domingo, 17 de setembro de 2006

A verdade sobre o fim d'O Auto do Círio

O auto do Círio é definido, pelos próprios, como a homenagem dos artistas a Nossa Senhora de Nazaré. Um auto é uma composição alegórica ou satírica, que fez sucesso nos séculos XV e XVI, de cunho místico, pedagógico ou moral. No nosso caso, é um espetáculo popular, com diversas formas de manifestações artísticas, participando do louvor a nossa padroeira. Sendo não mais do que um espectador, conhecia um pouco mais do trabalho, por ser ligado a pessoas diretamente envolvidas com o evento.
Apesar de tombado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO como patrimônio imaterial da humanidade, desde 2004, pela segunda vez desde o seu surgimento, em 1991, não será apresentado. Motivo real: há dois anos, a realizadora, Universidade Federal do Pará, através da Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa - FADESP, vinha recebendo patrocínio da Vale do Rio Doce - aquela mesma que jura fazer muito pelo Pará. Não houve, porém, a devida prestação de contas. Acionada judicialmente, a UFPA/FADESP apresentou contas irregulares e o resultado, óbvio e em cima da hora: patrocínio cancelado.
Sem dinheiro para a montagem, que este ano estava orçada em 300 mil reais, seja pela recusa da Vale e desinteresse do empresariado local, e com a necessidade de iniciar os ensaios amanhã, o trabalho inviabilizou-se. Uma lástima. Era bonito ver os moradores da Cidade Velha em suas portas e janelas, participando da festa. E era emocionante ver a imagem da Santinha subindo aos céus, no final.
O responsável pelo espetáculo há mais de uma década, Prof. Ms. Miguel Santa Brígida, e seus fieis escudeiros, lutaram até o último minuto, mas não conseguiram vencer as mazelas alheias. O reitor da UFPA proibiu, até a tarde da sexta-feira passada, a divulgação de qualquer informação sobre o caso. Sabe bem onde o calo aperta. Meu medo é que, interrompendo um ano o espetáculo, fique cada vez mais difícil remontá-lo. Fica então o meu lamento e minhas palavras de estímulo aos artistas, se é que elas valem de alguma coisa. E meu repúdio contra quaisquer pessoas que - sabe-se lá com qual motivação - foram culpadas pelo triste acontecimento.
Repudio também o empresariado local. Enquanto em cidades mais desenvolvidas o empresário sente orgulho de ver sua marca associada à promoção da cultura e das artes, aqui, na taba, os finórios contam centavo por centavo de seu rico dinheirinho. Mediocridade. Pobreza de espírito. Excluo da lista apenas a Sol Informática, que além de uma política rotineira de fomento às artes (basta ver que saraus musicais são programação normal lá), todos os anos financia a reforma de um logradouro público, como forma de retornar, à cidade, mais do que os impostos, que nós nunca sabemos onde vão parar. Não surpreende que seja, pois, uma das cem melhores empresas de informática do país.

PS - Saiba também que a Prefeitura de Belém e a Secretaria de Estado de Cultura nem sequer receberam os promotores do auto. Se o espetáculo fosse sair, os artistas sequer poderiam ensaiar na Aldeia Cabana, porque não foram autorizados. Prova-se assim, indiscutivelmente, o que todos sempre soubemos: o governo estadual e seu apêndice (a atual administração municipal) jamais tiveram qualquer política cultural séria. O pouco que acontece é arte para a suposta elite da cidade. Mas a arte popular sempre foi e continua sendo tratada com indignidade. E não me venha falar na reforma do Teatro Waldemar Henrique: não adianta nada um belo espaço se ele não chega a quem dele precisa.

6 comentários:

Ivan Daniel disse...

Impossível ficarmos indiferentes depois de ler o post e saber a verdade! É triste nossa realidade! E lá no meu Amapá a velha raposa maranhense dança o Marabixo com os negros descendentes de quilombolas no intuito de conseguir sua reeleição ao senado... pela terceira vez!

Anônimo disse...

Yudice, li seu texto e fiquei realmente muito triste ao saber da não apresentação do Auto. Realmente, a Arte em nosso estado e em nosso país como um todo é extremamente desvalorizada, o que me deixa muito triste. Recentemente, tive a oportunidade de levar um amigo de 25 anos pela PRIMEIRA vez ao teatro para assistir a uma ópera e me deixou imensamente feliz vê-lo se deslumbrar com o teatro e se deliciar com a ópera. Isso me deixou ainda mais certa de que a cultura é sem dúvida uma das coisas mais importantes que podemos adquirir, mas infelizmente não damos o devido valor a ela. Parabéns pelo texto!

Anônimo disse...

Lamentável é ver a Vale do Rio Doce ignorar a importância do Auto do Círio para Belém e dentro das comemorações em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. A desculpa de falhas na prestação de contas é ridícula, poderiam, as inteligências da área de Comunicação da Vale, manter o patrocínio, ressalvando a necessidade, posterior, da UFPA/FADESP corrigir as falhas na prestação passada e não repetí-las na atual.
O problema é que o pessoal que faz o Auto do Círio - toda classe artística paraense e a comunidade - não tem a força que tem, por exemplo, O Liberal. Quando a Vale deixou de patrocinar o Arte Pará, o grupo Liberal, como sempre, usou seus veículos para atacar a multinacional. A Vale botou o rabo entre as pernas e cedeu à chantagem. Hoje ela patrocina o evento da Fundação Rômulo Maiorana.
É assim que se faz comunicação no Pará, é este o compromisso da Vale com o Estado onde ela fatura mais que em todo o resto. Não devemos esquecer também que a Vale, que era uma empresa brasileira, foi doada por FHC para os empresários que hoje a comandam. As riquezas minerais do Pará foram parar nas mãos deles de graça. O retorno deles para a população do Estado é uma banana.

Anônimo disse...

Não, caro anônimo, a Vale não nos dá uma banana, a Vale nos dá os buracos depois de esgotados os recursos do sub-solo e migalhas que possam ser apresentadas na mídia; a Vale nos dá o desprezo que os colonizadores dão aos colonizados; a Vale não está nem aí para a cultura paraense, deve achar tudo um saco, como os esnobes costumam achar tudo o que vem de qualquer comunidade.
Da Vale não podemos esperar nada, só exigir o respeito que ela deve ao Pará e aos paraenses e cobrar, bem caro, os prejuízos que ela já causou, causa e causará.
Agora, o que dizer do supremo intelectual Paulo Chaves, do escritor (argh!) Duciomar? Eles são daqui, sabem da importância do Auto do Círio e, eles sim, dão uma banana para a cultura popular! Mas serão tristemente lembrados, ah! isso serão sim!

Anônimo disse...

Querido amigo. É realmente muito triste que o Auto do Círio não seja apresentado este ano. Por este, e por outros motivos, que pessoas como nós, que amam a nossa cidade e a nossa cultura, ficam sem opções, tendo que engolir todas as porcarias que a mídia nos coloca.Temos que valorizar os nossos artistas, acabar com essa estória de que só o que é de fora é bacana, inteligente, bom ou interessante. Só nós podemos começar a mudar esse quadro.bjos

Anônimo disse...

Desde meu ingresso na Escola de Teatro e Dança da UFPA, lá pelos idos de 96, que eu participo do Auto do Círio. Vi esse espetáculo crescer, assumir proporções que nos assustam, sobretudo depois que comecei a fazer parte da equipe do diretor Miguel Santa Brígida. É impressionante o que se mobiliza para colocar esse espetáculo na rua, sem que nenhum dos envolvidos receba cachê, ou mordomias para isso. Há pelo menos 3 anos, o Auto do Círio tornou-se patrimonio imaterial da humanidade, tema de tese de mestrado, outros tantos trabalhos acadêmicos, curta-metragem, documentários e, sobretudo, referência no cenário cultural paraense.
E daí? Nada disso impediu que em 2006 ele não acontecesse. Acompanhei de perto os esforços da direção e produção para a viabilização do Auto e agora tenho que guardar toda a pesquisa e material produzido para o-ano-que-vem-se-Deus-quiser-Nossa-Senhora!
Mas que fazer se em Belém a utilização do único teatro experimental e popular - Waldemar Henrique - exige uma taxa diária de R$ 100,00 para as produções de grupos locais e amadores que catam moedas para criarem seus espetáculos. Fora exigências outras! Ou da ímpia obrigatoriedade de pagar taxas para a utilização das praças públicas que podem ultrapassar 50 reais, justificada pela prefeitura de Belém como recurso para a manutenção das mesmas(!). Cada vez se fecha mais o cerco ao artista popular. Onde teatros? Que última produção regional foi vista no Teatro da Paz (o pífio Festival de Ópera não conta!)? Quando cobram para uso do Schiwazzappa sem sistema de som e luz? E o Memorial dos Povos?
Não é de admirar que qualquer chance de ir embora seja aproveitada. Antes uma ponta em Malhação que o estrelato na nossa amada tribo Belém do Pará!!!