Deve a pornografia ser banida na Europa? A pergunta não é meramente teórica. É real.
Essa semana, os eurodeputados do Parlamento Europeu vão pronunciar-se sobre um relatório da comissária holandesa Kartika Liotard que propõe essa proibição (internet inclusa).
E não é de excluir que Bruxelas, após a aprovação do relatório, recomende a cada estado membro que tome medidas para banir o negócio.
Antes de mais, tem sempre piada ver uma holandesa com esses ataques de probidade: longe vão os tempos em que a "Holanda" povoava os sonhos libertinos de qualquer adolescente entumecido.
Acontece que a discussão não lida com questões de decência, ao contrário do que sucedia no século passado, quando os ingleses ainda discutiam se os romances de D.H. Lawrence deveriam ser vendidos em público.
O problema é apresentado com outras cores: a alegada "imoralidade" da pornografia não está na representação do acto em si. Está nos estereótipos que cria sobre as mulheres, reduzidas a meras escravas sexuais dos machos.
Pior ainda: ao criar esses estereótipos, a pornografia pode incitar a actos discriminatórios contra as mulheres, sem falar de crimes como o assédio e a violação. Proibir a pornografia não é apenas legítimo. É necessário.
Ponto prévio: é justo reconhecer o esforço de inteligência que a comissária Liotard fez sobre a matéria. Tradicionalmente, a discussão sobre a pornografia, ao centrar-se apenas na representação do acto em si, acabava sempre por esbarrar em questões de gosto - e, claro, no sagrado princípio da "liberdade de expressão".
Hoje, somos todos moderninhos e ninguém quer vestir as pesadas togas dos moralistas "conservadores" (ou, melhor ainda, "neoconservadores"), para quem o sexo e morte eram experiências infilmáveis.
A comissária holandesa acredita que consegue evitar discussões de gosto e de "liberdade de expressão" ao "higienizar" a pornografia: se os filmes são um insulto às mulheres e um perigo público para elas, gostar ou desgostar não é para aqui chamado.
Fatalmente, questões de gosto e de liberdade continuam a ser para aqui chamadas. E o saudoso filósofo Joel Feinberg (1926 - 2004), que escreveu abundantemente sobre estes temas, ajuda a explicar por que.
Em primeiro lugar, ele mostra como certas afirmações dogmáticas, precisamente por serem dogmáticas, carecem de prova irrefutável. A pornografia talvez seja degradante para as mulheres. Mas nem toda a pornografia o será desde logo porque nem toda a pornografia é igual.
Será que a União Europeia tenciona estabelecer uma comissão de sábios para o visionamento dos milhares de filmes pornográficos que circulam na Europa?
E será que esses sábios irão proibir cenas com mulheres subservientes mas não, por exemplo, cenas com homens masoquistas que são açoitados por mulheres dominadoras? Eu pagava para assistir aos debates desses novos censores.
Sem falar do óbvio: a afirmação de que a pornografia degrada as mulheres é sempre uma expressão de gosto de algumas mulheres, não de todas. E não será absurdo pensar que cenas de subserviência sexual feminina sejam estimulantes para certas donzelas.
Como afirmava o prof. Feinberg, pretender falar em nome de grupos - "as mulheres", "os negros", "os gays", "os anões" - é sempre um abuso epistemológico evidente.
Resta a questão final: e os crimes que se podem cometer por causa da pornografia?
A pergunta só faz sentido se houver uma demonstração causal entre o consumo de pornografia e a prática de crimes sexuais. Não conheço esses estudos.
Mas conheço indicadores inversos: países onde a pornografia é ilegal, como no Islã, não são propriamente exemplares no tratamento das suas mulheres.
Será que o consumo de pornografia transforma qualquer homem em predador sexual? Se assim fosse, desconfio que seria preciso prender todos os adolescentes em celas solitárias e libertá-los apenas em plena andropausa.
Os moralistas de hoje não querem ser os moralistas de ontem. E por isso julgam que escapam aos instintos censórios do passado com a conversa politicamente correcta do presente.
Não escapam. Porque, hoje como ontem, o que existe nos censores é o mesmo horror básico à liberdade.
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ERRATA: Ah, como é bom ter leitores atentos: Kartika Liotard não é "comissária", mas eurodeputada e relatora do referido documento. Não que isso mude o espírito do texto, mas fica a correcção.
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/1244145-pornografias.shtml
Ronald Dworkin, recentemente falecido, discutiu a questão: temos direito à pornografia? Hard case, a pergunta ainda não foi respondida. Mas a julgar pelo texto acima, revela-se mais complexa do que pode parecer à primeira vista.
Um comentário:
Olá Primo.
Será que a forma com que as mulheres são retratadas na pornografia - que em última análise é um produto - não é apenas a expressão daquilo do que efetivamente a sociedade produziu ao longo de séculos?
Será mesmo que o banimento da pornografia, em especial da "tradicional" forma da mulher submissa trará uma mudança de pensamento, quando livros de "auto-ajuda", comerciais, filmes, novelas, etc... instigam a competição homem x mulher e resumem o relacionamento a um jogo de poder, a uma lógica comercial, aflorando a concorrência?
Enfim, não sei bem ao certo, mas sempre sou inclinado a discordar, de forma inicial, de qualquer política restritiva até que me demonstrem boas justificativas para pensar o contrário.
Abraços primo
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