Embora o resultado tenha sido publicado em 22 de fevereiro último, somente ontem, 19 dias depois, a Universidade Federal do Pará, por sua Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, formalizou e divulgou a inclusão dos novos acadêmicos em nível de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito. Sou, oficialmente e mais uma vez, calouro daquela instituição.
O que sou, também: um grande privilegiado. Tenho o privilégio de integrar um grupo de apenas 19 pessoas, que foram habilitadas a galgar o último estágio da formação acadêmica e, ainda por cima, em uma universidade pública, onde estão os melhores índices de qualidade e as maiores oportunidades de realizar pesquisa de verdade. Mas como cheguei a isso? Sozinho? Esforçando-me muito, individualmente? Acreditando com toda a força do meu coração? Lógico que não. Na vida real, não há espaço para as tolices de coaches, os romantismos a la Disney e, em especial, para a mentirosa e nefanda ideologia da meritocracia.
Sou privilegiado por dispor de uma fonte de renda que me permitiu concentrar os meus esforços no processo seletivo, que teve como maior exigência a elaboração de um projeto de pesquisa que, no meu caso, alcançou a nota 9,7 (no intervalo de 0 a 10). Para elaborá-lo, apliquei uma década de estudos em criminologia (privilégio), consultei um monte de livros que já possuo (privilégio), comprei livros em caráter emergencial (privilégio), usei equipamentos e outros recursos de boa qualidade, que tenho diuturnamente à disposição (privilégio), e em especial debati minhas ideias e fui orientado por pessoas de alta qualificação, inclusive no que tange à metodologia (privilégio de fazer parte do círculo dessas pessoas e de dispor do tempo delas).
Acha que acabou? Sou privilegiado por morar em uma casa própria, em região não sujeita a riscos significativos (por aqui não há sequer os alagamentos generalizados de Belém), dispor de carros para resolver tarefas que exigem deslocamento (como comprar remédios às duas horas da madrugada, há poucos dias), ter comidinha boa e nova todos os dias, que não preparo pessoalmente, além de outras comodidades domésticas. Acima de tudo, ter uma família que apoiou abertamente o meu projeto de vida e me favoreceu tempo e condições para me dedicar a ele.
Estes são os privilégios mais evidentes. Procurando, decerto eu encontraria vários outros. E, com certeza absoluta, meus 18 colegas estão em situação semelhante. A turma do mestrado também. Sim, também há os que precisam da bolsa, mas essa já é uma necessidade altamente privilegiada. Ou você acha que necessitar de bolsa para cursar pós-graduação está no mesmo nível das necessidades prementes e diárias de uma legião de brasileiros crescentemente empobrecidos (sem nenhum demérito, claro)?
Em suma, não existe o mérito dos meritocratas. Há, no máximo, merecimento em um sentido metafísico, se você for daqueles que acreditam em certas religiosidades. E tudo isso para levar adiante um projeto que não é exatamente uma unanimidade. Afinal, para que serve, realmente, um doutorado? Sei o que eu espero dele, em particular. Mas o que será que esperam as demais pessoas que trilham essa senda? E o que elas encontram?
Segundo reportagem de maio de 2019, baseada em dados oficiais, o Brasil possuía 7,6 doutores para cada 100 mil habitantes e precisava dobrar esse número para chegar ao nível mais baixo dentre os países desenvolvidos. Trata-se do Japão, no qual havia quase 13 doutores para cada 100 mil habitantes (mas no Japão não há necessidade de escolarização como estratégia de sobrevivência). A Itália era o país com o pior cenário na Europa, mas mesmo assim eram 17,5 doutores por 100 mil habitantes. E se você compreende a importância da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento de um país, fica fácil concluir porque o índice de doutores é relevante.
Em setembro de 2019, outra reportagem informa o lançamento de um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontando que, entre 35 países com dados disponíveis sobre o tema, o Brasil estava entre as três nações com menor número de doutores no mundo: uma proporção de 0,2% de sua população, contra 1,1% dos países integrantes da OCDE. O dado positivo foi o aumento do número de docentes com mestrado ou doutorado, conforme dados de janeiro último, divulgados pelo Instituto Nacionais de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Mas antes de comemorar qualquer coisa, saiba que, no Brasil, em março de 2019, o desemprego entre mestres e doutores chegava a 25%, contra 2% em nível mundial. Além da indignidade contraintuitiva que isso representa ― pois somos levados a supor, ingenuamente, que a maior qualificação importa acesso a melhores condições no mercado ―, essa conjuntura leva à evasão desse grupo especializado para outros países, quando conseguem, além de que se perde a oportunidade de viabilizar pesquisas que busquem soluções para muitos problemas da realidade brasileira. Uma universidade dos Estados Unidos não há de priorizar as necessidades do semiárido brasileiro, p. ex. É triste ver que quando reportagens, com um tom frequentemente ufanista, celebram um brasileiro participando ou até comandando uma pesquisa ultraimportante, na maioria dos casos tal pesquisa está sendo realizada em outro país.
O prognóstico não é de melhora. Desde 2016, o orçamento federal para a educação tem despencado, confirmando o que os setores progressistas da sociedade sempre repetem: isso é um projeto. Os decisores têm envidado esforços para que os brasileiros tenham cada vez menos acesso a educação, notadamente de qualidade. Mas se estamos todos de acordo ― inclusive aquele gênio do WhatsApp, que adora dizer que os pobres não quiseram estudar ou não se esforçaram o suficiente para isso ―, que a educação desenvolve pessoas e países, qual pode ser, então, o resultado esperado dos investimentos e das escolhas aqui na outrora República das Bananas, hoje República das Milícias?
Ao fim e ao cabo, como se costuma dizer, somos um país de autoproclamados doutores. Basta uma graduação ―, ou às vezes nem isso, bastando algum sinal de riqueza material ―, e o sujeito já vira doutor. É chamado assim pela imensa legião de trabalhadores em postos subalternos e em especial pelos excluídos do mundo do emprego, os quais reproduzem, a cada vez que doutorificam um espertalhão sem essa qualificação, um ciclo de distinção entre indivíduos menos distintos do que se reconhecem. Renovam a massagem no ego de uma classe média que se entende e percebe como aristocracia e quer ser tratada com mesuras e floreios. Não à toa, muitos deles se ofendem de verdade se o título não lhes é dado. Sem olvidar, claro, os casos clássicos e patológicos dos profissionais de Medicina e Direito.
Do jeito que as coisas vão, ser um desses doutores de coisa nenhuma tem dado mais certo do que dedicar muitos anos de sacrifícios pela titulação acadêmica. Resulta daí que um protesto como este visa repor um pouco as coisas aos lugares que elas deveriam ter e isso significa, inclusive, não glorificar doutor nenhum. Ele é só mais um sujeito que estudou e, talvez, esteja fazendo umas coisas bacanas e úteis de sua vida. Não é isso que o inscreve entre os bons seres humanos. Caráter e empatia deveriam ser os requisitos.
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