terça-feira, 26 de março de 2013

Viver das letras

Considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, e por uns tantos como o maior escritor em Língua Portuguesa, o carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) nasceu em uma família muito pobre, frequentou escolas públicas e jamais ingressou em uma universidade. Fora da carreira literária, foi basicamente um servidor público, tendo passado pela Imprensa Nacional e por alguns ministérios. O salário e os direitos autorais lhe permitiram ascensão social. Teve grande projeção social em vida, mas nunca chegou a ser rico. Não se pode negar, entretanto, que teve muito mais sorte de que os demais mulatos nascidos pobres, ainda mais em sua época.

Um dos mais famosos escritores brasileiros, cuja obra foi difundida por diversos países e foi adaptada em diversas ocasiões para o teatro, a televisão e o cinema, o baiano Jorge Leal Amado de Faria (1912-2001), trabalhou como jornalista. Membro ativo do Partido Comunista Brasileiro, que o elegeu deputado federal, não tinha aspirações à fortuna. Consta que viveu exclusivamente dos direitos de suas obras. Um raro privilégio, que entretanto não fez dele um homem rico. A casa onde viveu e sua respeitável biblioteca, até um tempo desses, estavam se deteriorando, pois os familiares não tinham dinheiro para as despesas, nem o poder público manifestou interesse na conservação de um acervo cultural tão importante.

Falecido há pouco mais de um ano e com o nome recentemente em evidência face ao sucesso do filme As aventuras de Pi, baseado em um livro cuja ideia central teria sido plagiada dele pelo canadense Yann Martel, o gaúcho Moacyr Jaime Scliar (1937-2011) era médico e foi professor universitário na área de Medicina durante vários anos. O patrimônio que amealhou, portanto, está relacionado também às carreiras médica e docente. Embora tenha sido um escritor premiado, com mais de 70 livros publicados e ativo cronista, além de membro da Academia Brasileira de Letras, jamais ficou rico, que me conste.

Mais famoso (e controverso) escritor vivo brasileiro, o carioca Paulo Coelho (1947- ) nasceu numa família de classe média e se beneficiou de um tempo em que a indústria do entretenimento e o tal mercado ditam os rumos do sucesso e da fortuna. Escritor brasileiro que mais vendeu livros e também membro da Academia Brasileira de Letras, também se promoveu como parceiro de Raul Seixas, um dos maiores expoentes da música brasileira, nas letras de canções imortais. Mora num apartamento na Avenida Atlântica e tem uma casa nos Pireneus franceses. Vive confortavelmente, sem dúvida, mas eu me pergunto se pode ser considerado rico.

Mas onde, afinal de contas, quero chegar com estas sínteses apertadíssimas, repetindo a todo momento que o escritor não é rico? Façamos comparações.

O estadunidense do Maine Stephen Edwin King (1947- ) foi abandonado pelo pai aos dois anos de idade, tendo sido criado com um irmão adotivo apenas pela mãe, enfrentando grandes infortúnios financeiros. Custeou seus estudos universitários vendendo textos que escrevia e fazendo bicos, p. ex. trabalhando em lavanderia. Teve problemas com alcoolismo. Em 1974 lançou seu romance de estreia, Carrie, e não parou mais. Tornou-se um dos maiores nomes da literatura de terror, com títulos como O iluminado, Christine e O cemitério. Mas produziu também títulos fora do gênero que se tornaram célebres, como À espera de um milagre, Conta comigo, Um sonho de liberdade e Lembranças de um verão. Vários de seus livros foram adaptados para o cinema, lançando-o de vez ao estrelato. Os direitos autorais, pelos livros em si, fariam dele um homem rico, mas o cinema o tornou milionário.

Caso especialmente notável é o da inglesa Joanne Rowling (1965- ). Nascida numa família simples, cursou Francês na Universidade de Exeter e se tornou professora. Passou por um casamento tempestuoso, no qual sofreu violência. Teve uma filha e acabou sem ter onde morar, sem emprego e deprimida. Depois que conseguiu um posto de secretária, ia a bares tomar café e, enquanto sua filha dormia no carrinho, escrevia em uma máquina de escrever Harry Potter e a Pedra Filosofal. O resto da história todos conhecem. A obra e seus desdobramentos, considerada fraca e repleta de plágios, foi logo acolhida pela indústria cinematográfica e se converteu em uma das mais bem sucedidas franquias de todos os tempos. Rowling possui uma fortuna em torno de 815 milhões de euros (dados de 2010) e já foi apontada como a segunda personalidade feminina mais rica do mundo, perdendo apenas para Oprah Winfrey.

A diferença é absurda. Os dois estrangeiros citados, e tantos outros como eles, foram beneficiados por uma indústria que transforma boas ideias em ouro, que enche os bolsos do capitalista, mas enche os do artista também, permitindo-lhe fazer de sua arte um ofício, um estilo de vida, uma conquista definitiva. Mas não é apenas a indústria: é, antes de mais nada, a cultura de seus povos. King e Rowling desfrutaram da possibilidade de receber até dinheiro adiantado, para escrever um livro cujo retorno de público, crítica e finanças era totalmente incerto. E mesmo assim editoras apostaram, porque livros eram produtos de interesse do cidadão comum, que os compra e lê.

No Brasil, isso seria impossível. Era no passado e continua agora. Na prática, qualquer um pode tornar-se "escritor", isto é, pode publicar: é só meter a mão no próprio bolso e custear a edição. Essa é uma das razões pelas quais, hoje, trabalhos acadêmicos são mais respeitados quando de sua bibliografia constam artigos de revistas especializadas (que contam com um conselho editorial capaz de rejeitar trabalhos ruins) do que livros. Mas como poucos podem fazer esse investimento, a maioria daqueles que aspiram a essa carreira está por aí, de pires na mão, aguardando uma oportunidade. O produto que oferecem não interessa ao capitalista porque não tem demanda significativa. Brasileiro não lê.

É triste, profundamente triste. E depõe de forma arrasadora contra o povo que somos mas, acima de tudo, cria obstáculos para o povo que, talvez, queiramos ser um dia.

6 comentários:

Anônimo disse...

É verdade Yúdice. O brasileiro não lê. Até há uns 3 anos , eu ficava feliz quando usava o metro de SP e via que muitos dos passageiros estavam lendo durante a sua viagem.

Semana passada, em várias viagens de metrô naquela cidade, constatei, triste, que aquela realidade evaneceu, regrediu.

Agora, em número infinitamente maior, creio que falar em 60-70% dos passageiros não está distante da realidade, eles não mais lêem , e sim ficam acessando o Facebook, que fica a milhões de anos-luz de algo assemelhado a um livro.

Uma pena.

Kenneth Fleming

Yúdice Andrade disse...

Para completar, Kenneth, acessar o Facebook pode transmitir a essas pessoas a sensação de que está lendo ou fazendo algo útil. Não é uma crítica, porque também demoro mais do que devia no FB, então dou o braço a torcer. A questão, penso, é com que se emprega o tempo passado lá.
Mas no mérito da questão, lê-se cada vez menos, sem dúvida. E com isso reduz-se drasticamente a cultura geral, como se pode perceber pela dificuldade em entabular uma conversa decente, com boa parte do público com que temos contato eventual, por mais de dois minutos...

Anônimo disse...

"E com isso reduz-se drasticamente a cultura geral, como se pode perceber pela dificuldade em entabular uma conversa decente, com boa parte do público com que temos contato eventual, por mais de dois minutos..."
Perfeito. Digo que até menos de um minuto. É caso em que, às vezes, é o que pode levar a um profundo isolamento social. Até no seio familiar, por falta de leitura, já não se consegue levar uma conversa coerente, vê-se quase impossível concluir um raciocínio, e por aí vai. As pessoas parecem não querer mais pensar; querem e buscam somente alguma identidade para suas angústias presentes a partir de uma busca incansável por consolo nas ideias alheias. Mas alguém poderia perguntar: não será isso que faço agora? Seria não tivesse o que refletir a partir da leitura que faço do mundo através da literatura diária e do convívio. Seria não tivesse eu ideia própria e a capacidade de observar e compreender o que está à volta, entender que tomando o controle de minha capacidade de análise me distancio cada vez mais do fosso da alienação contida no narcisismo das redes sociais.
Machado era um observador da sociedade de sua época, mas se mantém absolutamente atual porque delineia sua espinha dorsal. Os outros são produto do auto-delírio existencial, criam um mundo próprio a partir de um delírio pessoal. Esse é um ponto que diferencia Machado de Assis dos demais. Ele se fez como um poderosos carvalho que só precisou de água, solo e luz para frutificar, enquanto os demais dependeram de um vaso com areia contra a água parada, dengue. Machado jamais deveria ser comparado aos demais. Não convém pareá-lo a um sedizente mago, que só nas mentes mais vazias encontram admiração.
Vivemos a era do culto ao lixo, do produto essencialmente descartável da mente humana. A humanidade está ficando mais treinada, evolui exclusivamente pelo método experimental e repetitivo, porém sem evidências de que haja um emprego prevalecente da inteligência humana.

Fred

Anônimo disse...

Complementando, basta ver a lista dos livros mais vendidos no país. É de chorar : biografia de Reinaldo Gianecchini(quem? o que será que tem a dizer esse jovem?), Bruna Surfistinha, Cartas de Padre Marcelo para Padre Fábio??????, a biografia de algum ex-BBB e por aí vai........

Hoje está até difícil de acharmos, nas livrarias, um Aluizio Azevedo, um Moacir Sclyar, um Haroldo Maranhão ou uma Rachel de Queiroz. Felizmente temos os sebos.

Kenneth

Unknown disse...

Eu, que paguei do meu bolso para ter meu livro impresso, para custear sua noite de autógrafos - com o apoio de meu parceiro Carlos Correia Santos e amigos da Nós Outros, minha companhia de teatro - ainda não consegui vender nem os que me couberam de contrapartida e nunca, nunca recebi um único centavo da editora que, mais de dois anos depois alega que não vendeu um único exemplar! Será?! Que empresa é essa que arca com um prejuízo desses? Mas enfim! Ser um escritor brasileiro e do Norte é isso: amargar ostracismo!

Yúdice Andrade disse...

Não convivo com escritores, mas tenho amigos juristas que já publicaram algumas vezes e todos concordam que o controle de vendas é algo muito complicado. O autor da obra na verdade não tem como supervisionar o comportamento da editora.
Em um caso, pelo menos, o autor descobriu que a editora vendera uma tiragem a mais do livro, do qual ele não tinha conhecimento. Soube porque, durante um evento, pediram-lhe que autografasse o exemplar e ele identificou a manobra, salvo engano, pelo número de controle. Aí ele partiu para cima, a fim de cobrar o que lhe deviam.
O fato é que publicar exige a capacidade de distribuir a obra. Veja o caso do CESUPA: é uma instituição de ensino e possui sua própria editora. Mas quando decidiu aumentar o seu catálogo, teve que se profissionalizar. Fez isso iniciando uma parceria com a Editora Método, que empresta a sua marca e a sua logística de distribuição. Hoje, você entra numa Livraria Saraiva e encontra os livros do CESUPA. Sem a marca da Método, muito possivelmente essas obras encalhariam, a despeito da qualidade do conteúdo, pois a Método se comprometeu a fazer a difusão em todas as praças onde atua.
É isso: sem suporte, ninguém toma conhecimento do nosso trabalho. Boca a boca, nessas horas, não adianta.