sexta-feira, 18 de abril de 2008

Esquartejador

Conduta ilibada, profissional bem sucedido, um homem de bem. Os clichês de sempre. Mas foi um homem assim que assassinou a amante após sedá-la e, para ocultar o seu delito, valeu-se de sua condição de cirurgião para cortar o corpo em pedaços, para mais facilmente se desfazer dele.
Assim pode ser resumida a história do ex-cirurgião plástico Farah Jorge Farah, que ontem foi condenado a 13 anos de prisão e multa pelos dois crimes, após cinco anos (o crime ocorreu em 24.1.2003). Posso contar a história assim porque esse foi o entendimento do tribunal do júri.
Lembro-me de ter recebido um e-mail, há muito tempo, com supostas fotografias do cadáver de Maria do Carmo Alves, a vítima, morta aos 46 anos. Difícil saber se eram autênticas, mas quem se dispuser a tanto pode vê-las clicando aqui (olhe por sua conta e risco; não me acuse depois). Para chegar ao ponto de danificar um corpo daquele jeito, é preciso ter muita motivação, para dizer o mínimo.
O caso de Farah também serve para as minhas análises criminológicas, por meio das quais reajo ao maniqueísmo e aos absurdos sensos comuns com que o povo em geral costuma tratar as questões criminais. Vamos a elas:

1. Quem é o tão decantado homem de bem, idealizado pelos maniqueístas, que dividem a sociedade entre esses e os bandidos, os primeiros merecendo toda a proteção do Estado e os demais, os quais não merecem nada além de castigos medievais e morte? Até cinco anos atrás, Farah era um desses impolutos brasileiros, pagadores de impostos, dono de status social que lhe conferia uma automática respeitabilidade. Merece tratamento diferente dos arrastadores de crianças? Se merece ou não, ele o teve. Prova o que repetimos à exaustão: direito é para os endinheirados; pobre ganha é o Direito Penal.

2. Em sua trajetória como acusado, não foi espancado pela polícia e aposto que o delegado o tratou com bastante consideração. Logo, respeito à integridade física do preso nada tem a ver com a natureza e gravidade do delito perpetrado.

3. Para ele, funciona a regra da excepcionalidade da prisão, assegurada para todos pela Constituição de 1988, mas para ele chancelada pelo Supremo Tribunal Federal. Cadeia, só depois de transitar em julgado a sentença condenatória, para o que não se pode estipular nenhum prazo. Isso mostra que Constituição é coisa que funciona apenas quando possível.

4. Como quase sempre ocorre quando um bem aquinhoado cai nas garras do Direito Penal (e sempre, em se tratando de delitos aberrantes), se praticou o fato, foi porque não estava no seu juízo perfeito. Depressão, transtorno bipolar, surto psicótico, intoxicação por medicamentos tomados de boa fé, etc. Para esse tipo de público, tais teses sempre parecem plausíveis. Mesmo que não emplaquem, sempre são defendidas com elegância e razoabilidade.

5. Respondendo ao processo em liberdade, pode até prestar vestibular novamente. Desde agosto de 2007 é acadêmico de — adivinhe? — Direito. Não direi o nome da faculdade.

6. Condenado à unanimidade por um tribunal composto por leigos, a pena imposta foi a mínima para cada crime. Fosse ele mais escurinho, mais analfabeto, mais desdentado, estou certo de que o juiz encontraria algum artifício para impor sanção mais pesada. Posso até dizer qual: uma tal de "conduta social desfavorável" ou de "personalidade voltada para o crime", coisa sempre lembrada nas sentenças que condenam a clientela habitual do sistema penal. Mas um homem desses não pode ser considerado especialmente perigoso. Ele apenas usou seu material de trabalho para dopar uma mulher indefesa, matou-a, passou uma noite cortando-a em pedaços e levou-os para o porta-malas do seu carro. Deu-se ao trabalho de cortar as pontas de todos os dedos das mãos e dos pés, além de pele do rosto, para restringir a possibilidade de identificação. Não é um sujeito que faria isso com outras pessoas. Nesse caso, vigora uma certa presunção de inocência, mesmo com diversas acusações de abuso sexual, que pacientes alardearam após o homicídio.

7. Proferida a sentença, o juiz fez questão de afirmar que proferiu a sentença "sem se deixar levar pela comoção social". Engraçado como às vezes, apenas às vezes, os juízes precisam justificar as suas decisões. Em geral, repetem aquela frase que lhes provoca orgasmos: decisão judicial não se questiona; se cumpre ou se recorre!!!!!! O clichezão da otoridade. Mas às vezes, surpreendentemente, eles sentem necessidade de dizer publicamente que decidiram "de acordo com a consciência". Então tá. Mas nos processinhos do dia a dia, adoram decretar uma prisão preventiva com base na gravidade do crime, na sua repercussão, num tal de clamor social, na periculosidade (presumida) do agente e até, suprema ironia, na necessidade de proteger a integridade física do acusado!

É fundamental, para qualquer discussão séria sobre o Direito Penal, o processo penal, a execução penal e todos os seus penduricalhos, que as diferenças reais no trato dos cidadãos, dos menos cidadãos e dos não-cidadãos sejam escancaradas e discutidas como fatos. Não se trata de teoria nem filosofismo. É fato. Negar isso é insanidade, burrice ou má fé.
Então tratemos a questão com os pés no chão. Somente aí poderemos tirar conclusões realistas, por mais duras que sejam.

7 comentários:

Anônimo disse...

Vejo nesse comentário apenas o seguinte: alguém que cospe no prato onde come.

Yúdice Andrade disse...

De uns tempos para cá, tenho recebido muitos comentários irrefletidos ou débeis, mesmo. Em geral, ignoro-os, porque é o que merecem.
Para este seu, que ainda não sei em qual das duas categorias se inclui, abri uma exceção. Se eu puder saber em que medida estou cuspindo no prato em que como, talvez possa pensar em algo para lhe dizer, se valer a pena.
Se tem a ver com o fato de eu trabalhar com o Direito Penal, você está completamente enganado, porque me considero refletindo sobre o Direito Penal e, assim, tentando ajudar as pessoas a compreendê-lo, especialmente meus alunos.
Se tem a ver com o fato de eu trabalhar no Judiciário e ter feito(mais) uma crítica à praxe judicial, você está enganado, também. Afinal, não vendi minha liberdade a nenhum demônio e nunca deixarei de apontar as mazelas que consigo enxergar em nosso mundo. E acho patético o pavor que as pessoas, de um modo geral, até hoje sentem de falar do Judiciário. É impressionante essa reação como se juízes não fossem o que de fato são: nada além de seres humanos, imperfeitos e mortais.
Qualquer uma dessas hipóteses me parece assustadora. A primeira recomenda a pobreza intelectual. A segunda sugere covardia e falta de senso de cidadania. Não pretendo abrir mão de nada disso.
Se seu comentário foi irrefletido, com um pouco de luzes sobre ele quem sabe possamos chegar a algum lugar. Se foi débil, nem se dê ao trabalho. Até para perguntar algo é preciso ter alguma idéia sobre o objeto da pergunta. E você não sabe do que está falando.
Aliás, na condição de anônimo, você se dá poucos direitos. De saída, o de me criticar.
Cresça.

Anônimo disse...

Yúdice, sua resposta é outra aula.
Por isso estou sempre por aqui.
Parabéns pelo blog, mais uma vez.
Abs!
Lu.

Anônimo disse...

Meu estimado Primo

Há tempos que não visitava seu Blog e cada vez mais percebo que perdi oportunidades de ler comentários que alimentam os meus conhecimento.

Mais uma vez comentário brilhante e com argumentos bem fundados, o que é raríssimo nas críticas que leio comumente.

Grande Abraço Primo

Yúdice Andrade disse...

Obrigado, Lu. Infelizmente, bom senso e educação são mercadorias em extinção.

Caríssimo Jean, que alegria te receber de volta. Sentia falta de tuas manifestações. Espero que elas voltem ao antigo ritmo. Abraços.

Carlos Barretto  disse...

Excelente texto! Como sempre, racional e com boa gama de argumentos.
Abs

Yúdice Andrade disse...

Tu também és um humanista, Barretto. Daí tua gentil avaliação do meu texto. Abraços.