sábado, 2 de março de 2013

Reflexões filosóficas ou apenas oportunismo?


Convivo com gente de teatro. Meu irmão é dramaturgo, ator e diretor, vive cercado de pessoas do meio, então creio que posso dizer que tenho alguma familiaridade com discursos dessa área, principalmente quando soam a clichês. Seguem-se, então, algumas impressões sobre a notícia abaixo.


A Justiça de São Paulo decidiu nesta sexta-feira (1) proibir o grupo Os Satyros de exibir a peça teatral "Edifício London", que tem como base o caso Isabella Nardoni, garota que morreu aos 5 anos e cujos pai e madrasta foram condenados pelo assassinato. A peça estava prevista para estrear neste sábado (2) à noite.
O caso ocorreu em 2008 na Zona Norte de São Paulo. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá foram condenados em 2010 por matar a garota e a jogarem do sexto andar do prédio que dá nome à peça.
O desembargador Fortes Barbosa, da 6ª Câmara de Direito Privado, atendeu a pedido da mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira, que foi à Justiça alegando que a peça fere o direito de personalidade [Obviamente. A peça retrata um caso real pouco mais de 4 anos após a sua ocorrência. Os personagens estão todos aí, exceto Isabella, prontos a sofrer as consequências da exploração supostamente artística do caso. A repercussão da peça pela mídia, por si só, já basta para promover efeitos de revitimização nessas pessoas e, acredito, elas não merecem passar por isso.]. Em sua decisão, o desembargador citou argumento da mãe de que a peça promove "verdadeira aberração", entre outros motivos, porque é lançada uma boneca decapitada por uma janela [É, eu gostaria de ver a peça, para saber qual o propósito desta cena, que mais parece um despropósito. Ela não descreve os fatos como ocorreram e, como saída cênica, soa agressiva e cruel. Vontade de explorar o sofrimento alheio?]. A própria Ana Carolina se viu retratada na obra como "uma mulher despreocupada com a prole e envolvida com a vulgaridade" [Na época do caso, a defesa dos réus tentou construir para eles uma imagem favorável. Ana Carolina Jatobá concedeu entrevista ao Fantástico dizendo que Isabella a chamava de "mãe", dando a entender que sua mãe real, que a criava, não era assim tão boa. A inclusão de juízos de valor sobre uma pessoa real, na peça, parece-me cruel e uma renúncia ao bom senso e ao respeito.]. A multa determinada pelo desembargador em caso de descumprimento é de R$ 10 mil.
A companhia de teatro Os Satyros divulgou nota informando que, em respeito à decisão, a estreia foi cancelada [Detesto quanto réus num processo agem como se cumprir a decisão judicial fosse uma cortesia deles. Pode até não ter sido isso, mas sempre me fica essa sensação.]. A companhia disse ainda que "serão adotadas todas as medidas necessárias para fazer valer o que prescreve o inciso IX, do artigo 5º, da Constituição Federal brasileira, que diz, de forma clara e precisa, que 'é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença'" [Como diz meu irmão, depois que inventaram a desculpa, o mundo virou um lugar perfeito para se viver. Políticos, jornalistas e artistas sempre têm um argumento constitucional na ponta da língua para justificar suas ações. Eu me pergunto se existe outro país em que a liberdade seja uma conquista tão sofrida e que, uma vez alcançada, seja tão distorcida e vilipendiada.].
A peça é baseada no livro Edifício London, do jornalista Lucas Arantes, que também é escritor da peça. A direção é de Fabrício Castro.

O caso
Em março de 2010, Alexandre Nardoni foi condenado na primeira instância da Justiça de São Paulo a 31 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão e Anna Carolina Jatobá, madrasta de Isabella, a 26 anos e 8 meses de reclusão.
Os detalhes do crime foram acompanhados por Lucas Arantes com atenção, mesmo que à distância, já que mora em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e serviram de inspiração para escrever a peça. “Eu acho que um escritor é um cronista de seu tempo. É algo (o crime) tão distante que você se pergunta como isso aconteceu. A tragédia não é planejada, ela acontece. O trágico sempre me chamou a atenção. E essa é uma tragédia universal. Como você mata a própria cria?”, questionou Arantes [Viram? Aqui começa o clichê. Ele parte de um juízo de valor expresso por uma frase de efeito: "um escritor é um cronista do seu tempo". Aí eu recorro a um termo importante do teatro ("tragédia") e tento despersonalizar a abordagem ("tragédia universal"). A pergunta sobre matar a própria cria é a questão filosófica gravíssima que se pretende explorar, e não o mundo cão. E é errado você não mergulhar nesse debate.].
Até chegar à versão final, a peça foi escrita e reescrita “umas 15 vezes”, de acordo com Lucas, e se baseia em diálogos tensos, com referências ao mito da Medeia e a Macbeth, texto do dramaturgo inglês William Shakespeare [Aqui o autor demonstra a sua boa fé, ao repensar profundamente a própria obra e oferecer ao público um produto burilado. De novo o clichê: construir o próprio roteiro em cima de um clássico óbvio, Shakespeare, e suas obras mais famosas, repletas de questões existenciais desconhecidas do grande público que, por isso, não tem como avaliar a pertinência da comparação.]. Os diálogos acontecem entre o casal envolvido na morte e outros personagens, como um mendigo, o porteiro, um jornalista e, claro, a própria vítima.
Medeia, um dos personagens mais interessantes da mitologia grega, era uma feiticeira que ajudou Jasão a obter o velocino de ouro, que pertencia ao rei da Cólquida, Aetes, de quem era filha. Movida pela paixão, Medeia trai o pai e usa seus poderes mágicos para salvar a vida do amado Jasão, líder dos argonautas. Já a peça de Shakespeare trata de um regicídio, do qual a própria mulher do rei, Lady Macbeth, é cúmplice.
Para Arantes, a tragédia ficcional tem uma função em relação ao espectador. “A tragédia ajuda o espectador a recolher objetos perdidos, ajuda a repensar tudo isso. Segundo Nelson Rodrigues (jornalista, escritor e dramaturgo), o personagem é vil para que nós não sejamos”, disse, ao explicar sua obsessão pelo caso Isabella. [Aqui os clichês teatrais chegam ao ápice. Primeiro você atribui uma finalidade nobre a sua criação, que passa por ajudar o espectador a compreender a si mesmo. Mas preciso dizer isso através de uma linguagem fortemente simbólica ("recolher objetos perdidos"), dificultando o exercício da crítica pelas pessoas não iniciadas, além de justificar tudo com uma citação óbvia ("o personagem é vil para que não sejamos"). Sei que já ouvi isso antes, mas não me recordo onde. Não é original, apenas tenta atribuir valor a quem fala.]
A família moderna é que está em discussão na peça “Edifício London”, na visão de Fabrício Castro, que faz sua estreia na direção. “A gente procura a partir de um exemplo que aconteceu, pegar no eixo da questão da família, desta família moderna, desta instituição familiar, que a gente já não vê como antigamente. Sabe aquela família de comercial de margarina? A gente reflete muito sobre o que é essa família de hoje. Hoje, você vê pais solteiros cuidando de filhos, você vê casais de homossexuais cuidando de crianças. Não é mais aquela família com laços sanguíneos”, disse [Mais clichês: tentamos interpretar um mundo ressignificado. As coisas mudaram e precisam de intérpretes audaciosos para ensinar a todos os que ainda dormem o que eles precisam saber. Esses heroicos leitores do mundo somos nós.].


Fonte: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/03/justica-veta-peca-sobre-o-caso-isabella-nardoni.html

Não pretendo fomentar nenhuma animosidade ao universo teatral, que é indispensável ao desenvolvimento cultural de um povo. Desejo, apenas, expressar minha indignação pessoal a uma peça específica, que me pareceu oportunista e descuidada com seres humanos, para dizer o mínimo, já que não assisti para formar melhor juízo. Minha crítica se baseia no quase nada que sei: deve-se respeitar as pessoas, particularmente as que viveram dor tão profunda. Não há informação de que os protagonistas desse drama foram sequer consultados a respeito. Como alguém se atreve a falar da vida de alguém, sem lhe dar a oportunidade de manifestação, e acha que isso é apenas uma questão de liberdade de expressão?

Fazer isso é despersonalizar seres humanos e, com isso, revelar uma incapacidade de filosofar sobre a alma humana muito distante do discurso criticado acima. É um contrassenso. É mais um exemplo de como, cada vez mais, nossas vidas não mais nos pertencem, porque tudo deve ser coletivo e posto na Grande Rede. Aldous Huxley, Ray Bradbury e Orson Welles, dentre outros, ficariam estarrecidos.

Quanto a Ana Carolina Oliveira, que pode ser tachada por alguns de vilã, por ter promovido uma censura à arte, dedico-lhe os versos de Zeca Baleiro, na canção "Cigarro":

Melhor é dar razão a quem perdoa
Melhor é dar perdão a quem perdeu

3 comentários:

Ana Miranda disse...

Yúdice, eu sou super a favor da liberdade de expressão, porém, acho que o bom senso tem que prevalecer...

Se fosse comigo, eu, Ana, odiaria ver a trágica história da minha filha exposta assim...

Assim como eles sentiram-se no direito de querer encenar a peça, a mãe da menina também tem todo o direito de não querer ver a vida dela, sim, VIDA DELA, pois não há como falar da menina sem expor a mãe, transformada em circo, mesmo porque eu du-vi-do que ela tenha superado a perda de sua filha...

Hudson Andrade disse...

A primeira coisa que me pergunto é porque ninguém barrou o de o livro, assim como essas tantas biografias que parecem querer mostrar o demônio que açula gênios e medíocres. Será que se pensa: Ah, ninguém vai ler isso mesmo. Ninguém lê nada mesmo!
O livro passou e sendo assim, abriu portas para filmes, peças e vídeo cassetadas.

No entanto lastimo pelos Satyros, de quem infelizmente nunca vi um trabalho, mas conheço de fama e de empenho pelo teatro. Mas sempre chega o dia de pagar o aluguel, ou de comprar meio quilo de carne. Daí...

Acolho a decisão da mãe da Isabella e respeito a ordem judicial. Não veria a peça de qualquer modo. Não me interessa esse tipo de mundo cão no domingão. Mas pondero que se o mesmo cuidado fosse tomado de forma mais ampla, o Brasil teria menos porcarias vendidas como arte, ainda que um perigoso cabresto sempre à espreita.

Yúdice Andrade disse...

Temos a mesma posição, Ana.

Hudson, realmente a situação do livro tem a ver com o fato de ser uma mídia de pouca repercussão. Hoje em dia, qualquer um com dinheiro no bolso pode publicar um livro e colocá-lo nas lojas. Sou um assíduo navegador da Internet e já comprei vários livros de cuja existência tomei conhecimento por acaso, porque apareceram em páginas que eu visitava. Desse livro, no entanto, eu jamais ouvira falar.
Além disso, a leitura é uma prática individual e gratuita. Muito diferente de uma peça de teatro, promovida amplamente e cujo desfrute pressupõe a venda de ingressos - logo, a apropriação da obra passa a ter motivação econômica.
Se a companhia teatral é boa, como dizes, dessa vez falharam feio. Não sei se foi por causa das necessidades; mas a falta de noção de uma boneca decapitada representando uma criança real só me faz pensar em sensacionalismo barato, grosseiro e vulgar.
Até aqui, mantenho a minha posição.