Cientistas identificam a súbita aparição de um corpo celeste, aparentemente um cometa. Ele se aproxima da Terra a uma velocidade extraordinária. Medo global. Líderes das grandes potências mundiais tentam destruir o bólido, em vão. Ele chega e estaciona sobre um lago, em uma região dos Estados Unidos (claro!). De repente, estoura num imenso foco de luz e desaparece. No local, à beira do lago, aparece uma multidão.
Investigando, as autoridades descobrem que todos aqueles indivíduos possuem em comum o fato de terem desaparecido sem deixar vestígios nas últimas seis décadas. 4.400 pessoas de variadas idades, nacionalidades e condições intelectuais e sociais. Retornam tão misteriosamente quanto desapareceram e não se lembram de absolutamente nada. Para elas, é como se o tempo não houvesse passado. Postas em quarentena enquanto se decide o que fazer com elas, a certa altura o governo americano é obrigado a liberá-las. Afinal, não existe uma justificativa legal para mantê-las detidas. Logo em seguida, contudo, torna-se claro que algumas dessas pessoas são dotadas de poderes especiais, que podem ser extremamente perigosos. Um tem o dom de curar com uma simples imposição de mãos. Uma menina de 8 (na verdade, 72 anos) pode prever o futuro. Outro entorta metais, estoura vidros e cabeças quando fica nervoso. Outra se enche de bolhas que, quando estouram, liberam um conteúdo fatal para qualquer um. Cada um tem uma habilidade diferente e o governo começa a temer a realidade:
o mundo nunca mais será o mesmo.
A sinopse fascinante me levou a adquirir, há uns quatro anos, a primeira temporada do seriado
4400. Não saberia dizer, portanto, qual a razão de jamais ter parado para assistir a ela, senão há apenas algumas semanas. Mas finda a primeira temporada, de apenas cinco episódios, adquiri as três outras e, ontem, eu e minha esposa vimos o capítulo final.
4400 é um produto típico da indústria televisiva estadunidense, comentário que deve ser recebido numa perspectiva elogiosa. No Brasil, programas como esse jamais sairiam do papel. Não há recursos orçamentários para isso nem o público suporta esse tipo de trama. Nos Estados Unidos, as ideias mais loucas podem chegar às casas dos telespectadores. No caso de que ora me ocupo, apesar de sua qualidade, o programa nunca foi um grande sucesso, por isso duvido que você vá encontrá-lo na TV a cabo a esta altura.
Lá está a trama centrada nas agências do governo americano, tendo como protagonistas dois agentes, um homem e uma mulher — Thomas Baldwin e Diana Skouris, com características complementares — mas que, felizmente, não se apaixonam um pelo outro! Lá estão as conspirações e os dramas pessoais superlativos, com uma competente exploração do lado mais humano dos personagens.
Como trama inicial, o grande ponto é: o que, afinal, aconteceu com aquelas 4400 pessoas? Por que sumiram? E por que voltaram, todas juntas? O enigma aponta, num primeiro momento, para o tema das abduções por alienígenas. Logo no capítulo final da última temporada (apenas o quinto episódio, lembre-se) descobrimos que...
(Atenção: o texto abaixo contém spoilers. Se prosseguir na leitura, saberá detalhes até mesmo do último capítulo da série.)
...não se trata disso. Na verdade, os abduzidos foram levados por pessoas do futuro (não se sabe quanto tempo, mas se supõe que seja um período medido em séculos). É que, com o esgotamento dos recursos naturais e a degradação dos ecossistemas (eis aí a mensagem ambientalista), o mundo se tornou um lugar horrível. As elites se encastelaram numa fortaleza, onde consomem o que resta de comodidades, enquanto do lado de fora impera a desgraça. Pessoas bem intencionadas decidem, então, abduzir os indivíduos do passado que, com a ajuda das novas habilidades, poderiam escrever uma história diferente. Trata-se, portanto, do objetivo de salvar o mundo do futuro.
Contudo, além de variáveis não consideradas pelos idealizadores do projeto, no futuro também há, como seria de se esperar, pessoas empenhadas em manter as coisas exatamente como são, por piores que sejam. Elas interferem no andamento do projeto, a fim de inviabilizá-lo e garantir que o futuro seja caótico. Além de mandar representantes, como a diabólica Isabelle, o ser humano mais poderoso que já existiu, e conspiradores infiltrados conhecidos como os Marcados. E como não se sabe quem é quem, o resultado é que, no presente, não se sabe em qual preposto do futuro se pode confiar. Bem que o governo decide combater todos. Afinal, quem age à margem da lei e promete mudar o mundo através de revoluções, ciente de que isso implicará em morte em massa, é um terrorista. E aí temos mais um tema recorrente no imaginário da América.
As autoridades do presente descobrem que as habilidades dos 4400 estão relacionadas a um neurotransmissor desconhecido por nós, a promicina. Descobrem que, inibindo a promicina, os 4400 podem ser neutralizados, ao mesmo tempo em que, sintetizando a substância artificialmente, uma simples injeção dela pode transformar qualquer pessoa num ser extraordinário. Se sobreviver, é claro, porque metade das pessoas que tomar a injeção vai morrer; somente a outra metade desenvolverá habilidades, embora não se possa saber quais. Eventualmente, algo terrível pode ocorrer, como de fato ocorre. O pior exemplo é Danny Farrell, cuja habilidade consiste em sintetizar promicina e liberá-la pelo ar, matando sem controle qualquer pessoa que não esteja apta para ter contato com a substância.
4400 trata do velho embate entre o bem e o mal, mas situado entre lados antagônicos que não são claramente definidos. Como líder dos 4400, surge a figura messiânica de Jordan Collier, construído para ser uma representação de Jesus Cristo, a começar pelas iniciais do nome. Ele morre e ressuscita, usa o cabelo comprido e barba, não faz milagres pessoalmente, mas comanda quem faz e, a certa altura, conduzido por uma espécie de profecia, promete literalmente trazer o paraíso à Terra. Passa a seguir as instruções de um de seus seguidores, munido de um livro cheio de profecias (detesto enredos baseados em profecias!), por perceber que revoluções dividem, já que geram medo. Ao contrário, religiões unem. Com isso, ele passa a investir no apelo messiânico de seus gestos e discursos.
O programa acaba com ele se tornando o ditador (no sentido de que tomou o território e o poder à margem das leis vigentes no país) de uma espécie de cidade-Estado em que transformou a cidade americana de Seattle, rebatizada para "Cidade Prometida". E continuamos sem saber se ele é mesmo bom ou mau.
Seu adversário, contudo, é o governo dos Estados Unidos, que com todo aquele blá blá blá sobre proteger o mundo inteiro do mal, qualquer que seja o mal, comete as maiores violências contra as liberdades individuais. Quem é o vilão, afinal?
No meio termo, temos a figura bem intencionada de Shawn Farrell, abduzido por acidente quando era adolescente, já que o alvo era seu primo, Kyle, que estava ao seu lado. Uma pequena demonstração de como os planos do futuro continham falhas. Retornando com o dom da cura (e a capacidade de sugar a energia vital das pessoas até matá-las), Shawn — antes mesmo de amadurecer — se torna o braço direito de Collier, depois seu substituto e, por fim, seu opositor, um líder menos carismático dos 4400 — adorado pelas pessoas comuns pelo dom que possui e que usa gratuitamente em benefício de muitos —, defendendo o caminho do diálogo e da união entre positivos e negativos (para promicina). Collier, ao contrário, defende que o mundo será um paraíso quando todas as pessoas forem extraordinárias (tomando voluntariamente a promicina). Não pode haver p-negativos, porque isso geraria uma nefasta luta de classes. Se metade da humanidade morrerá, isso não importa. Será o sacrifício de uma única geração para que o mundo do futuro possa ser feliz.
E assim o seriado discute, também, o tema imorredouro dos ódios entre seres que não se consideram iguais e desejam a aniquilação do lado oposto. Ou até promovem essa aniquilação. Daí vêm o preconceito e o projeto de melhoramento da raça humana, com incursões óbvias pelo nazismo. Que o diga a cena em que a adorável Maia Rutledge, que prevê o futuro, vê os 4400 presos em um campo de concentração, prestes a ser exterminados. Até a faixa no braço está lá. Durante a II Guerra Mundial, a faixa continha uma estrela de Davi. Agora, é a identificação de 4400.
O seriado aborda, enfim, questões das mais relevantes. Infelizmente, um roteiro titubeante, com saídas às vezes infantis e de duvidosa cientificidade, fez com que a série nunca decolasse. O resultado? Acabou cancelada ao fim da quarta temporada, na marra. Nos extras do DVD, fica claro que a execução da trama não foi modificada para dar um fechamento ao enredo. Eles simplesmente fizeram a quarta temporada contando com uma quinta, que nunca existiu. E assim ficaram muitas pontas soltas. Curiosamente, o final apresentado serviu razoavelmente bem à série, exceto pela sensação de como é? Já acabou?
Fica, sem dúvida, um gosto de quero mais. Mas a indústria do entretenimento nos Estados Unidos é impiedosa. Se um programa não dá lucro, ele acaba e ponto final. Ninguém recebe satisfações. E com isso boas ideias se perdem. Mas que 4400 foi uma excelente ideia, executada com alguma precariedade, lá isso foi. Com todas as suas falhas, vale a pena ver cada episódio.