Apostando alto no seu maior produto, a Rede Globo tenta recuperar a audiência perdida para a concorrência através das novelas e o faz por meio de duas estratégias. A primeira é a popularização dos temas (consequência do novo perfil socioeconômico do país, em que as classes menos abastadas agora têm mais acesso a bens de consumo e devem ser afagadas), o que explica protagonistas oriundos de um lixão em pleno horário nobre e o destaque dado às empregadas domésticas no horário da comédia. E o segundo é o retorno da novela das 11, que já fez sucesso em outras épocas.
No ano passado, a aposta foi com o remake de O astro e, agora, a mesma estratégia vem sendo empregada com estardalhaço em torno de Gabriela. Às 23 horas, livre de maiores amarras, a Globo pode apelar para temas mais incisivos e para uma linguagem mais explícita, o que em bom português significa mulher pelada e muita sacanagem. Sempre dá certo.
Em 1975, quando não se cogitava da licenciosidade generalizada de hoje, Gabriela mexeu com os nervos dos brasileiros, desafiando a censura burra e hipócrita do governo militar. Hoje, está livre para explorar os limites da ética midiática, do bom senso e do bom gosto. E escalou para fazê-lo uma atriz querida pelo público, apesar de limitada, e com fama de gostosona: Juliana Paes. Não foi uma unanimidade, mas considerando as finalidades a que se destina, está ótimo.
Exibida às 22 horas entre abril e outubro de 1975, a novela original foi escrita por Walter George Durst, com direção geral de Walter Avancini. O projeto atual é assinado por Walcyr Carrasco, conhecido por tramas um pouco mais leves, sob a direção de Mauro Mendonça Filho. Declaradamente, trata-se de uma nova versão, mais ligada ao romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, do que ao projeto antigo.
Duvido muito que alguém na Globo dê alguma importância à opinião deste telespectador, mas me incomoda essa limitação conceitual do brasileiro, que tem uma incompreensível necessidade de identificação com o passado. Veja: até a logomarca da novela é idêntica à de 37 anos atrás. O tema de abertura? "Modinha para Gabriela", na mesma voz esganiçada de Gal Costa; a mesmíssima gravação. Se alguma mudança fosse intentada, o público protestaria, simplesmente por estar diferente. E isso poderia comprometer a audiência, que nesse meio implica em lucros.
Honestamente, fosse um projeto meu, tudo seria diferente: logomarca, tema de abertura, intérprete da canção e tudo mais. Poderia até recorrer aos indefectíveis compositores baianos para fazer o novo tema, mas ele seria inédito. Estaria claro para todos que se trata de uma iniciativa totalmente nova. Que mal há nisso?
Para fins de comparação, em 2005 escutei muitas críticas a Tim Burton por seu A fantástica fábrica de chocolate (Charlie and the chocolate factory, EUA), que era totalmente diferente da clássica versão de 1971 (Willy Wonka and the chocolate factory, dir. Mel Stuart, EUA). E qual o problema de ser diferente? Burton, por sinal, antes mesmo do lançamento de sua obra, deu declarações dizendo que odiava o filme de 1971 e queria fazer a sua própria leitura do livro de Roald Dahl. Aliás, segundo a Wikipedia, devido ao fracasso de bilheteria, o próprio Dahl odiou o filme e proibiu que fizessem filmes a partir de qualquer obra sua.
Qual dos dois filmes é melhor? Bobagem. Isso é uma questão de gosto. Cada um tem os seus méritos e compartilham apenas a mesma origem. Do mesmo modo, poderíamos ter uma Gabriela completamente diferente de tudo que já se pensou a respeito, mas a TV brasileira não tem a mesma coragem da indústria cinematográfica.
Vejamos qual será o resultado. De minha parte, não estou curioso. Não tenho paciência para o universo de Jorge Amado. E nem adianta me odiar por isso. Não gosto mesmo.
8 comentários:
Mas até que o papel coube certinho na Juliana Paes, ela já tem um olhar de inanição.
Gosto não se discute. Sonia Braga era o bicho; e se alimentava de vez em quando.
Fred
Eu gosto de duas coisas que você não gosta, Yúdice: Jorge Amado e Gal Costa. Acho a voz da Gal (que você acha esganiçada) afinadíssima. Eh...eh...eh...
O que eu não gosto, absolutamente nada mesmo, é de novelas.
Mas concordo contigo, para fazer tudo "exatamente igual", reprisasse a original, uai.
Sempre malvado, Fred. Mas uma malvadeza que normalmente acerta bem no alvo.
Ana, eu até gosto da Gal Costa. Quero dizer, como cantora. Sou fascinado pela interpretação dela em "Nada mais". Mas sobre ela ser esganiçada (e desafinada), isso quem diz são os meus amigos músicos. Acreditei neles. Mas aprecio o trabalho dela; só não o temperamento.
Já Jorge Amado não tem jeito, mesmo. Abraços.
Só a título de curiosidade, que livros do Jorge amado tu lestes?
Para saciar sua curiosidade maldosa, das 0h45, li, na íntegra, "Tereza Batista cansada de guerra". Encheu o meu saco. Dois outros títulos eu comecei, mas não tive paciência de prosseguir. Curiosamente, não me recordo nem quais foram, mas sei que não foi "Capitães de areia". Este, particularmente, ainda pretendo ler.
Recomendo, todavia, "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: uma história de amor". É uma graça de livro, que pretendo comprar e ler para minha filha, um dia. Mas isso porque este livro infantil, felizmente, não fala sobre a tal "Bahia de todos os santos, todos os credos e todas as cores".
Não gosto de regionalismo. Esta é uma das razões para não ter paciência para Amado.
Não era uma curiosidade maldosa, era por achar estranho alguém ter aversão grande ao Jorge Amado.
De fato a parte do regionalismo é deveras chata, beira o insuportável, e ainda são livros relativamente extensos, o que acaba entediando o leitor. Nessa categoria há "Gabriela...", "Tieta", "Tereza Batista" "d. Flor", "mar morto" e por aí vai. Entretanto, há outros livros que passam longe dessa temática regionalista chata, como o próprio "capitães de areia" (que, particularmente acho que nem de muito longe pode ser considerado o melhor livro do Jorge Amado, embora seja, aparentemente, o mais lido), "farda, fardão, camisola de dormir" e uma trilogia interessante que se passa no Estado novo, "subterrâneos da liberdade", e mesmo "navegação de cabotagem", as memórias dele.
Tivestes o pior começo possível em se tratando de Jorge Amado, livros chatos, que, aparentemente, só a Globo gosta de exaltar, mas se leres qualquer um dos que citei, acho que não se decepcionarias.
De Elis Regina:
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais...
E ainda tem gente assistindo "Malhação"...
Das 23h46, agradeço as ponderações e, graças a elas, reforço meu propósito de me aventurar pelo mundo de Jorge Amado. Lerei o que você me recomendou. As obras de sacanagem e baianidades permanecerão excluídas.
Leonardo, "Malhação" não acaba nunca. E depois que transformaram em clichê esse papo de celeiro onde se geram os novos grandes atores, fica difícil a emissora renunciar ao produto. Nem a queda na audiência nos livrou desse troço.
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