samuel Alito, Clarence Thomas, todos conservadores, e o ministro liberal
Stephen Breyer. O ministro conservador Antonin Scalia escreveu o voto da minoria e foi
apoiado pelas ministras liberais Ruth Bader Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan.
Scalia não apenas votou com a minoria, mas amplificou sua discordância lendo um sumário
de seu voto no Plenário. "A corte abandonou um preceito fundamental da Quarta Emenda da
Constituição, que proíbe o governo de fazer buscas em cidadãos para obter provas, sem
uma causa razoável para acreditar que essas provas serão encontradas", ele escreveu.
"E não se enganem: a partir de agora, se você for preso por qualquer razão, esteja a polícia
certa ou errada, ela vai colher amostras para fazer um exame de DNA e vai colocá-lo em um
banco de dados nacional", afirmou Scalia em sua declaração.
Só o FBI já tem um banco de dados nacional com resultados de exames de DNA de 11 milhões
de pessoas, das quais 1,1 milhão foram efetivamente condenadas por crimes. Agora, esse
número deve crescer muito, dizem os jornais, porque os órgãos de segurança de todos os
estados vão adotar o procedimento.
Até agora, 28 estados e o governo federal autorizavam a colheita de amostras de suspeitos
para exame de DNA. Com a decisão da Suprema Corte, o procedimento passará a ser
nacional, como já era o caso de exames de DNA de pessoas condenadas.
Os ministros vencedores argumentaram que o exame de DNA vai ajudar a polícia a vincular
criminosos a seus crimes e também a identificar inocentes. Mas a melhor utilidade dos exames
de DNA de todas as pessoas que são levadas à delegacia, por qualquer razão, é tentar
encontrar autores de crimes que nunca foram resolvidos.

Esse foi o caso que chegou perante a Suprema Corte. Em 2009, Alonzo Jay King Jr., de
Maryland, foi preso por roubo. Um exame de DNA, feito antes mesmo de ele ser julgado, o
vinculou a um crime de estupro de uma mulher de 53 anos. O estupro, seguido de roubo,
ocorrera há seis anos, mas a polícia ainda não havia encontrado o culpado.
Um tribunal superior de Maryland decidiu que os direitos de King Jr. à privacidade e também
de não ser submetido a buscas irrazoáveis, suspeitas e sem mandado judicial foram violados.
Com a decisão desta segunda-feira, a Suprema Corte anulou a decisão do tribunal de
Maryland e restabeleceu a condenação de King Jr. à prisão perpétua.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2013
A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos pode surpreender alguns, porque aquele país é muito convicto no que tange à proteção das liberdades individuais. Essa é a sua perspectiva político-jurídica originária. Contudo, aquele também é o país berço dos chamados movimentos de lei e ordem, dentre os quais se destaca a mundialmente conhecida política de tolerância zero, que os brasileiros querem porque querem importar.

O fato é que, aparentemente, existe uma tendência mundial ao incremento da repressão penal. Embora tal tendência seja muito mais perceptível e raivosa nos países menos desenvolvidos socialmente, como o Brasil, ela também pode ser percebida em nações de grande desenvolvimento social e educacional, como a Noruega. Quando Anders Breivik, aquele psicopata atirador que matou 77 pessoas numa só ação, foi condenado a 21 anos de prisão, pena máxima prevista na lei penal norueguesa, houve quem propusesse mudanças na lei, para torná-la mais severa. A diferença em que os escandinavos não têm sangue nos olhos nem necessidade de impor sofrimento, por isso a discussão, lá, deve ser feita em termos civilizados. Espero.

O maior problema da decisão ora sob comento é que, como o sistema jurídico estadunidense pertence à common law, a matéria não aparece disciplinada em lei. Não existe uma norma geral e abstrata dispondo sobre os casos em que a coleta de DNA é possível, ficando a cargo do policial de serviço no dia fazer esse julgamento, baseado na única premissa estabelecida: o crime precisa ser "sério".

De um lado, vemos o perigosíssimo fenômeno do Estado policial. Conceder poderes excessivos às polícias é um dos passos mais resolutos para a oficialização da violência e a supressão de direitos individuais, mesmo os mais comezinhos. Isso pode não ser uma realidade tão flagrante nos Estados Unidos, onde as instituições são mais sérias e respeitáveis, de um modo geral (o que não impedem os abusos, obviamente em relação aos grupos mais vulneráveis), mas aqui no Brasil é uma porta larga e aberta para o inferno.

A par disso, a "seriedade" do crime está longe de ser um critério razoável. Ninguém discutirá que um homicídio, um estupro ou um sequestro são crimes graves. Mas, pensemos, p. ex., numa violação de domicílio. No Brasil, é classificado como crime contra a liberdade individual e tem pena máxima cominada de 3 meses de detenção. Tecnicamente, constitui infração de menor potencial ofensivo, nos precisos termos da Lei n. 9.099, de 1995. Mas não duvide que muitos policiais interpretariam a ação de invadir uma residência como crime sério. Afinal, mesmo que nenhum outro dano seja causado a terceiros (o sujeito, sei lá, invadiu porque queria tirar uma soneca embaixo de uma árvore no quintal), poucas coisas impactam tanto o indivíduo quanto descobrir que sua própria casa não é segura como se pensava. E aí vêm as elucubrações consequentes: ele não roubou nem feriu ninguém, mas podia tê-lo feito.

Fica a advertência do ministro Antonin Scalia: a partir de agora, haverá mais investigações iniciadas sem causa provável. Esta não é uma iniciativa que se deva copiar. Mas logo surgirá, por aqui, gente entusiasmada com a ideia.

Nenhum comentário: