sábado, 22 de abril de 2017

Nada de novo no racismo institucional brasileiro




Repercute nos meios jurídicos e na internet a condenação de Rafael Braga Vieira, que em 2013 foi preso em circunstâncias absurdas, no contexto das "jornadas de junho". Um exemplo contundente da criminalização da pobreza, pois o rapaz só portava produtos de limpeza quando de sua prisão. 

Tornado cliente do sistema penal, pouco depois de ser liberado, acabou sendo preso em flagrante, claro, por crimes relativos a drogas (tráfico e associação para o tráfico). Esta semana foi prolatada a sentença condenatória. As penas, somadas, importaram em 11 anos e 3 meses de reclusão, além de multa. Leia aqui sobre o caso. Graças a essa condenação, Rafael está sendo considerado um símbolo do racismo institucional entranhado nas agências punitivas deste país, tema de interesse crescente entre os criminólogos.

A sentença, que pode ser acessada neste link, apresenta alguns fundamentos que eu gostaria de refutar mediante argumentos genéricos, já que desconheço o teor dos autos. Atrevo-me a fazê-lo invocando, inclusive, minha experiência de mais de 11 anos de atuação no judiciário, que permitiu ver todo tipo de absurdo judicial para justificar condenações frágeis e até mesmo insensatas.


1. O juiz diz que a materialidade delitiva está provada pelos laudos toxicológicos e pelo "conjunto probatório, em especial, pela prova testemunhal produzida no decorrer da instrução criminal"

Não há discussão sobre a natureza das substâncias apreendidas. A defesa de Rafael argumenta, justamente, que as drogas foram plantadas pelos policiais, para incriminá-lo. Juízes adoram invocar o "conjunto probatório", para passar a impressão de que existem provas e de que foram bem analisadas, quando na verdade isso não passa de uma alusão genérica, que pode significar qualquer coisa, inclusive nada. A prova testemunhal invocada limitou-se aos depoimentos dos policiais que atuaram durante a prisão de Rafael e essa é outra questão fulcral de sua defesa.

2. "Registre-se que a localidade em que se deu a apreensão do material entorpecente (...) é dominada pela facção criminosa 'Comando Vermelho', conhecida organização criminosa voltada a narcotraficância"

Exemplo gritante e indecente de criminalização da pobreza. O juiz sugere que uma das razões de seu convencimento é o fato de a prisão ter ocorrido em uma área dominada pelo tráfico. Pergunta-se: todas as pessoas que vivem nesse local, ou que passam por lá, têm envolvimento com o tráfico? Por que essa informação seria relevante, a ponto de ser destacada como informação preliminar na sentença? Se a intenção do juiz era relacionar o réu ao Comando Vermelho, bastava aludir ao "C.V." escrito nas embalagens.

3. "Acrescente-se que as substâncias entorpecentes apreendidas já se encontravam devidamente fracionadas, prontas para a mercancia. (...) o local é conhecido como ponto de venda de drogas"

O fato de as drogas estarem endoladas nada aponta acerca da autoria delitiva. Muitas pessoas moram em locais conhecidos como pontos de venda de drogas, ou zonas vermelhas de criminalidade, mas nem por isso podem ser presumidas como criminosas. A certeza do juiz quanto à preparação do material para traficância não pode justificar a condenação de certa e determinada pessoa.

4. A autoria do "nefasto crime" foi negada pelo réu, mas suas "declarações não ostentam base probatória"

De saída, já notamos a dramaticidade do discurso judicial, comum em acusações de tráfico. Mais importante, as declarações do réu não precisam ter base probatória, porque desde o século XVIII o réu não é obrigado a provar sua inocência: a acusação é que precisa demonstrar cabalmente a sua responsabilidade. A Constituição de 1988 assegurar expressamente ao réu o direito ao silêncio. Caso se mantenha calado, não haverá declaração alguma, com ou sem base probatória. Gostaria, então, que o juiz me explicasse: se o réu se cala, tudo bem, mas se ele fala e nega a imputação, isso se volta contra ele? Estamos diante de um modelo no qual a palavra do réu só tem valor quando se trate de confissão?

5. "As testemunhas, arroladas pelo Ministério Público, quais sejam, policiais militares (...) que participaram da prisão em flagrante do réu e apreensão das substâncias entorpecentes (...), apresentaram depoimentos harmônicos entre si, cujo teor de suas declarações faz prova robusta que as substâncias entorpecentes (...) foram encontradas em poder do réu destinavam-se à venda"

O juiz registra que a prova testemunhal se limita aos depoimentos de quatro policiais militares que, por óbvio, têm interesse em legitimar as suas condutas. Aqui surge o que chamo de maneirismos judiciais: fórmulas ou regras genéricas que o judiciário inventa para driblar o dever de fundamentação com informações concretas dos autos.

O primeiro maneirismo corresponde ao fato de que as testemunhas serem policiais não ilide, por si só, a credibilidade de seus depoimentos. Declara a sentença, expressamente: "Não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da palavra dos policiais, eis que agentes devidamente investidos pelo Estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudência." Mais à frente, o juiz deixará claro o extremo valor que confere a "depoimentos prestados pelos Agentes do Estado". São agentes públicos, então são honestos. Simples assim.

O segundo maneirismo é que, como os policiais declararam basicamente a mesma coisa, então os depoimentos são "harmônicos" e isso configura "prova robusta". Nenhuma chance de terem combinado isso. A regra, claro, é aplicada desde que se trate de testemunhas acusatórias. Nunca vi esse argumento ser usado em favor do réu. A pá de cal é que tais policiais não conheciam o réu antes (sabemos mesmo disso?) e, portanto, não teriam interesse em prejudicá-lo.

A sentença passa um certo tempo analisando o teor desses depoimentos e registra que um dos policiais depoentes admitiu não ter presenciado a abordagem e a apreensão das drogas, sendo que seus colegas de farda apenas "lhe disseram" que o réu portava as drogas. Mesmo assim, ele é citado na sentença como elemento de convicção.

A predisposição do juiz a desculpar qualquer vício dos depoimentos dos policiais emerge deste trecho: "É certo que algumas contradições são perfeitamente previsíveis em depoimentos de policiais militares que participam de várias ocorrências policiais, porém, na essência os depoimentos prestados pelos policiais militares neste Juízo são convergentes." Então tá.

6. Desqualificação da testemunha de defesa

Uma vizinha declarou ter visto, da varanda de sua casa, Rafael ter sido abordado e agredido pelos policiais mas, ao sentir do magistrado, suas declarações "visavam tão somente eximir as responsabilidades criminais do acusado em razão de seus laços com a família do mesmo e por conhecê-lo 'por muitos anos' como vizinho". Nenhuma palavra sobre qual o motivo da certeza de que essas relações pessoais a tornariam tão propensa a mentir pelo vizinho. Foi, apenas, um depoimento "isolado".

O único argumento que, abstratamente, teria algum valor na sentença seria a não identificação de lesões no corpo do réu, mas mesmo isso precisaria ser posto em contexto. Policiais sabem bater para não deixar marcas. Até eu sei fazer isso. Faça uma busca pelo Google e encontrará um resultados interessantes, no mau sentido.

7. "a defesa não se desincumbiu do ônus processual no sentido de provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito estatal"

Se, e apenas se, o réu alega um fato impeditivo, pode lhe ser cobrada a comprovação do mesmo. A questão é se terá condições de provar o tal fato impeditivo, se o juiz indefere seus requerimentos, como ocorreu no caso (a sentença não esclarece quais foram, limitando-se a dizer que a questão já foi decidida em momento anterior); se não tiver condições de fazê-lo ou se devido ao compadrio entre os diversos agentes do Estado, que retira qualquer oportunidade de sucesso nesses esforços.

A fundamentação da sentença sobre o crime de associação para o tráfico não traz inovações. E a dosimetria é imoral: invoca genericamente algumas circunstâncias judiciais e não oferece nenhuma (nenhuma!) análise sobre elas.

Para encerrar, preciso destacar que o caso ora analisado está longe de ser inédito. Na verdade, ele é rotineiro. A diferença é que Rafael se tornara um personagem das "jornadas de junho" e, por isso, organismos de defesa dos direitos humanos já estavam de olho nele. Mas todo dia outros Rafaeis acabam presos sem que ninguém se importe. Muito menos os agentes do Estado. Estes estão satisfeitíssimos pelo dever cumprido.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Você se interessou pelas palavras de Hannah?

O seriado do momento é 13 reasons why, mais uma corajosa produção original da Netflix. Enquanto as pessoas se batem acerca da romantização, ou não, do suicídio, vou assistindo aos episódios e gostando deles. Li algumas críticas antes de iniciar e já havia comprado a ideia de que alumas opções do roteiro eram estúpidas ("a divulgação de um poema não pode ser motivo suficiente para uma pessoa se matar"). 

Mas além de que somente com muito moralismo você, que está vivo, poderia julgar o que é ou não motivo suficiente para uma atitude tão extrema, à medida que a série avança, as diferentes situações enfrentadas pela adolescente Hannah Baker vão se tornando plausíveis para mim. Como cantou Chico Buarque, "deixa em paz meu coração/ ele é um pote até aqui de mágoa/ que qualquer desatenção/ faça não/ pode ser a gota d'água".

Assim, o poema divulgado não foi a causa imediata ou prioritária do suicídio. Foi apenas mais um evento ruim, e não pela divulgação em si, mas porque disparou mais uma leva de humilhações sobre alguém que já estava com a alma profundamente machucada. Reforçou um processo já existente, longo e grave. Podia ser qualquer coisa.

Vendo o episódio 8, no qual o poema de Hannah é parcialmente lido, fiquei curioso em relação ao seu conteúdo na íntegra. E aí está ele.

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Today I am wearing lacy black underwear
For the sole purpose of knowing I am wearing them.
And underneath that?
I am absolutely naked.
And I’ve got skin. Miles and miles of skin;
I’ve got skin to cover all my thoughts
like saran wrap that you can see through
to what leftovers are inside from the night before.
And despite what you might think, my skin is not rough; nor is it bullet proof.
My skin is soft, and smooth, and easily scarred.
But that doesn’t matter, right?
You don’t care about how soft my skin is.
You just want to hear about what my fingers do in the dark.

But what if all they do is crack open windows?
So I can see lightening through the clouds.
What if all they crave is a jungle gym to climb for a taste of fresher air?
What if all they reach for is a notebook or a hand to hold?
But that’s not the story you want.
You are licking your lips and baring your teeth.

Just once I would like to be the direction someone else is going.
I don’t need to be the water in the well.
I don’t need to be the well.
But I’d like to not be the ground anymore.
I’d like to not be the thing people dig their hands in anymore.

Some girls know all the lyrics to each other’s songs.
They find harmonies in their laughter.
Their linked elbows echo in tune.
What if I can’t hum on key?
What if my melodies are the ones nobody hears?

Some people can recognize a tree,
A front yard, and know they’ve made it home.
How many circles can I walk in before I give up looking?
How long before I’m lost for good.
It must be possible to swim in the ocean of the one you love without drowning.
It must be possible to swim without becoming water yourself.
But I keep swallowing what I thought was air.
I keep finding stones tied to my feet.

Obviamente, jamais existiu uma Hannah Baker e esse poema foi escrito por um profissional, alguém que certamente o produziu não com emoção, mas com técnica para fazer parecer a enunciação dos sentimentos de uma adolescente desajustada e pedindo ajuda. Mesmo assim, é bonito e tem momentos luminosos, tais como o verso final, sobre você sentir que tem, o tempo inteiro, pedras em seus pés. Uma sensação que muita gente real conhece.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Um abraço guardado

Durante a doença de minha mãe, uma de suas vizinhas ia visitá-la diariamente. Ela dançava, contava histórias, fazia de tudo para a amiga se animar. Era em vão, mas ela continua fazendo. Depois que minha mãe se foi, essa vizinha nos pediu desculpas por nunca mais ter aparecido. Dizia se sentir triste ao passar pela porta da casa.

Há algum tempo, essa vizinha foi diagnosticada com câncer. Os tratamentos foram infrutíferos. Vitimada por um tumor na boca, que se desenvolveu rapidamente, está deformada e já sofre diversas complicações ― neurológicas, visuais, respiratórias, etc. Seu marido, idoso e com a saúde fragilizada há anos, está esmorecendo ante o desenrolar dos acontecimentos.

Eu gostaria, mas não me permitem vê-la. Ela mesma já não quer ver ninguém. Vou escrever uma carta para lembrá-la de nossa gratidão e dizer que ela não está sozinha. Também gostaria de oferecer uma oração, mas já não acredito nisso. Fico aqui reunindo o melhor que possa haver em minha alma e mentalizo essa senhora tão generosa. Desejo que ela tenha paz. Seus familiares também.

Às vezes, não nos resta nada a fazer senão olhar dia a dia uma pessoa que amamos atravessando um sofrimento absurdo. A impotência enlouquece. Você se equilibra entre o desejo do descanso pela morte, a incapacidade de lidar com a separação e a culpa por ter pensado nisso.

"Nessas horas, tudo o que temos a fazer é amar, amar, amar. Para não haver arrependimentos depois". Foi a lição seca que escutei, quando ainda tinha esperança. Foi um choque. Fiquei em pé, parado, incrédulo. Muito rapidamente, descobri que era verdade.

Gostaria de ter dado um abraço de agradecimento e agora de solidariedade. Tudo mais ficará guardado comigo.

Acréscimo em 21.4.2017:

Algumas horas após a postagem deste texto, a nossa vizinha foi levada ao hospital, devido a suas complicações respiratórias. Foi internada na UTI e seus filhos já falam que é apenas uma questão de tempo.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Fragmentado ― Relaxe: isto não é uma crítica

Sinopse: Três adolescentes são sequestradas por um homem que não deixa claras as suas intenções. No cativeiro, elas descobrem que ele se comporta como se fosse várias pessoas no mesmo corpo. Paralelamente, vemos esse homem interagindo com sua psiquiatra, que conversa abertamente com ele sobre seu diagnóstico de transtorno dissociativo de identidade (TDI), antigamente chamado de transtorno de personalidades múltiplas. Ele tem 23 personalidades, sendo que uma 24ª está a caminho, só que esta é extremamente perigosa.

Houve ocasiões em que, ao terminar de assistir a uma obra, fiquei indeciso sobre ter gostado dela ou não. Percebi que isso ocorre quando algo em mim quer gostar da experiência, mas o sentimento de aceitação não brotou espontaneamente, então vou atrás de informações que reforcem a minha receptividade. O exemplo mais contundente ocorreu com o polêmico final da série Lost, que abandonou o viés científico que tanto me interessava por uma jornada de evolução espiritual. Após debater com as pessoas certas, cheguei à conclusão de que Lost era uma joia, embora bem diferente do que pensava anteriormente.

Após ver Fragmentado (Split, dir. M. Night Shyamalan, 2016) ontem, fiquei nesse limbo a ponto de acordar pensando no filme e nesta inquietação. Então me dei ao trabalho de encarar 10 críticas e mais uma pequena matéria sobre um final alternativo para refletir melhor.


De outras vezes que comentei filmes aqui no blog, deixei claro que nem de longe tento ser um crítico de cinema ― primeiro por causa de minha absoluta ignorância quanto aos conhecimentos necessários para fazer uma crítica, mas também porque, em minha modesta opinião, críticos são sujeitos frustrados que tentam se promover a partir do trabalho alheio, desvelando menos conhecimento do que suas próprias idiossincrasias. Sem falar naquela mania odiosa de escrever termos técnicos que não são explicados, para o leitor comum se sentir burro. Então faço o que os críticos deveriam fazer: emitir apenas uma opinião. Dizer porque eu gostei ou não, sem que isso implique que você deva gostar ou não.


De um modo geral, Fragmentado é um filme muito competente. Sim, eu sei que "competente" é um elogio burocrático. Isso é decorrência do fato de que minha relação com ele não foi emocional, culpa do histórico irregular de seu realizador. Pelo que li, Shyamalan possui uma quadra de sucessos  composta por O sexto sentido (1999), Corpo fechado (2000), Sinais (2002) e A vila (2004) ―, seguida por um retorno às origens discreto, com A visita (2015), culminando com o êxito atual. Mas essa lista também é controversa. Muita gente criticou a jornada de fé de Sinais e é mais fácil encontrar opositores do que fãs de A vila. Pessoalmente, detesto Corpo fechado, por sua proposta de gibi de super-heroi. O máximo que podemos generalizar é que o cineasta jamais repetiu o triunfo de O sexto sentido.

Vi o filme com muito interesse do princípio ao fim, mas não fiquei "colado na cadeira", não sustive a respiração, não me senti "preso juntamente com as reféns", meu ritmo cardíaco não se alterou nem levei qualquer susto. Mas isso pode ser culpa de minha frieza pessoal. O roteiro é bom, mas não excelente. Fragmentado é, por isso, um filme de atores. O que o torna tão especial é a atuação maravilhosa de James McAvoy, reconhecido como um dos grandes expoentes de sua geração.


McAvoy faz um belíssimo trabalho, alternando personalidades que você pode diferenciar pelo olhar e pela linguagem corporal, mais do que pelo texto. Há uma cena em que ele migra de Hedwig, um menino de 9 anos, para o perigoso Mr. Dennis sem o recurso da troca de roupa. A atitude muda drasticamente, mas um espectador mediano não se surpreende, porque o fato era esperado, diante do grande estresse envolvido. Algo meio Bruce Banner que, uma vez pressionado, vira Hulk. Nada que diminua o excelente trabalho corporal do ator. Chamou minha atenção o detalhe de que, mesmo com variações de entonação, a voz do ator não muda, tornando mais realista o fato de que, no final das contas, é a mesma pessoa, o mesmo corpo físico sendo disputado pelas diferentes personalidades.


O outro destaque cênico vai para Anya Taylor-Joy. Quando o filme começa, a primeira coisa em que reparamos é em seu rosto ao mesmo tempo estranho e adorável. Ela está em um aniversário, mas deslocada como no restante de sua vida (aos poucos entenderemos o motivo, que acaba por ser determinante para o modo como as coisas terminam). Inevitável acompanhar os seus movimentos. Com 5 minutos de projeção, vemos o momento em que ela se dá conta de algo terrível está prestes a acontecer e sua reação ― contida, planejada, silenciosa ― é totalmente convincente, sobretudo quando lágrimas sinceras começam a escorrer. Quando finalmente me dei conta de que se trata da mesma atriz que protagonizou o maravilhoso A bruxa, compreendi por que essa menina de 20 anos é a nova sensação de Hollywood.

Ao fim e ao cabo, o que mais me incomodou foi o fato de que toda a publicidade do filme se baseia na premissa de que o protagonista Kevin Crumb tem 23 personalidades distintas, sendo que uma 24ª, extremamente perigosa, está a caminho. Isso gera uma expectativa inevitável no público, que não será atendida, pois somente 6 dessas personalidades serão exploradas: Barry, Dennis, Patricia, Hedwig, a Besta e o próprio Kevin (em uma única cena, brevíssima). Nos créditos finais, bem a propósito, o nome de McAvoy aparece relacionado a esses poucos. Em uma sequência final, na qual ele alterna suas identidades, aparece mais um ou outro, sem que isso modifique esta percepção.


Obviamente, o roteiro não poderia explorar 23 identidades em uma projeção de 117 minutos e, se ela fosse aumentada, seria apenas um encher linguiça. Isso seria uma ridícula comprovação da premissa e tornaria a trama fragmentada em um sentido bastante desfavorável. Esse tipo de didatismo destruiria a finalidade narrativa. Não critico a decisão de limitação do cineasta, apenas indico que, certamente, muitas pessoas, e eu mesmo, ficarão frustradas por não terem visto um pouco mais desse fenômeno psicológico controverso que é o transtorno dissociativo de identidade ― lastro científico que o roteiro superdimensiona e fantasia, aborrecendo aqueles chatos que acham que um filme de ficção tem compromisso com a realidade. Algumas pessoas precisam compreender a diferença entre ficção e documentário.

Em síntese, o filme é muito bom. Vale a pena assistir.

terça-feira, 11 de abril de 2017

A justiça dos bons

Nos tempos antigos, quando alguém causava mal a outrem, a consequência podia ser a vingança de sangue (a Blutrache dos povos germânicos), método de solução de conflitos por meio de hostilidades que terminavam com a morte do ofensor ou, até mesmo, com a destruição de sua família ou clã. Como ainda não existia Estado, os agravos, e mesmo ações que hoje chamaríamos de "crimes", eram tratados como querelas privadas, ensejando consequências para a comunidade a que pertencia o ofensor, pois o conceito de "indivíduo" somente se afirmou na Idade Moderna.

Reza a lenda que a humanidade evoluiu. O próprio talião é uma forma de evolução, pois representou uma racionalização da vingança: em vez de destruir o outro, só seria legítimo causar-lhe o mesmo dano por ele provocado, em espécie e em intensidade. Por isso o "olho por olho, dente por dente". Morra porque matou, mas se apenas feriu, seja ferido do mesmo modo. Seria proibido matar. Claro que a inesgotável criatividade dos seres humanos para a maldade, de que nos fala Edgar Allan Poe em seu excelente conto O poço e o pêndulo, levou essa curiosa forma de justiça a níveis perversos de detalhamento, ou seja, gastava-se um tempo enorme elaborando cada detalhe da vingança contra o malfeitor, conforme explica Michel Foucault em Vigiar e punir.

Muito tempo e energia empregados para viabilizar o mal legítimo desviou a humanidade do caminho de se preocupar com o bem. Talvez por isso tenhamos aprendido a relacionar "justiça" à inflição de sofrimento (minha leitura atual é Nils Christie, Limites à dor: o papel da punição na política criminal) e perdemos a capacidade de pensar que o reforçamento dos vínculos comunitários seria a verdadeira forma de proporcionar paz, segurança e felicidade para as pessoas, que não vivem isoladas. A propósito, para alguns teóricos, o efetivo respeito aos valores comunitários seria uma condição para se ter direitos que, nessa acepção, não seriam acessíveis a todos, como decorrência de sua condição humana (como explica Barbara Hudson no artigo "A justiça nos limites da comunidade: justiça e estranhos num tempo de medo").

Chegamos ao século XXI, à tal era da informação, e fomos fagocitados pelo ambiente tecnológico que hoje totaliza a vida dos incluídos digitais (e a inclusão digital já é vista como um direito humano). Supôs-se que as novas tecnologias de informação e de comunicação nos elevariam a um novo plano de convivência mas, na prática, o que realmente têm proporcionado é trazer à superfície o pior que existe em nós. E, em grande medida, com as melhores intenções.

Quero me concentrar em dois episódios que ganharam as redes sociais, que hoje funcionam como um grande e impiedoso tribunal. O primeiro é o caso do ator José Mayer, que em 31 de março último foi publicamente acusado pela figurinista Susslem Tonani de abuso sexual, consistente em atos de assédio que culminaram com um toque em seus genitais. Após uma rápida apuração do caso, a Rede Globo, empregadora de ambos, decidiu punir o ator com suspensão por tempo indeterminado e pedir desculpas públicas à moça. Paralelamente a isso, as agências punitivas entraram em operação e existe um inquérito policial em andamento. Mayer pode vir a ser processado por crime de estupro, eis que praticou, mediante violência moral, um ato libidinoso. Desde 2009, sob grande reproche dos penalistas, a legislação brasileira classifica qualquer violência sexual como estupro, quando nosso entendimento seria pela necessidade de desmembrar a ilicitude em dois tipos penais, sendo um mais brando e outro, o estupro, para violências sexuais mais extremas, caracterizadas pelas diferentes formas de cópula.

O segundo episódio não teve a mesma repercussão, por não envolver celebridades. No entanto, é profundamente preocupante. Trata-se do caso dos concluintes de Medicina da Universidade de Vila Velha, no Espírito Santo, que fizeram um registro fotográfico, para os festejos de sua colação de grau, trajando jaleco (o que torna imediata a relação com a profissão), com as calças arriadas e as mãos postas para representar vaginas, como se simulassem uma penetração (exceto esses que colocaram o membro na altura do umbigo), adicionando #pintosnervosos à imagem. O caso aqui é diferente porque não constitui violência contra certa e determinada pessoa, mas produz outro tipo de prejuízo, que é o difuso, por inspirar em toda e qualquer mulher um grave sentimento de insegurança quando pensar em entrar, sobretudo se sozinha, em um consultório médico.

Mas não estou aqui para falar de José Mayer ou dos estudantes. A canalhice destes está denunciada por suas próprias ações. O que me angustia neste momento é a postura das pessoas que me cercam, em relação a esses acontecimentos. Ou ter que retornar à velha e recorrente questão ética: quem nos salva da bondade dos bons? Aliás, de qual bondade estamos falando?

No caso Mayer, muitas pessoas aplaudiram a atitude da Rede Globo (exceto aqueles que se comportam como o personagem "militante", de Marcelo Adnet, e aqueles supercríticos, para os quais nada está ou estará bom jamais). A emissora, ao aplicar a suspensão, determinou que o ator não poderá participar de nenhum de seus programas, por tempo indeterminado, tendo sido afastado de uma novela para a qual já fora reservado, cuja exibição ocorrerá em 2018. Ou seja, a "geladeira" do mais famoso garanhão da televisão brasileira não vai durar menos de um ano. Pergunto: mas vai durar até quando?

O problema é que, no dia em que a Globo autorizar Mayer a trabalhar, mesmo que seja, como provavelmente será, uma breve inserção em algum programa, a imprensa sensacionalista, as redes sociais, as rodas de conversa nos botequins e provavelmente você também irão resgatar toda a história, sob o argumento de que não pode cair no esquecimento. Emissora e ator serão demonizados e será cobrada a permanência do castigo, que não pode ser brando. Em suma, clamarão por uma pena perpétua. Assim como acontece com os protagonistas da crônica criminal, tais como Guilherme de Pádua, Suzane von Richthofen, o "Goleiro Bruno" (agem como se esse fosse mesmo o nome dele) e outros tantos. Nenhum a extinção da pena chega: a execração deve durar para sempre.

No caso dos estudantes capixabas, veja a legenda que a página "Indiretas de Satã" publicou: "Vamos destruir a carreira desses imbecis que fazem apologia ao estupro antes que ela comece?" Destruir. Não pode ser pouco. Nem provisório. Daí me pergunto: precisamos mesmo ir tão longe?

Pessoalmente, acredito que todo malfeitor deve ter suas ações expostas, a fim de ser forçado a se responsabilizar por seus atos. A maioria jamais faria isso sem ser compelido. Mas uma vez que haja a responsabilização, chega. Uma hora, o tormento, ainda que justo (desconfio irremediavelmente desta palavra), precisa terminar. As pessoas precisam seguir adiante, inclusive e até, sobretudo, os prejudicados. Viver na expectativa do castigo do outro é uma forma de afundar em um perigoso estado mental, que a ninguém aproveita.

Já fui defensor da máxima execração dos ímpios. Com o tempo, fui-me aquietando. Entendo que devem ser punidos (e nem faço, aqui, juízo de valor sobre qual deva ser a punição). Que se apliquem as regras vigentes, mas depois disso o mal, de ambos os lados, deve acabar. Isso, para mim, é uma exigência civilizatória, além de uma necessidade de saúde mental.

Meu esforço, hoje, é por manter a coerência e combater toda e qualquer sanha punitivista, seja a de Estado, sejam os excessos individuais ou grupais. Por isso, sou tão avesso ao punitivismo de esquerda (Maria Lúcia Karam). Incomoda-me profundamente que os ativistas de grupos socialmente vulneráveis se sintam tão à vontade para afirmar seus direitos mediante o uso do mesmo recurso que lhes custa tanta opressão. No passado, "o sistema" brutalizou as mulheres por meio da imputação de bruxaria e da condenação pelo Tribunal do Santo Ofício, assim como massacrou os negros com a escravidão. Hoje, querem combater o machismo e o racismo com penas cada vez mais atrozes e exemplares. O mesmo se aplica às demais minorias sociais.

Suspeito que a frase, mais comumente atribuída a Gandhi, será o destino da humanidade: "Olho por olho e o mundo acabará cego."