Basta um mínimo de bom senso para perceber que estados psíquicos de um ser humano não podem ser classificados de acordo com padrões normativos. Naturalmente, pode a lei estabelecer valorações normativas sobre os fatos e é isso que faz a todo momento. Contudo, os conceitos de dolo e de culpa resultam de uma longa evolução teórica, pensada com muito cuidado em meio a amplos debates, por algumas cabeças bastante privilegiadas. Estamos falando de décadas e décadas, e não de uma mera legislatura. Não pode um deputado brasileiro, de uma hora para a outra, simplesmente mudar tudo, para atender a suas miopias utilitaristas, ainda quando ostente um título de advogado e seis mandatos na Câmara dos Deputados, tendo participado inclusive da Constituinte.
De acordo com a proposição, o dispositivo legal passaria a ter esta redação:
Art. 18. Diz-se o crime:
Crime doloso
I - doloso, quando o agente quis o resultado;
Crime culposo
II - culposo, quando o agente, por imprudência consciente, assumiu o risco e deu causa ao resultado.
§ 1º A imprudência consciente classificar-se-á em:
a) Gravíssima, quando o agente, tendo conhecimento e consciência da previsibilidade do resultado necessário, aceitou produzi-lo;
b) Grave, quando o agente, sendo indiferente ao conhecimento e à consciência da previsibilidade do resultado eventual, o produziu;
c) Leve, quando o agente, tendo conhecimento e consciência da previsibilidade do resultado eventual, não aceitou produzi-lo.
§ 2º Age com imprudência inconsciente o agente que, sem conhecimento e previsibilidade, produziu o resultado.
§ 3º Pune-se o crime culposo:
a) Se praticado com imprudência consciente gravíssima, com pena correspondente a nove décimos da aplicada quando praticado o crime de forma dolosa;
b) Se praticado com imprudência consciente grave, com pena correspondente a oito décimos da aplicada quando praticado o crime de forma dolosa;
c) Se praticado com imprudência consciente leve, com pena correspondente a cinco décimos da aplicada quando praticado o crime de forma dolosa;
d) Se praticado com imprudência inconsciente, com pena correspondente a três décimos da aplicada quando praticado o crime de forma dolosa;
§ 4º Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” (NR)
O projeto é caótico. Ele elimina a figura controversa do dolo eventual, mas não os meandros psicológicos nos quais o mesmo se fundamenta. Estes são simplesmente deslocados para o âmbito da culpa e, uma vez ali, trifurca-se em graus definidos de acordo com a maior ou menor previsibilidade do resultado da conduta praticada. Ou seja, se hoje há dificuldade em explicar como uma pessoa pode não querer diretamente porém assumir o risco de causar certo resultado, com a mudança teríamos que realizar o mesmo raciocínio, só que muito dificultado pela necessidade de estabelecer uma gradação, totalmente artificial e sem a menor possibilidade de demonstração empírica. Em suma, o parlamentar decidiu ser mais realista do que a própria realidade.
Como se não bastasse, projetos sem reflexão também costumam ser pessimamente redigidos. Aqui, fala-se em "conhecimento e consciência da previsibilidade do resultado", forçando o intérprete a estabelecer um sentido específico para "conhecimento" e outro, distinto, para "consciência". Já imagino as páginas e páginas de filosofismo nos manuais do futuro, caso essa aberração virasse lei.
Outra característica comum dos projetos malucos é trazer o caos para o sistema. No caso, enquanto hoje temos a simplicidade das penas cominadas a cada tipo culposo, o que por sinal se mostra coerente com o princípio da legalidade, a proposta perpetra uma acintosa gradação: conforme a intensidade da culpa, a pena seria estabelecida em frações da pena prevista para o correspondente tipo doloso. A dosimetria deixaria de lado o bom senso para se aferrar à calculadora.
Dá para piorar? Dá, claro. As penas previstas para os casos de culpa gravíssima e grave (9 décimos e 8 décimos, respectivamente) são tão elevadas que eliminam, na prática, a distinção entre dolo e culpa. Seria perfeitamente possível que um delito culposo acabasse com pena superior à de outro, doloso, insanidade que hoje simplesmente não tem como ocorrer.
Resumindo, o projeto é um lixo e merece ser lançado ao fogo do inferno. Mas, naturalmente, o proponente tem lá grandes razões para cometer esse desatino. Em sua justificativa, diz o deputado (com meus comentários):
A apresentação deste projeto é motivada pela ausência de uma legislação que abrigue de forma justa e pacífica a questão do dolo e da culpa no Brasil.Hein? Como assim? Nós sempre tivemos legislação sobre dolo e culpa no Brasil. Quanto a ela ser "justa e pacífica", isso não é impeditivo para a permanência da lei atual e, sem dúvida alguma, a proposta porcamente concebida pelo deputado só tornaria a matéria mais injusta e desencontrada.
Assim, um dos principais efeitos da aprovação desta proposição é que delitos como os de trânsitos terão tratamento adequado, o que mitigará um dos verdadeiros gargalos da legislação penal no Brasil, visto que suprimirá a ficção denominada dolo eventual, implicitamente propugnado na parte final do inciso da redação atual. Desta sorte, segue abaixo as principais justificativas para a alteração proposta.Eis a prova do utilitarismo: inconformado com o que entende serem penas baixas para os delitos de trânsito, o parlamentar quer forçar um endurecimento da legislação, por mais irracional que seja. O mais engraçado é ele classificar o dolo eventual como "ficção". E culpa gravíssima, grave e leve seriam o quê? Imperativos categóricos?
Da supressão da expressão “ou assumiu o risco de produzi-lo”O proponente recorre a velhos maneirismos retóricos (se é que isso merece ser chamado de retórica), como o uso da debochada expressão "cheque em branco", aqui utilizada para denotar falta de confiança no Poder Judiciário que, aparentemente, no entendimento do autor, não deveria conspurcar a ideia original do sacrossanto e infalível Legislador (escrito assim, com letra maiúscula). Tal concepção, a meu ver, menospreza inclusive o princípio da independência entre os poderes, por colocar o Legislativo além do controle final do Judiciário, que é quem, aplicando a lei ao caso concreto, está mais capacitado a fazer da norma algo realista.
Não resta dúvida que a expressão “ou assumiu o risco de produzi-lo” funciona mais ou menos como um cheque em branco dado ao Estado-juiz pelo Legislador. Ao positivar esta frase no Código penal pátrio o Legislador apenas chancelou o que foi decidido pela comissão do projeto de 40, que por sua vez, tentou dar um sentido legal ao fictício dolo eventual, mas a verdade é que até os dias atuais, nem a legislação e tampouco a jurisprudência conseguiram dar um sentido lógico e isento de críticas avassaladoras a tal espécie de imputação.
Além disso, a obsessiva preocupação do parlamentar com a ausência de críticas à lei ou ao instituto penal é irreal, uma meta inalcançável.
A supressão do referido termo do CP pátrio, deixa claro que o Brasil assume uma postura de vanguarda ao desgarrar-se, ao menos em relação ao dolo eventual, da dependência da teoria do consentimento. A ideia de que o consentimento, per si, seja suficiente para a caracterização do dolo é também per si, refutável.
Conforme demonstramos na estrutura significativa ora apresentada, nenhuma das teorias do dolo, a do consentimento (quando o agente assume o risco), a da vontade (quando o agente quis o resultado) ou a da representação (quanto o agente tem a previsão do resultado), tem, per si, o condão de sustentar, de forma significativa, que um ato foi praticado ou não com dolo.
Como se pode perceber numa análise, mesmo que perfunctória, de nossa exposição, em algum momento todas essas teorias terminam por se encontrar na estrutura significativa de imputação subjetiva, ou seja, na estrutura daquilo que realmente pode ser chamado de dolo, quando temos a junção dos cinco caracteres significativos positivos: a vontade de realizar o fato delituoso; o conhecimento de que sua ação produzirá o efeito desejado; a consciência da previsibilidade do resultado necessário; a aceitação do resultado que será obtido; e a decisão de agir depois de ter representado todos esses caracteres.
Faz-me rir. "Postura de vanguarda"? Tanto assim? E qual seria a fundamentação teórica do parlamentar para tamanha aversão à teoria do consentimento? Qual é a teoria que ele pretende ver implementada no Brasil?
Em relação aos parágrafos segundo e terceiro, se você não entendeu onde o proponente queria chegar, saiba que eu também não. Verborragia.
Da supressão da Negligência e da Imperícia
Pelo que se verifica acima, suprimiu-se as figuras da negligência e da imperícia. Este fato ocorreu em virtude de que os conceitos de ambas as figuras descambam sempre no conceito de imprudência, não há, pois, como afastá-lo, visto que tanto a negligência quanto a imperícia serem figuras típicas da imprudência. Assim, a negligência, antes de ser um proceder negativo frente às exigências elementares, é na verdade uma atitude de imprudência, pois não fazer algo que deveria fazer, ou seja, omitir-se, é exemplo de ação negativa, onde o agente assume todos os riscos dali provenientes, sendo, pois, imprudente. Da mesma sorte a imperícia, levada a cabo no fazer sem o devido preparo, não se afasta da seara da imprudência, visto que o agente fez algo que, pela ausência de preparo, não deveria ter feito.
A lei não fala em imprudência, imperícia e negligência. Fala em culpa, tão somente. As três clássicas formas de exteriorização pertencem ao campo teórico. Levar essa questão para o texto da lei, fator de enrijecimento do Direito, é uma ideia das mais infelizes. Afora isso, ao contrário do que acima afirmado, das três formas a mais genérica é a negligência, não a imprudência, porque a noção geral de culpa corresponde a um deixar de fazer, deixar de atentar para procedimentos de segurança. Não à toa, autores como Álvaro Mayrink da Costa, estudiosíssimo penalista que produziu um dos mais alentados manuais de Direito Penal brasileiro, sequer utilizam a expressão "crime culposo", preferindo chamá-lo de "injusto negligente".
Da classificação da Imprudência
A ideia de uma reclassificação da imprudência surgiu naturalmente em consequência da necessidade de se abrigar o dolo direto de segundo grau, adotado na parte europeia usuária do sistema Civil Law, como do dolo eventual, propugnado tanto lá quanto no Brasil e na maioria dos países latinos americanos. De outra sorte a reclassificação também serviu para abrigar a Intention Indireta, a recklessness em suas duas variações Cunningham e Caldwell e a Negligence.
Ora vejam, existe uma fundamentação teórica! Mas ela aparentemente foi simplesmente importada sem qualquer reflexão. Admito minha fragilidade neste ponto e vou correr atrás dos parâmetros aqui mencionados, quando me sobrar algum tempo. Entretanto, aposto que se eu perguntasse agora para o deputado o que ele quis dizer com essas teorias, a reação seria constrangedora para ele.
Das Penas Aplicadas aos Crimes Culposos
A reclassificação que se propõe encontra livre amparo na necessidade de se corrigir a ausência de democracia penal na legislação atual. O implemento do que ora propomos corrigirá um dos maiores assombros no Código Penal brasileiro, que é a desproporcionalidade entre as penas que são aplicadas aos crimes praticados a título de dolo e de culpa.
É impressionante como as pessoas têm essa mania louca de fazer afirmações desarrazoadas como se fossem premissas indiscutíveis! Como assim, "ausência de democracia penal na legislação atual"?! Precisamos, urgentemente, que o autor da proposta esclareça o que entende por "democracia penal" (não temos como adivinhar) e justifique porque ela não existe no país. No mais, ele quer combater a "desproporcionalidade" das penas e pretende fazê-lo praticamente acabando com toda a diferença entre elas. Por Cristo!
Eis a qualidade do Poder Legislativo brasileiro.
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