Aqui no brioso bairro da Marambaia, há uma borracharia cuja localização sempre me chamou a atenção. Ela parece estar sobre a calçada, mas mesmo assim sobra uma faixa larga de calçada para que os pedestres passem. Obstáculos, só se algum carro estacionar por ali, o que obviamente acontece com frequência. Ao lado da borracharia, há outra loja minúscula, que me lembre assistência técnica de alguma coisa. Os dois corpos estranhos jaziam na divisa entre duas empresas: uma transportadora e uma serraria. Serraria esta que, vez em quando, empestava o ar com um cheiro forte de madeira molhada, o qual se espalhava por larga distância. Sempre odiei abrir minha janela e receber uma lufada daquele ar fedido. Odeio cheiro de madeira molhada para beneficiamento.
A transportadora continua lá, mas a serraria não. O terreno foi vendido. Sem nenhum esforço, você pode deduzir que para uma grande construtora, que no local pretende erguer o bilionésimo empreendimento imobiliário vertical em Belém. Nossa cidade se asfixia cada dia um pouco mais com tantos espigões conspurcando a paisagem, cada vez mais árida e morta, cada vez com menos céu e nuvens, cada vez mais quente e sem circulação de vento, porém com cada vez mais circulação de automóveis.
A Marambaia é um bairro privilegiado por ser a última reserva de áreas verdes abundantes em Belém. Mesmo combalido pelo "Via Metrópole", que rasgou a Av. Dalcídio Jurandir (já expliquei que não aceito o nome vendido que puseram na avenida), ainda está lá o Parque Ambiental (que também ganhou um nome vendido) e, fechando um cinturão em volta, diversas áreas ocupadas pelas Forças Armadas, além do Parque Estadual do Utinga e do Jardim Botânico Bosque Rodrigues Alves. Deveria ser aproveitada a vocação desse bairro para ser uma zona verde, repleta de parques, jardins, áreas de convivência, esporte e lazer. Mas, claro, isso é um devaneio meu. A ocupação monstruosa está chegando. Já existe um edifício habitado, três em vias de e, agora, o malsinado empreendimento que erguerá, num só lugar, ao menos uma dezena de prédios. Várias centenas de famílias deverão empoleirar-se nos minúsculos (e mesmo assim caríssimos) apartamentos, gerando enorme pressão por recursos como transportes, energia elétrica, água e esgoto. O caos.
Assim que assumiu o imóvel, a construtora obviamente decidiu escorraçar os vizinhos indesejáveis. Em dezembro passado, agentes das secretarias municipais de Economia e de Urbanismo estiveram no local com intenções claras. Por alguma razão, não conseguiram remover os humildes empreendedores. Os dois borracheiros, pai e filho, Martins de seu sobrenome, constituíram um advogado e a demanda foi levada para o foro. Passados mais de oito meses, o poder econômico está perdendo os rounds iniciais. Como vingancinha, e para preservar o empreendimento da visão grosseira dos casebres, foi erguido um muro tapando descaradamente a janelinha que aliviava o calor da borracharia. Os Martins aceitaram sem protestos.
Há dois dias, encostei na frente da borracharia. Enquanto tirava um parafuso de um dos pneus (tenho uma inexplicável capacidade de atrair parafusos, pregos e outras porcarias para dentro dos pneus do meu carro!), o Martins mais novo me contou o seu problema. Vendo-me de terno e já sabendo que sou advogado, fez-me algumas perguntas das quais me esquivei, alegando que precisaria examinar os documentos mencionados. Afinal, ele já tem um advogado e se há uma coisa que nunca fiz foi emitir pareceres em casos onde já existe um advogado atuando.
O rapaz, que deve ter uns poucos anos mais do que eu, em sua enorme simplicidade, que nunca lhe impediu de ser sempre atencioso e educadíssimo comigo, explicou-me que seu pai comprou uma benfeitoria (os termos técnicos são meus, claro) da dona de um antigo restaurante que havia ali. Negócio de 30 anos atrás. Aí veio a serraria, que ocupou uma grande área e cujo dono aceitou a presença do borracheiro. Nas palavras do Martins filho, existe um documento no qual o dono da serraria autorizava expressamente a presença da borracharia "em terreno de sua propriedade".
Se assim foi, os prognósticos não são nada bons para os humildes borracheiros. Afinal, vendido o imóvel, o novo proprietário não está obrigado a liberalidade alguma. O Martins filho deve ter percebido alguma coisa em meu semblante, pois fez um silêncio e depois concluiu que acha muito difícil eles saírem dali "sem nenhuma indenização". Pessoas que ocupam imóveis irregulares ou a título precário sempre acreditam ter direito a indenizações. Às vezes a crença se dá por pura necessidade de sobrevivência, como imagino que seja o caso.
Sabe-se lá quanto tempo se passará até que o Judiciário resolva o imbróglio entre a borracharia e a empreiteira. O curioso é que sempre me incomodei com pessoas que ocupam o espaço público (o público, especificamente) e se acham donas do pedaço, como os camelôs em relação às calçadas e, mesmo, os donos de bares e outros estabelecimentos, de todos os níveis econômicos, que se acham no direito de espalhar cadeiras e mesas até sobre nossas cabeças. Mas a empatia é um fenômeno complexo. Já faz tantos anos que, de vez em quando, encosto ali na borracharia dos Martins para calibrar os pneus ou retirar os meus habituais pregos que olho para os dois com uma inesperada vontade de que vençam o litígio.
Se passo pelo local, o que me enche de aflição e mesmo de raiva é o stand de vendas do mais novo favelão da cidade, com sua propaganda histérica repleta de famílias felizes, desfrutando do prazer de uma "sofisticada" vida em condomínios bem equipados, cuja piscina é provavelmente do tamanho do apartamento.
Sabemos que, na vida real, Davis não vencem Golias. Exceto se entendermos que Golias é a cidade, imensamente maior e mais importante do que uma empreiteira, mas que continuará sendo vergastada pelo concreto e suas consequências infelizes. De minha janela e de minha sacada, vejo se reduzir a cada dia a quantidade de verde que nos cercava. Quando, afinal, ele acabará?
2 comentários:
Aquilo é área pública, faz parte do passeio, cuja ocupação já era feita irregularmente pelo dono da serraria, que assim já recebeu o imóvel do antigo proprietário do terreno, onde funcionava uma boate e motel na déc. de 60 e 70 - "A Palhoça" (avançaram o muro sobre as margens da antiga rodovia que havia ali, antes dos programas habitacionais dos governos militares). Assim sendo, áreas públicas não podem ser usucapidas, sequer para fins de moradia, salvo casos de "concessão de direito real de uso do solo", porém neste caso entendo que não se estende a utilização para fins econômicos, ainda mais em se constatando que o dono da borracharia tem outro imóvel registrado em seu nome, como penso deve ser o caso, eis que já me mencionou certa vez que tem casa própria.
A prefeitura deve requerer a reintegração de posse da área em ação ordinária, ressalvando-se benfeitorias úteis e necessárias realizadas pelo posseiro, o que por sua vez penso também não ser o caso, uma vez que não se constata no local qualquer benfeitoria destinada à conservação do imóvel, tampouco com qualquer utilidade para a administração muncipal.
De acordo com a lei, terá de sair, e qualquer indenização, em tese, deve ser feita por mera liberalidade da prefeitura, resguardando-se a questão social.
Haveria uma saída para o posseiro, teria ele de comprovar a sucessão de domínio para se verificar a origem da titulação daquela área, se fazia parte de área particular ou de qualquer ente federativo. Se particular, cabe usucapião. Neste caso deve procurar a CODEM, que duvido muito fosse emitir um parecer ou planta plotada com histórico em seu desfavor.
É isso.
Fred
Não acho que haja a mínima condição de os Martins permanecerem no local, Fred. Acho que não têm direito, mesmo. Contudo, a alternativa - construção de mais um favelão urbano - não nos permite nenhuma alegria, sequer alívio.
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