O Código de Trânsito trata da matéria sob dois enfoques: como infração administrativa e como ilícito penal. No primeiro caso, temos a infração prevista no art. 165, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.705, de 2008 (“Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”), que permanece sendo gravíssima, mas agora enseja uma multa mais elevada, mais que o dobro do anteriormente previsto (vai para mais de R$ 1.915,00, aplicável em dobro, se o infrator reincidir no prazo de 12 meses). Ainda como penalidades administrativas, temos a suspensão do direito de dirigir por 12 meses, o recolhimento do documento de habilitação e a retenção do veículo.
A segunda mudança importante afeta a regra da alcoolemia zero, que dá margem à nomenclatura oficial — burra, mas oficial — “lei seca”. Morro de dizer que não existe “lei seca” alguma, mas o próprio governo decidiu encampar essa idiotice. Essa nomenclatura faria sentido se as pessoas fossem proibidas de consumir ou de adquirir álcool. Existe lei seca no período pré-eleitoral, mas não em relação ao trânsito. Neste caso, a vedação é a dirigir sob o efeito do álcool, mas beber você pode o quanto quiser. É só não conduzir veículos depois. Repito isso todo dia, mas pouca coisa é tão obstinada quanto a preguiça mental.
Em sua redação original, o art. 276 do Código de Trânsito só considerava o condutor inapto se registrasse ao menos 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Mas uma disposição desse tipo deixava todos os flancos abertos ao inimigo: passou-se a exigir comprovação exata do nível alcoólico para que as penalidades pudessem ser impostas. Afinal, o condutor poderia estar com 5,99 decigramas de álcool por litro de sangue e aí não haveria infração. Pode parecer patético, mas estaria correto.
Aí veio a Lei n. 11.705, a que entrou para a História como “seca”, determinando que qualquer concentração de álcool no sangue autorizaria as penalidades administrativas.
Pela redação em vigor a partir de hoje, “Qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165". Ou seja, o conceito não mudou, tendo havido apenas uma adequação técnica (a medição conforme o ar alveolar). O parágrafo único do mesmo artigo ainda prevê que o CONTRAN “disciplinará as margens de tolerância quando a infração for apurada por meio de aparelho de medição, observada a legislação metrológica.”
O art. 277 é um dos mais problemáticos, porque disciplina a questão dos meios de prova do estado de embriaguez. Nas duas redações anteriores, previa-se que o condutor suspeito de estar embriagado seria submetido (ou seja, a norma era cogente) a exames de verificação. Mas aí veio o princípio da não incriminação e pôs tudo a perder. Como reação, modificou-se o texto através da Lei n. 11.705, admitindo a possibilidade de meios probatórios alternativos, em caso de recusa do condutor. Até que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que somente a dosagem alcoólica feita através de exame de sangue ou etilômetro seriam judicialmente válidas. Somando-se isso ao princípio que veda a autoincriminação, a impunidade está assegurada. Existem, inclusive, aqueles que dizem que forçar uma pessoa a fazer o exame de sangue viola a dignidade humana, por se tratar de um exame invasivo ao corpo. Sei. Nessas horas, até eu tenho raiva de advogados.
A lei atual é a resposta do legislativo ao judiciário, que troca a obrigatoriedade por uma faculdade, mas prevê expressamente meios probatórios alternativos:
“Art. 277. O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.
(...) § 2º A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.” (NR)
Tenho observado algumas manifestações muito entusiasmadas e confiantes no sentido de que, agora, dispomos de um instrumento legal realmente eficiente para coibir a prática tão perniciosa de conduzir sob o efeito de substâncias estupefacientes. Com efeito, a lei atual — chamada pela apresentadora do Jornal Hoje desta tarde de “nova lei seca”: sem comentários — foi uma óbvia reação do Congresso Nacional à deliberação do STJ e também contou com ampla aceitação pela presidência da República. Mas eu pergunto: só porque agora existe uma lei dizendo que X pode, vocês realmente acham que não existe o risco de o Judiciário declarar que X não pode? Que essa lei não pode ter a sua inconstitucionalidade declarada? Vocês acham mesmo que os advogados dessa legião interminável de vagabundos bêbados não farão de tudo para esvaziar o conteúdo do novo diploma?
Pois eu estou convencido de que eles farão de tudo, sim, e honestamente acredito que o Judiciário vai lhes dar guarida, ao menos em parte.
Por fim, a parte mais grave, que é, claro, a criminal. O delito tipificado no art. 306 do Código de Trânsito passou a ter esta redação: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Também permaneceram as penas de 6 meses a 3 anos de detenção, multa e suspensão ou proibição de habilitação. Como regras novas, surgiram estas:
“§ 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2º A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
§ 3º O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.” (NR)
Como se pode ver, subsiste a distinção de tratamento entre ilícito administrativo e penal, mas agora qualquer nível de álcool permite a penalidade administrativa e o índice de alcoolemia previsto no § 1º serve para a caracterização do crime, que é justamente onde ocorrem as maiores dificuldades probatórias, porque no processo penal vigoram as regras defensórias mais profundas.
Minha opinião? A coisa mudou menos do que parece. Mas estamos nos primeiros dias de lei nova e em pleno período de comemorações de final de ano. As autoridades estão fortalecidas e os futuros infratores ainda estão se adaptando. Como normalmente ocorre, uma lei mais rígida provocará uma retração imediata na prática que se quer coibir. Mas com o tempo os infratores vão relaxar e, à medida que pessoas sejam presas e as novas regras sejam efetivamente aplicadas, começará o trabalho dos juízes e dos tribunais.
Daqui a um ano, vamos ver se eu estava certo ou errado. Deus ajude que eu esteja errado.
Antecedentes:
- Sobre o risco de nova declaração de inconstitucionalidade: http://www.yudicerandol.blogspot.com.br/2012/09/alcool-e-transito.html
- Sobre interessante análise quanto à relativização do princípio de não incriminação: http://www.yudicerandol.blogspot.com.br/2012/04/contra-os-motoristas-bebados.html
- Um pouco de comparação: http://www.yudicerandol.blogspot.com.br/2010/09/homicidio-culposo-de-transito-la-e-ca.html
- Um pouco de desatinos legislativos: http://www.yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/sentimentos-por-decreto.html
5 comentários:
Boa tarde, professor. Há tempos não passava aqui. Confesso que estava saudoso.
Gostaria de debater um ponto, por mais patético que pareça:
Achei que a obtenção de provas através de vídeos e/ou testemunhas pode ser frágil. Digo isso pois, numa situação hipotética (os manuais de direito penal me fizeram sempre pensar em exemplos estapafúrdios,até mesmo engraçados), caso eu simule uma embriaguez através de um caminhar trôpego, um olhar perdido, cabelo bagunçado, aquela prepotência clássica de bêbado e, em seguida, me recuse a fazer o teste do bafômetro, tudo isso sendo registrado por vídeo e por testemunhas, qual será o resultado? Serei enquadrado na "lei seca" (comungo desse teu asco pelo termo), com base em provas frágeis, as quais, mais tarde, revelar-se-ão como distantes da realidade.
Isso pode ter sido uma analogia barata à Vida de David Gale, mas gostaria de entrar no debate do meio probatório.
Outra coisa: Não achas que esse embate Legislativo x Judiciário pode ser um problema, colocando em risco a Segurança Jurídica, uma vez que ora diz-se uma coisa, ora outra?
Caro Gabriel, aprecio muito o teu retorno ao blog. Espero que venhas matar a saudade com mais frequência.
Quanto ao ponto que levantas, o mundo anda tão maluco que não me surpreenderia se alguém simulasse embriaguez só para causar algum tipo de tumulto. Aliás, poderia ser com o mesmo objetivo de David Gale: ele não agiu como agiu a fim de demonstrar como o sistema era falho e, assim, protestar contra a pena de morte? Não me pareceria nada absurdo que alguém montasse todo esse circo que sugeres justamente para mostrar a debilidade das provas indiretas de embriaguez, forçando um debate sobre o tema e trazendo como consequência a inaplicabilidade da lei.
Afinal, se me param a despeito de eu estar dirigindo corretamente, eu faço a simulação e, ato contínuo, sopro no bafômetro e provo de forma cabal que não estou embriagado, não há como me imputar nada, certo?
Quanto à segunda pergunta, o confronto entre Legislativo e Judiciário sempre será pernicioso enquanto não houver senso de colaboração recíproca. Neste país, discute-se por fatias cada vez mais gordas de poder. A questão é mostrar quem é o galo do poleiro mais alto, não garantir o interesse público. Neste ponto, acho que a crítica mais acre deve mesmo ir para o Legislativo. Afinal, o Judiciário age mediante provocação: se alguém entrou com uma ação, uma decisão deve ser tomada, não se podendo reclamar se o juiz decidiu, mas apenas, se for o caso, o teor da decisão.
Grande abraço. Volte sempre.
Olá Primo,
Acho que qualquer lei que venha com a intenção de reduzir os riscos causados por motoristas embriagados é válida e oportuna.
Entretanto, mais uma vez nos deparamos somente com a ponta do iceberg.
As propagandas massivas estimulam, sem escrúpulos, o consumo excessivo de álcool (em especial a cerveja), finalizando com aquele patético dizer de meio segundo de "se dirigir, não beba", numa clara tentativa de conferir a falsa bondade típica do mercado.
Ou seja, seria de melhor grado fazer com que se proibisse a propaganda de cerveja ou, ao menos não hovesse uma regulamentação mais rígida quanto a isso.
Ainda, o transporte público deficitário e os serviços de táxi caríssimos acabam por limitar a possibilidade de não utilizar veículo próprio para sair.
Então, soma-se as massivas e agressivas propagandas publicitárias, à festa, tem-se ai quase uma intimação para a pessoa beber e, após isso, dirigir.
Aqui em Florianópolis, os táxis chegam ao absurdo de cobrar valroes maiores quando há lotação máxima nos carros e os ônibus, em geral, são escassos após a meia-noite.
Tem-se ainda as frágeis condições de segurança, eis que aguardar em um ponto de ônibus às 3 ou 4 da madrugada é complicado.
Inúmeras vezes, principalmente em cidades "grandes", não há como fazer uma logística de uso comunitário do carro, impossibilitando o revezamento de motorista, chamado de "motorista da rodada" (mais um ato de "bondade publicitária" de uma cervejaria).
A intenção aqui não é defender quem bebe e dirige e sim demonstrar que existem, além da legislação objeto da postagem, outros meios de reduzir os altíssimos índices de acidentes causados por motoristas em estado alterado.
Ainda, a própria lei não define o que veja a ver este "estado alterado".
Portanto, mesmo que alguém saia e beba 2 ou 3 cervejas, poderá ter seu estado alterado, seus reflexos reduzidos e causar acidentes de trânsito.
Fico imaginando se a pessoa mora em um local distante da festa ou da casa de seus amigos, como fará para sair com eles e poder tomar umas?
O bom senso, muitas vezes, faz com que usemos, aqui em Floripa, o rodízio de motoristas que geralmente não bebe.
Mas nem sempre é uma opção.
Repito, na minha visão a lei deve sim existir, entretanto creio que ela venha desvinculado dos problemas sociais. Teria lógica em muitos países com menor índice de violência e maior desenvolvimento, onde há transporte público barato constamente na madrugada, possibilitando que a pessoa aproveita a festa como lhe convém e volte em segurança.
Só gostaria de sugerir essa reflexão.
Abraços Primo.
A reflexão é oportuna, sem dúvida, Jean. Também sou defensor de medidas enérgicas em relação ao comportamento no trânsito - e não apenas em relação à condução em estado de embriaguez, mas inclusive em relação a outras infrações. E sei que existe muita leniência do governo em relação à indústria, ainda mais uma tão bem sucedida como a cervejeira.
Por isso mesmo, é importante que essas medidas paliativas subsistam. Não vejo mal que a própria indústria invente o "motorista da rodada", que ao menos implica numa adaptação saudável a uma norma importante.
Precisamos mudar de fato a cabeça do brasileiro, que parece ter prazer em fazer o que é errado e em prejudicar os outros. Em outros países, o uso de outros meios de transporte ou de carona é prática natural, mas sou forçado a reconhecer que, por lá, as condições de trânsito e transporte são bem melhores.
Voltamos assim à velha conjugação entre norma, cultura e serviços públicos adequados. Tudo isso revela como o Brasil ainda está a anos-luz de ser um país civilizado. Mas temos que começar em algum momento e por algum lugar, não?
A propósito, cobrar mais caro por lotação completa me parece um absurdo. Automóveis de passeio são feitos para transportar 5 pessoas em média, portanto não há qualquer justificativa para cobrança diferenciada. Admira-me que o poder público permita isso, já que a tarifa é determinada por ato do Poder Executivo.
Quando a levar mais do que 4 passageiros, viola a legislação de trânsito, por isso o taxista não deve fazer. Mas se fizer, não poderia cobrar por isso.
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