quinta-feira, 24 de junho de 2021

O privilégio de ser vacinado

Minha mãe se preocupava demais com a nossa saúde. Ela providenciou que meu irmão e eu, quando crianças, tomássemos todas as vacinas disponíveis na rede pública (em uma época anterior ao SUS). Somos muito gratos por isso. Eu nasci em 1975 e, na segunda metade daquela década, certas doenças ainda não estavam erradicadas no Brasil. Portanto, não é demais dizer que o zelo materno nos protegeu do risco de sofrer danos diversos. Valeu, mãe.

Eu me recordo de estar na quadra da escola junto a um mundaréu de crianças. Os vacinadores nos colocavam em fila e usavam a assustadora pistola que inoculava o imunizante ao estilo linha de produção, a mesma agulha sendo utilizada incontáveis vezes. Algo impensável, hoje!

Por toda a minha vida, vi pessoas reclamando de vacinas apenas devido ao fato de serem injetadas e muita gente tem horror a injeção. O que não existe em minha memória são pessoas dizendo que vacinas matam, que são estratégias de uma conspiração comunista ou questionando nível de eficácia, muito menos país de procedência. Campanha contra vacina, para mim, só existia em livros de História (a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, entre 10 e 16 de novembro de 1904).

Com amarga ironia, ponho-me a pensar (isto é apenas uma elucubração; posso estar constrangedoramente equivocado!) que, nos tempos de minha infância, a população em geral era mais pobre, porém menos afetada por doenças infectocontagiosas; mais desprovida de acesso à educação, porém menos anticiência; menos guarnecida de políticas públicas, porém mais consciente da importância delas.

Quatro décadas se passaram e vacina se tornou o desejo mais profundo de milhões de pessoas, mundo afora. A ciência aplicou conhecimento acumulado e, em tempo recorde, surgiram os imunizantes contra o novo coronavírus, o SARS-CoV-2, que tem amaldiçoado o planeta há mais de um ano e meio. Era para ser um capítulo trágico da História humana, com um desfecho esperançoso, se não estivéssemos vivendo no Brasil da pós-verdade, na República das Milícias ou outro nome que lhes apeteça.



Há cinco dias, em 19 de junho, recebi a primeira dose da AstraZeneca (que não me provocou nenhuma reação). Foi um momento de grande alívio para mim e para as pessoas que se importam comigo, várias delas já vacinadas também. Usei o cronograma normal: pessoas nascidas até 1976 (depois estendido para 1978), sem comorbidades. Levei menos de 50 minutos para resolver tudo e voltar para casa. 

Como mostra a segunda foto, fiz meu protesto, obviamente. Postei em meu perfil no Instagram para não perder a piada segundo a qual sem postagem a vacina não funciona. E posto agora no blog, pois ele é meu diário eventual, realmente, e vou gostar de ver este registro daqui a alguns anos. Ou minhas filhas, talvez.

Mas como na República das Milícias não há um só instante de paz, no mesmo dia em que me vacinei, o país alcançou a marca, esperada e anunciada, de meio milhão de mortos, segundo os números oficiais. É sempre importante recordar isto, porque, como não tivemos testagem massiva da população, a covid-19 sempre esteve subnotificada entre nós. Os óbitos também, em consequência. Por isso, minha postagem foi, acima de tudo, uma declaração de solidariedade às vítimas, seus familiares e amigos. É um horror indizível ver tantas vidas desperdiçadas, um caos que ainda sequer foi dimensionado, inclusive porque os números seguem avançando.

No futuro, veremos estudos sobre os impactos econômicos, que tanto interessam aos políticos pilantras e aos brasileiros desviados à direita, mesmo quando pobres. Veremos, também, estudos sobre orfandade, um tema que me interessa, já que conheço casos muito tristes de crianças que perderam o pai, a mãe, ambos ou outros responsáveis. Terrível. Uma dor sem precedentes.

Com um abraço fraterno renovado em quem chora vidas por causa da pandemia, desejo tempos melhores à frente. Mas, para isso, precisaremos remover obstáculos, baixar a guarda e recobrar a lucidez.

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