Essa mulher relatou, também, maus tratos que sofreu e testemunhou, praticados por membros da própria equipe do hospital. Não sei se estressados com os baixos salários, as jornadas de trabalho longas e as condições adversas do ambiente (desculpas sempre lembradas nessas horas), mas vários profissionais mostravam-se impacientes e até agressivos. Diante de mulheres sozinhas, vulneráveis e — por que não ressaltar? — pobres, com baixo acesso à reivindicação de seus direitos, irritavam-se quando elas gritavam, choravam, reclamavam de dor. Um dos comentários mais calhordas era "na hora do bem-bom soube abrir as pernas, então agora não reclama!"
Ressalte-se que comentários como esse partiam de mulheres, geralmente do corpo de enfermagem. Não que médicos não digam nojeiras semelhantes, mas é que muitos médicos se sentem importantes demais para dedicar seu tempo a um paciente só. Costumam cuidar de seus inúmeros outros interesses e só aparecem para realizar o ato privativo de médico, quando então supõem estar brindando o mundo com sua genialidade.
Na época, fiquei horrorizado com tudo isso, mas por alguma razão acabei não escrevendo uma postagem a respeito. Hoje, porém, deparei-me com esta postagem do blog feminista Escreva Lola Escreva, sobre violência obstétrica. E descobri que já existe, desde 2003, uma lei sobre o assunto, que minha ignorância não alcançava.
Entendo importantíssimo combater os atos de desumanidade — com potencial de prejudicar concretamente a saúde física e mental das gestantes/parturientes e de seus filhos — caracterizados como violência obstétrica. Abaixo, o texto da lei mencionada.
LEI N. 10.778, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2003
Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Constitui objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, a violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.
§ 2º Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica e que:
I – tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual;
II – tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entrºe outros, violação, abuso sexual, tortura, maus-tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar; e
III – seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
§ 3º Para efeito da definição serão observados também as convenções e acordos internacionais assinados pelo Brasil, que disponham sobre prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
Art. 2º A autoridade sanitária proporcionará as facilidades ao processo de notificação compulsória, para o fiel cumprimento desta Lei.
Art. 3º A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido.
Parágrafo único. A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável.
Art. 4º As pessoas físicas e as entidades, públicas ou privadas, abrangidas ficam sujeitas às obrigações previstas nesta Lei.
Art. 5º A inobservância das obrigações estabelecidas nesta Lei constitui infração da legislação referente à saúde pública, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.
Art. 6º Aplica-se, no que couber, à notificação compulsória prevista nesta Lei, o disposto na Lei 6259, de 30 de outubro de 1975.
Art. 7º O Poder Executivo, por iniciativa do Ministério da Saúde, expedirá a regulamentação desta Lei.
Art. 8º Esta Lei entrará em vigor 120 (cento e vinte) dias após a sua publicação.
5 comentários:
Yúdice, fui lá no "Escreva, Lola escreva". Nunca eu tinha ouvido história parecida. Li também os comentários onde várias pessoas passaram ou relataram casos de outras pessoas que passaram pela violência obstétrica.
Sério, fui muito bem tratada nos meus 2 partos, nos meus 3 abortos, e nenhuma conhecida minha relatou alguma violência absurda dessas.
A hora do parto é um momento onde estamos completamente fragilizadas, precisando de atenção e carinho.
É um absurdo que profissionais tratem com tanto desdém mulheres em um momento tão especial de suas vidas. Absurdo.
professor, meu irmão estagia em um psm desses de Belém e lá a situação é parecida, á um abuso por parte dos médicos e o que ele me relatou foi que muitos profissionais usam o argumento do medo, dizendo que se o paciente não "se comportar" o mesmo deixara de fazer tal procedimento. nestes casos que há uma violência psicológica contra o paciente por parte do corpo de médicos, há alguma lei especifica que o puna? só me vem a cabeça o ministério público, ou quem sabe uma reclamação administrativa.
Tiveste sorte, Ana. Mas como mencionei, conheço muita gente que foi tratada com menosprezo e desumanidade. E sequer podia queixar-se!
Kayo, no nível que narras, a coisa chega a ser crime de constrangimento ilegal, a depender das exigências feitas. É essencial responsabilizar os infratores. Quem não tem condições emocionais de exercer essas profissões que procure outra.
Yúdice,
não seria necessário um aprofundamento nesta Lei, com punições específicas e severas aos agentes que praticassem tais atos?
Acredito que por ser uma situação ímpar, tal qual a violência doméstica contra a mulher, talvez fossem necessárias sanções específicas e, até mesmo, medidas de proteção.
Marcella, sou em princípio avesso a novas leis punitivas. Por mais grave que seja o caso, entendo que o rigor punitivo deve-se dar no plano da responsabilidade profissional e civil, aqui por meio de indenizações decentes - e não essas esmolas que o judiciário costuma conceder para, supostamente, prevenir enriquecimento ilícito.
Mas entendo que, no plano penal, já existem normas aplicáveis, tais como maus-tratos, constrangimento ilegal, lesão corporal, ameaça e até mesmo tortura. No mínimo, perigo para a vida ou saúde.
O importante, mesmo, é dotar as pessoas de consciência dos seus direitos, para que saibam que podem e devem protestar, acabando com a impunidade e até mesmo o endeusamento desses maus profissionais.
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