O tema da violência policial é da maior importância para toda a sociedade e, como já era de se esperar, não recebe a atenção que merece, inclusive por causa do olhar enviesado que o brasileiro médio costuma lançar sobre ele. Existe um senso comum de que bandido bom é bandido morto e, sob tal premissa, legitima-se qualquer chacina feita por policiais, desde que não chegue perto dos cidadãos de bem.
Uma pessoa de minhas relações, figura expressiva dessa mentalidade, não se incomoda nem quando a polícia mata quem não era o autor do crime cometido; para ele, quem morreu com certeza era bandido, então se não cometeu o crime A, cometeria o B. Se não cometeu nenhum, cometeria um mais cedo ou mais tarde, então, no final das contas, ótimo que tenha morrido.
Sequer tenho palavras para responder a isso. Volto ao tópico frasal: não podemos construir o nosso país, mormente sendo ele organizado como um Estado Democrático de Direito, sem rigorosa atenção sobre a violência policial, o que vem preocupando cientistas sociais há décadas.
A questão é que, por atuar na linha de frente, diante de situações extremas que exigem pronta solução, a polícia acaba por subverter princípios basilares do Direito, penal e até mesmo constitucional. Com efeito, pessoas se veem privadas de direitos fundamentais sem a possibilidade de contraditório e ampla defesa, que serão exercidos posteriormente. Medidas punitivas são implementadas sem que haja, ao menos, certeza quanto à autoria delitiva ou se houve mesmo um delito. No caso de morte, viola-se a vedação à pena capital.
Como não podemos dar-nos ao luxo da ingenuidade, sabemos que, muitas vezes, não há meios de impedir esses problemas. Se há uma troca de tiros em via pública, p. ex., há que se compreender que a morte do criminoso (talvez apenas suspeito) haja ocorrido num contexto de estrito cumprimento do dever legal. O que não se pode admitir é que a legitimação da violência oficial, que é do interesse da coletividade, transforme-se em mecanismo de arbitrariedade e, pior ainda, expressão de ódios de classe, raciais ou de outras ordens. E é isso que acontece. Procure saber, através das estatísticas oficiais, quantos dentre os mortos pela polícia eram negros e quanto eram brancos.
O portal G1 publicou duas matérias alusivas a essa preocupação. A primeira informa que, no espaço de 9 meses, o número de pessoas mortas por policiais militares na capital paulista aumentou em 68%. No Estado inteiro, no mesmo período, o incremento foi de 27,17%. A matéria apresenta outros dados interessantes sobre a criminalidade no Estado mais rico do país.
A segunda reportagem também se refere a São Paulo e mostra que, de 2007 a 2011, a polícia de elite (ROTA) aumentou a sua letalidade em 78%. Não é possível que as pessoas vejam esses dados e apenas sorriam. Não é possível encarar a realidade com o mesmo entusiasmo provocado pelas cenas eletrizantes dos filmes Tropa de elite 1 e 2. Ainda mais porque essas mortes costumam cair na vala comum da justificação penal, não ensejando qualquer responsabilidade. E poucas coisas são tão criminógenas quanto a impunidade.
Não há nenhuma análise, muito menos resposta, fácil para esta questão. Por isso mesmo, ela deve ser encarada com responsabilidade e, quanto possível, desapaixonadamente. Porque não é disparando tiros de um lado para o outro que encontraremos um caminho para viver em paz.
Um comentário:
Caro Yúdice
O trabalho policial é uma atividade extremamente complexa, que lida com direitos fundamentais, cerceando-os ou garantindo-os, de modo que a preparação profissional para sua consecução deve ser ininterrupta. Porém, apesar dos anseios de quem recebe o serviço, me parece que a realidade nacional, com raras exceções, é de que o Estado não quer uma instituição garantidora, apesar dos discursos. Ela foi construída como um instrumento para ser utilizado no intuito de garantir interesses que nem sempre são republicanos. De uma maneira geral, como TODAS as instituições de Estado, está voltada para a proteção de parcela seleta da população, para a garantia de privilégios e para o controle de CLASSES PERIGOSAS. Certamente, a maioria não vê dessa forma, muito menos os policiais. Acho que é por isso que permaneço trabalhando, perseverando na possibilidade de ajudar a polícia a se transformar em uma instituição que faça a diferença, em um aspecto positivo, na vida das pessoas, principalmente a partir da diminuição das desigualdades sociais, que começa com tratamento respeitoso e garantia da dignidade isonomicamente.
Se Direitos Humanos perfazem o conjunto de direitos, destituídos de qualquer hierarquia, que todos e todas têm, independentemente de concessão, decorrentes da intrínseca dignidade existente em cada ser humano, nunca se poderia desvincular a atividade policial da garantia e proteção desses direitos. Em hipótese alguma a polícia poderia vilipendiá-los. Mas a atividade policial, instrumentalizada da forma que é, garante a mordaça, em uma pseudodemocracia, para aqueles que têm, diuturna e rotineiramente seus direitos desrespeitados pelo próprio Estado, que não tem se mostrado capaz de garantir o conjunto de direitos, bastante grande, que abrange uma série de setores da vida social, como os direitos sociais, de uma maneira geral, como a saúde, educação e a manifestação da cultura ou ainda o direito a um meio ambiente saudável e mesmo o respeito devido aos consumidores.
O seu texto fala em democracia. Pois bem, vejo a democracia como a possibilidade de igualdade de oportunidades em uma sociedade pautada pela justiça social, pela participação política e pelo respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, não vivemos no Brasil algo dessa natureza, no máximo um processo de construção de uma realidade democrática. Existe uma falsa máxima que a rua influencia a atividade operacional policial em uma via de mão única. Precisamos trabalhar para conscientizar os policiais no sentido de que também a sua atuação influencia no universo da “rua”.
Nestes termos, a polícia é uma instituição democrática? Na verdade, não. Agora, ela pode existir e atuar de forma democrática, a partir do direcionamento político do poder que a domina e da própria FORÇA DO CONTROLE SOCIAL. Como diria um autor que gosto muito, chamado Dominique Monjardet, a polícia é um martelo. Eu completo: tudo depende da mão que a utiliza.
Abraço
Alisson Monteiro
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