As pessoas, no geral do tempo, são apáticas. Saem dessa apatia quando algum acontecimento particularmente grave lhes impressiona. O raciocínio vale para a criminalidade também. Todos os dias, muitas pessoas são assassinadas neste país. Segundo dados que vi em reportagem da Bandnews ontem, o número de homicídios caiu nas capitais ao mesmo tempo em que quase duplicou no interior. Uma das razões é a interiorização do narcotráfico, acossado por ações policiais nas grandes cidades.
Mesmo com o enorme índice de homicídios e a maioria deles envolvendo jovens, raramente um desses crimes ganha repercussão totalizante. É preciso que um pai seja acusado de matar a própria filha de 6 anos, junto com a esposa; ou que uma jovem mande assassinar os pais a pauladas e abra a casa para os agressores; ou que o sujeito mate a ex-namorada após quase uma semana de cárcere privado; ou que se incendeie um índio vivo; ou que se arraste uma criança por quilômetros, num carro. Se não for assim, a novela e o noticiário de futebol continuam dominando a atenção do grande público.
É por isso que me impressiona o horror disseminado na sociedade brasileira pelo vídeo da mulher que brutalizou um cachorro da raça yorkshire, fato trazido à baila esta semana, mas que já aconteceu há mais tempo. Vi o vídeo agora e claro que detestei. Quem me conhece sabe o quanto gosto de cachorros e, mesmo que não gostasse, abomino a violência, porque não vejo sentido nela. Mas ainda que sufragando a indignação geral, não posso admitir os protestos que invadiram as redes sociais, pedindo até a morte da enfermeira de 22 anos que cometeu essa sandice. E não posso refrear uma pergunta honesta: como alguém consegue sentir todo esse ódio pela morte do cachorro sem tremer, com fúria semelhante, com as perdas humanas diárias, para a violência doméstica, para a direção embriagada, para a miséria, para a inércia dos governos, etc.?
Minha indignação é por tudo isso. O cachorro, felizmente, morreu e está livre. Penso mais detidamente na criança, de apenas 2 anos, que assistia à "tortura" sem reagir, talvez por já estar acostumada às cenas. Não reagia, mas as lembranças estão lá, nem que seja no inconsciente. Isso pode ter consequências.
Com a repercussão do caso esta semana, os advogados já estão funcionando. Meus colegas advogados, maravilhosos eles! A enfermeira agora mudou de casa, para ter um pouco de privacidade. Está deprimida e chora o tempo todo. Claro, uma tese de defesa precisa ser construída.
Vale lembrar que, se ela está deprimida, mesmo, ainda se pode perguntar se é por reconhecimento da culpa ou apenas porque se sente molestada pela execração pública. Afinal, tem gente que não admite seus erros. Só não quer ser censurada por eles. Qual é o caso da moça?
A propósito, sem cinismo algum, destaco que eu não gostaria de ser cuidado, num hospital, pela pessoa em apreço. Não seria legal se ela pensasse que eu dou muito trabalho.
8 comentários:
Tinha acabado de conversar sobre o assunto com meu marido quando acessei seu blog e me deparei com o seu artigo externando também a dificuldade em entender como as pessoas conseguem se horrorizar muito mais com a morte de um cachorro do que com a de um ser humano.Não vi reação semelhante por exemplo,com a chacina que vitimou recentemente seis jovens em Icoaraci.Aliás sobre este caso ouvi pessoas apoiarem a barbaridade sob o argumento de se tratarem de adolescentes infratores,informação até hoje não confirmada.Algo de muito grave está acontecendo com a sociedade e confesso que temo pelo futuro da humanidade.
Muito obrigada pela postagem! É bom ver racionalidade sobre o assunto! Tive vontade de dizer isso desde o primeiro momento, mas, os ânimos estavam TÃO acirrados que ATÉ EU tive medo (e um pouquinho de preguiça) de criar polêmica.
Nossa, foste preciso! Conseguiste sintetizar mais ou menos a reflexao que eu havia feito sobre o assunto.
ps: desculpa a falta de pontuacao, mas eu nao sei mexer nesses teclados daqui =)
Grande abraco!
Caro Professor,
Receio que o ocorrido se torne rotina.
Veja o caso da jovem que tentou terminar a faculdade de medicina pela UEPA via transferência.
A atitude de pedir o que já foi deferido anteriormente para outras pessoas - vide jurisprudência do TJ/PA -, deixou em completo estado de "trancada no quarto chorando" neste momento.
O que será da vida da jovem agora?
O que ela fez de errado?
Será que a vida pública de seus pais impediu que ela tivesse uma vida normal?
Será que a decisão, no mínimo questionável, do magistrado não foi o fato mais reprovável?
Temo que a utilização desenfreada e desordenada das "mídias sociais" tornem rotineiras essas execrações públicas.
Acho que o anônimo das 17:00 horas está equivocado.A decisão do magistrado contrariou toda a jurisprudência existente sobre o assunto.Existe inclusive decisão do Supremo Tribunal Federal que foi solenemente ignorada pelo juiz.Tanto é verdade que ele próprio voltou atrás e "reconsiderou" sua decisão revogando a liminar.A prevalescer tão absurda decisão grave precedente teria sido aberto para favorecer somente os que não têm competencia para ser aprovados no vestibular.
Isso fez-me lembrar daquela história, lá pelos anos 1990, quando uma criança, na escola de Base de Brasília, insinuou ter sido molestada pela direção e um professor (não me lembro bem) e quase toda a população - inclusive eu mesma - julgamos-os culpados e quando baixou a poeira da euforia da imprensa, descobriu-se que os "réus" eram inocentes, mas aí já era tarde, suas vidas estavam destruídas, a escola fechada e um casamento desfeito.
Sei que com a enfermeira "maluca" um vídeo prova tudo, mas acho que sua imagem tinha que ter sido preservada e ela julgada como merece. Pagar por seu crime, mas sem a necessidade da execração pública.
Acho, sim, monstruoso o que ela faz, mas os atos de violência oral contra ela também não me parecem sensatos...
Ao anônimo das 20:22:
O deferimento da liminar do juiz Castelo Branco foi ilegal mesmo, contrariou a jurisprudência das cortes superiores sobre o assunto, mas se você digitar "transferência" e "universidade" na consulta jurisprudencial do site do TJ/PA, verá casos idênticos do ora debatido deferidos.
Não se está defendendo a jovem ou a liminar deferida, agora reconsiderada, mas sim ha uma preocupação com a execração pública pelos surfistas de rede social.
Meus caros, agradeço o apoio. Procurei deixar claro que não minimizo essa brutalidade irracional, mas não posso deixar de ver a indiferença com que tanta gente sofrendo é tratada todos os dias. Isso não entra na minha cabeça.
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