Repercute na Internet e na imprensa, em âmbito local, o caso dos cães que morreram asfixiados no interior de um veículo usado para transporte de animais, pertencente a um
pet shop da cidade. Li, inclusive,
matéria na qual a reportagem entrara em contato com o promotor de justiça de Defesa do Meio Ambiente, Benedito Wilson Sá, o qual teria enfatizado a responsabilidade criminal do proprietário do
pet shop, face à configuração do crime de maus-tratos contra animal, previsto no art. 32 da Lei n. 9.605, de 1998 (Lei de Crimes Ambientais).
O tipo penal em apreço tem a seguinte redação:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena — detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa.
(...) § 2º A pena é aumentada de 1/6 a 1/3, se ocorre morte do animal.
Com todo o respeito e estima que me merece o meu ex-colega de primeiro mestrado, Benedito Wilson, e não podendo ter certeza se ele afirmou peremptoriamente a informação que lhe é atribuída, na condição de estudioso do Direito Penal, acredito ser importante fazer uma ponderação da maior relevância.
Os fatos narrados pela família proprietária dos cães foi confirmada integralmente pela empresa e, assim sendo, podemos admitir que os animais foram pegos em casa, para fins de banho e tosa, no veículo do próprio
pet shop, como já fora feito diversas vezes antes. Contudo, em vez de serem levados desde logo para local adequado, foram "esquecidos" dentro do carro que, fechado, aqueceu-se insuportavelmente, matando os caninos por asfixia.
Não tomei conhecimento do motivo que levou o funcionário a deixar os cães no carro. Contudo, se houve esquecimento, pressa, preocupação com outro assunto, distração, etc., todas essas situações nos levariam a uma mesma conclusão:
houve negligência. E
negligência é fundamento de culpa, não de dolo. A menos que haja alguma informação adicional que desconheço, não há nenhum fator razoável que justifique conceber-se a figura do dolo eventual. Para tanto, seria preciso que o funcionário deixasse os cães naquela situação de caso pensado, sem se importar com o mal que lhes pudesse suceder. Mas a hipótese é no mínimo inverossímil, por ser óbvio que a consequência seria, como foi, a perda do emprego.
O delito acima descrito é necessariamente doloso; não há modalidade culposa prevista para ele. Logo, se os fatos se deram do modo como está sendo propalado,
não existe crime no contexto, por atipicidade absoluta ou, em linguagem mais modesta, por ausência de previsão legal.
Embora chovendo no molhado, invoco a doutrina: O tipo subjetivo dessa figura "é o dolo, consistente na vontade de abusar, maltratar, ferir ou mutilar o animal. Não há a forma culposa do delito" (MACIEL, Silvio. "Meio ambiente: Lei 9.605, 12.02.1998". In: GOMES, Luiz Flávio e CUNHA, Rogério Sanches (coord.).
Legislação criminal especial. Coleção Ciências Criminais, vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 755). O aspecto é tão comezinho que mesmo a doutrina o resolve em duas frases, passando a tratar de outras questões mais específicas, como a mutilação de animais para fins estéticos (esta, sim, nitidamente dolosa, mas supostamente assimilada pela sociedade).
No mais, ainda que crime houvesse, qualquer neófito em Direito Penal sabe que
a responsabilidade penal é personalíssima. Costumamos falar sobre o princípio da intranscendência da pena (art. 5º, XLV, da Constituição de 1988) no máximo na segunda semana de aulas. Por conseguinte,
o autor do delito seria o funcionário que deixou os cães em sofrimento, jamais o proprietário do pet shop, a menos que tivessem agido em comunhão de desígnios. Vale lembrar, por oportuno, que nem todos os penalistas concordam com a coautoria em crimes culposos.
Em suma, a responsabilidade da empresa é civil (reparação dos danos materiais e morais).
***
Considerando que a histeria tomou conta da Internet, concluo esta postagem lembrando que gosto de animais, amo cachorros
— tenho dois
— e sou avesso a qualquer forma de maus-tratos. Outrossim, não conheço qualquer pessoa relacionada ao
pet shop em questão, dono ou funcionário, jamais tendo posto os pés no estabelecimento. Também não conheço ninguém da família prejudicada. As considerações acima constituem, exclusivamente, uma reflexão restrita à dogmática penal.