quinta-feira, 3 de maio de 2007

O que acaba, acaba

Tinha que ser o Ministério Público. Um promotor de justiça de São Paulo está propondo que Roberto Aparecido Alves Cardoso, o "Champinha", hoje com 20 anos — nacionalmente conhecido e odiado por haver, aos 16, conduzido a tortura e morte de Felipe Caffé (19) e Liana Friedenbach (16), que foi estuprada várias vezes —, fique preso indefinidamente, enquanto se demonstrar a sua periculosidade. O caso voltou à tona devido à fuga do rapaz, que se encontrava recolhido à Fundação Casa, sucessora da malsinada FEBEM. Ele foi recapturado no dia seguinte, com a ajuda da própria família.
A ideia, apesar de imbecil, não é nova. Tentou-se a mesma coisa com João Acácio Pereira da Costa, conhecido como "Bandido da Luz Vermelha", um dos nomes mais famosos da história criminal brasileira, que aterrorizou São Paulo na década de 1960. Ele invadia casas para roubar e aproveitava para estuprar mulheres. O cognome surgiu da lanterna que ele utilizava quando invadia as residências. Preso após seis anos de investigações, foi condenado a 351 anos, 9 meses e 3 dias de prisão, por 4 homicídios consumados e 7 tentados, além de 77 roubos. Como a legislação brasileira não permite que nenhuma pena seja executada além de 30 anos, à medida que se aproximava a data da libertação de João Acácio as autoridades discutiam o que fazer com ele. Foi quando surgiu um promotor de justiça (para variar), propondo que lhe fosse aplicada uma medida de segurança, o que na prática permitiria que ficasse preso para o resto da vida.
A chicana, que não tem o menor respaldo legal, não deu certo, claro. João Acácio foi libertado em 26.8.1997, mas àquela altura realmente apresentava sérios transtornos mentais. Assediado pela imprensa irresponsável e por cidadãos comuns, que lhe davam um estranho tratamento de celebridade do mal, ele sucumbiu à violência, mas antes que cometesse novos crimes acabou morto pelo pescador Nelson Pinzegher, em legítima defesa, em 5.1.1998.
A história se repete agora. O atual promotor quer fazer um juízo de periculosidade, próprio de um direito penal do autor, que pretende punir as pessoas pelo que são e não pelo que fizeram. Mas sejamos curtos e grossos: a legislação brasileira não permite que essa criatividade tenha sucesso. Não se pode transformar a pena de João Acácio ou a medida socioeducativa de Roberto numa medida de segurança, apenas para assegurar que eles não ponham mais os pés na rua.
A ideia é adorável para quem pretenda segregar ou eliminar o delinquente a todo custo. Todavia, quando a penalidade imposta acaba, ela acaba e não pode mais ser dilatada, sob qualquer argumento.
O que mais se faz, hoje em dia, é dizer que a legislação penal ou menorista brasileira é muito tímida e pune com brandura os criminosos. Pode ser. Todavia, a menos que se queira rasgar o que resta da Constituição e jogar no lixo o pouco bom senso que ainda existe, uma coisa é certa: enquanto a legislação não for alterada, "Champinha" não pode ser cerceado para além dos três anos de internação que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê. E a menos que cometa outro delito, não pode mais ser molestado. E mesmo que a legislação fosse alterada hoje, como a lei mais gravosa não pode retroagir, ainda assim ela não atingiria o nosso personagem.
A discussão promete, claro. O que escrevi aqui serve apenas para enunciar a questão, mas nem de longe indica a quantidade e a gravidade dos temas decorrentes. Aguardemos os próximos capítulos.

O "Bandido da Luz Vermelha" foi tema de uma das edições do programa Linha direta: Justiça, da Rede Globo. Veja mais em http://linhadiretajustica.globo.com/Linhadireta/0,26665,GIJ0-5257-235984,00.html

8 comentários:

Anônimo disse...

É a Lei penal que deixa estigmas nas pessoas sem se preocupar nas soluções!!!

Anônimo disse...

Muito bom o texto, professor! A princípio, levados pela emoção, a gente deseja logo que delinqüentes como Champinha, apodreçam na cadeia. e acaba que a gente esquece de alguns princípios que a nossa Constituição felizmente prevê.
Além disso, é sempre bom relembrar o que aprendemos em sala de aula.
Um abraço.

Yúdice Andrade disse...

Jean, é isso que motiva os defensores do abolicionismo penal.
Laila, fico feliz de te ver fazendo relações entre as nossas aulas e os assuntos do mundo. E mantendo a serenidade, apesar de toda a pressão em redor.

Unknown disse...

Uma medidda provisória, professor, poderia evitar a soltura do monstro sem ferir a Constituição?
Um abraço.

Frederico Guerreiro disse...

Bravo pela reflexão, mestre!
O criativo promotor quer, na prática, a pena de prisão perpétua segundo suas convicções pessoais de Direito Penal.

Yúdice Andrade disse...

Juvêncio, tive até palpitação e suei frio com a tua pergunta!!! Pelo amor de Deus, matéria penal só pode ser regulamentada por lei ordinária. O motivo é a tramitação mais lenta e complexa do processo legislativo, o que tem a intenção de assegurar que, quando a lei entre em vigor, já tenha sido amplamente debatida pela sociedade que sofrerá seus efeitos. Claro que isso é uma falácia, mas a idéia é boa. Nem a própria Constituição define crimes, pois ela não existe para isso, e sim para organizar politicamente uma Nação.
Medida provisória em matéria penal seria a maior de todas as aberrações legislativas, porque daria ao Presidente da República poderes a la Roma Antiga. Deus que me livre. Se isso acontecesse, eu pediria para descer. Do planeta. Mas não acontecerá, porque é sumariamente vedado. Vide:
Constituição de 1988:
"Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I - relativa a:
b) direito penal, processual penal e processual civil".
Espero ter esclarecido. Agora vou medir novamente a pressão.

Fred, sintetizaste com perfeição, em apenas 18 palavras, o que eu queria dizer. Parabéns. Coisa de escritor aforista!

Unknown disse...

Obrigado, mestre.
Os leigos cometem cada heresia em suas perguntas né?
Abs e bom final de semana.

Anônimo disse...

Escuta, e aquele negócio de colocar pulseiras para mostrar ao mundo que aquele bandido malvado é uma pessoa ruim e que deve ser vigiado por toda a comunidade para que não fuja (e também jamais se ressociabilize!)?
Até entendo a relevância da questão, mas fico pensando no final dos tempos e no 666 gravado no corpo dos infiéis.
Dá pra ser um implante sub-cutâneo?