Existem macacos brancos...
Existem macacos cinzentos...
Existem macacos da cara azul...
Existem macacos de diversas cores...
Por alguma razão, entretanto, no Brasil macaco está imediatamente associado à cor preta. Com ou sem fundamento, é a expressão mais comumente lembrada quando se quer expressar uma injúria racial. Se a intenção é ofender e se fala em macaco, pronto, o cidadão comum entende que a agressão se motivou na cor da pele da vítima.
Na semana passada, uma professora da Universidade do Estado do Pará se envolveu num conflito que ainda vai render. Impedida de entrar na instituição por um portão, alegadamente fechado por ordens superiores, a professora desancou o porteiro e teve a infelicidade de chamá-lo de macaco. Maior infelicidade ainda porque o rapaz tem a pele escura. Pelo imbróglio passaram ainda dois estudantes, que decidiram filmar a cena e acabaram ofendidos também. O assunto terminou na delegacia e na imprensa e agora a professora — ironicamente uma antropóloga que estuda religiões africanas — está conhecendo as consequências de mexer com certas feridas não cicatrizadas. Demonizada, achincalhada, está descobrindo que no mundo de hoje não existe mais o perdão.
Não conheço os protagonistas do episódio nem quero ser legal ou ruim com qualquer deles. Apenas acho que se está dando uma dimensão grande demais para o evento. Num país em que um cantor negro é acusado de racismo porque fez um videoclipe vestido de gorila, redundando numa investigação pelo Ministério Público Federal (já arquivada), e em que o Supremo Tribunal Federal foi convocado a decidir se Monteiro Lobato era racista por causa de um livro publicado em 1933, deve-se cogitar de uma certa inclinação ao exagero.
Sem dúvida, a professora ofendeu o porteiro e, nos termos da legislação vigente, há implicações criminais em tese para o caso. Mas o pequeno polemizador que vive dentro de mim insiste em lembrar que existem crimes e crimes, de modo que a acusada pecou, mas não necessariamente seu pecado foi capital. Ela ainda pode se reconciliar com Deus e com a sociedade — ou deveria poder. Até já se declarou arrependida em entrevista à TV, mas seu gesto não lhe trouxe solidariedade, senão uma renovação dos ataques que vem sofrendo nos comentários das matérias publicadas na Internet e também nas redes sociais.
Eu não gostaria de estar na pele (sem trocadilhos) do porteiro. Mas gostaria menos ainda de estar na da professora. Se bem que não estaria, porque meu estilo Saraiva e minha raiva generalizada têm outras válvulas de escape, que não assumem a forma de agressões diretas e individualizadas, nem sequer por escrito. Não me meto em confusões, se posso evitá-las. E sou bem mais reativo do que agressivo.
Se é verdade o que disse a professora — não quis menosprezar o porteiro pela cor negra, e sim criticá-lo por cumprir ordens de forma irreflexiva —, inegável que a sua escolha de palavras foi péssima. Eu não compreendo "macaco" como alegoria de alguém que só cumpre ordens e não pensa. "Macaco" não remete a isso. Talvez "vaca de presépio" fosse melhor. Eu, p. ex., gosto de usar a expressão "pessoas que somente executam", imagem que tem diversas vantagens, inclusive não ser percebida tão facilmente como a ofensa que é.
Imagine você se desentendendo com alguém e chamando esse alguém de "galinha". Todo mundo entenderia que se trata de uma ofensa à honra sexual. O que é "galinha"? Puta, ora pois! E se o alvo fosse uma mulher, como provavelmente seria, restaria impossível convencer alguém do contrário. Se você dissesse que pensou no fato de as galinhas serem animais de baixíssima inteligência e que por isso cumprem ordens sem qualquer reflexão, ninguém acreditaria. Tanto porque um outro sentido já foi construído no imaginário coletivo quanto porque galinhas não cumprem ordens. Cachorros cumprem ordens. Cavalos também. Galinhas não: são burras demais para isso. E o burro não tem nada a ver com a história, mas sempre acaba pagando o pato.
Para não me perder demais em devaneios, lembro que existem razões sociais, algumas de cunho histórico, para se tomar especial cuidado com certas atitudes e expressões. É muito fácil praticar discriminação religiosa, se o ofendido é um evangélico ou um espírita, como eu. Mas se atreva a falar de um judeu, mesmo que seja piada, para ver o que acontece. De modo semelhante, qualquer um pode humilhar um nortista, mas se um paulista debochar de nordestinos (os genericamente classificados como "paraíbas"), a coisa pode desandar. Você pode chamar alguém de "bexiguento", "pirento" e coisas do gênero, mas nenhum documento oficial pode, por proibição instituída em lei, usar a palavra "leproso" ou qualquer das variações de lepra.
Hoje em dia, evite falar de índios e principalmente de gays. Porque o tempo pode fechar para o seu lado. E saiba que chamar um velho de "velho" também é injúria preconceituosa. Chamar uma mulher de "mulher" ainda pode; a "Lei Maria da Penha" ainda não proibiu, mas não sabemos por quanto tempo.
Os dias de minha infância eram mais simples. Ninguém me repreenderia por dizer que havia um velho à porta. Ainda mais se eu dissesse "velhinho". Mas hoje estamos imersos na incompreensão e na intolerância. Parte-se do pressuposto de que todos querem sempre ofender e sempre do modo mais violento. E as reações, em geral escoradas em supostos argumentos de justiça, não costumam ficar atrás em matéria de ódio.
Que mundo, este...
7 comentários:
Excelente texto. Estamos já no tempo pós-politicamente correto? Somos todos tão vulneráveis, tão cheios de suscetibilidades... Este patrulhamento nos deixará neuróticos! Passou dos limites do que apregoávamos ser exercício de tolerância e respeito à diferença. Chegou à hipocrisia. Quando estou com minha filha no elevador e em preseça de mais um terceiro, morro de medo que ela abra a boca e comente algo sobre a estatura, o peso, a cor, a roupa, o sorriso, o sotaque do estranho.
Concordo em gênero número e grau.Até meu marido já anda com medo de me chamar de minha "neguinha"
Hoje em dia, tentamos tanto tapar o buraco dos erros do passado da humanidade, que acabamos cometendo novos erros. É aquela sensação de que, se todo mundo se comportar, nunca mais nada de ruim vai acontecer. Ledo engano: aquele que anda um dedinho fora da linha é execrado do meio social sem dó nem piedade.
E o pior: a grande maioria das pessoas condena a professora (inclusive cheguei ao absurdo de ver no Facebook uma foto dela com as palavras "Teu Mestrado foi pro lixo!!") mas faz piadinhas de cunho "racista" com os amigos (o famoso "preto só faz pretice" e afins).
Lembrando que, uma coisa é eu chamar um amigo, carinhosamente, de "pretinho", uma amiga de "minha nega" (aliás, já fui até chamada de "minha filha branca" pela mãe de uma amiga, cujo a família era toda morena), outra coisa é, ridiculamente, se atribuir defeitos à cor da pele, coisa que não tem nada a ver.
Enfim...
Agradeço aos comentaristas o reforço aos meus argumentos. Folgo em saber que ainda é possível fazer ponderações sem levar pedradas.
Recorramos então aos eufemismos e às ironias sutis para expressarmos o que quisermos, do jeito que quisermos. Sugestões:
Feio - desprovido de beleza, quase bonito, bonitinho, etc
Sem dinheiro - liso, sem crédito, sem fundos, etc
Burro(a) - deficitário(a) de inteligência, pouco afeito ao conhecimento, portador de baixo conteúdo intelectual, etc.
Ladrão de dinheiro público - desviador de verbas públicas, apropriador de erário público, repatriador de recursos públicos, etc.
Que tal continuar a lista?
Querido, vou discordar de ti. Claro que não sou a favor da esquizofrenia, como as críticas aos livros do Monteiro Lobato ou a um clipe musical de mau gosto, mas, como tu mesmo disseste, as palavras tem uma carga de simbologia muito forte, que não pode ser ignorada.
No caso específico, a professora SABIA muito bem o sentido tradicionalmente dado a "macaco" e, ouso dizer, o desejou. Ao proferi-la, ela queria justamente diminuir alguém pela cor da pele. As explicações posteriores foram apenas uma forma de atenuar a ofensa, mas saíram pior do que a encomenda.
Também não acho adequado que uma ofensa individual deste porte seja considerada crime. Uma indenização cível seria mais apropriada. De todo modo, mais do que ser uma medida juridicamente sancionável, é importante que ofender alguém pela cor da pele seja uma atitude SOCIALMENTE inaceitável, por isso, não vejo com maus olhos, a princípio, as manifestações nas redes sociais.
Não acompanhei nenhuma, mas imagino os tipos de atrocidades que tenham dito por aí. Ofensas, iguais à da professora-ofensora. Jamais serei a favor disso, mas me agrada a ideia de as pessoas rechaçarem esse tipo de conduta, com respeito e educação.
Ela, de fato, tem o direito de se arrepender. Acredito que ela refletirá sobre preconceitos que talvez ela própria não reconhecesse em si, mas é importante partir do óbvio: naquele momento, ela os tinha. Por torná-los público, acho razoável que ela sofra consequências jurídicas e sociais, desde que proporcionais à ofensa.
Caro Yúdice, o Fantástico deu destaque ao caso. Não existe meio termo: ela chamou o porteiro de macaco porque ele é de pele escura. O ato dela foi repulsivo.Ela cometeu o crime de injúria racial e por isso, ela deve responder.Desculpas, não adiantam. Ela tem que pagar pelo que fez Minha mãe assistiu a matéria comigo e ficou chocada com as cenas.Minha mãe, inclusive, disse que como uma pessoa que estudou agiu dessa forma.Bom, pra mim, educação não tem nada a ver com anos de estudo.
Sou contra a ditadura do politicamente correto.Mas no caso em tela, o ato é repulsivo.
Abs. Márcio Farias
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