quarta-feira, 9 de abril de 2008

Os labirintos do estupro

Uma hora conversando com uma psicóloga, de larga experiência. Não falamos absolutamente nada sobre mim e, mesmo assim, poucas vezes fiquei tão impressionado com nossos diálogos. O assunto, melindroso e desgastante: estupro. Começou com uma simples pergunta: qual o perfil dos seus pacientes? Na resposta, uma alusão a mulheres estupradas.
Os profundos efeitos que a hora seguinte provocou sobre mim não tiveram nada a ver com detalhes escabrosos sobre a agressão propriamente dita — justamente o aspecto que seria explorado pela mídia —, apesar de um caso me ter sido relatado (estritamente os fatos, claro). Eles vieram da reflexão sobre como se sente a vítima. E de um estranho e angustiante exercício: o de tentar se colocar no lugar do outro.
Despertencimento. Se é que existia tal palavra antes de agora, essa é uma expressão recorrente nos depoimentos de mulheres estupradas. Elas sofrem por sentirem que perderam os direitos ou o poder sobre o próprio corpo. Ficaram desprovidas de vontade. São anuladas, como mulheres, como seres humanos. Não são cidadãs, filhas, irmãs ou mães. Num depoimento real, uma delas disse que se sentia “no vácuo”. É como se não houvesse mais nenhum lugar onde coubessem, daí a leitura da psicóloga: foi-lhes roubada uma parte da própria alma.
Passada essa hora, senti que aprendi muito. Como se estivesse mais apto para compreender esse fato horrível ou, talvez, lidar com ele, de algum modo.
Dentre as coisas que aprendi, está que o prazer sexual é o que menos conta no estupro. Ao contrário do que se pensa, a priori, o estuprador não age movido pela busca do gozo. Essa pode ser a causa pretexto ou o estopim, mas o estuprador é essencialmente alguém que persegue a sensação de ter poder sobre outrem. Não um poder qualquer, mas uma versão totalizante e incontrolável. Por isso, raramente o estuprador se limita a praticar sexo com a vítima. Na esmagadora maioria dos casos, ele humilha, ameaça, cria cenários mentais grotescos, os quais tempera com atos sexuais os mais nefandos. Quer ver a vítima reduzida a sua mínima expressão. Quer ter a certeza de que ela depende de sua vontade para tudo, inclusive para o mais elementar dos direitos: o de continuar a existir e a ser. Na maioria dos casos, o estuprador é também deficiente quanto à higiene pessoal, com o que potencializa o asco que a agressão já proporciona.
O estuprador geralmente é alguém que soma, aos transtornos de conduta, um elemento genético que o impele à violência. Tem a matriz dos psicopatas e, por isso, tende a ser um criminoso incorrigível. Para certos tipos de delinqüência, a violência sexual inclusa, os referenciais modernos sobre as finalidades da pena criminal são inconciliáveis. Para muitos estudiosos, são irrecuperáveis.
A conversa também me ensinou sobre a situação da mulher após o estupro. E, pela primeira vez, entendi porque a maioria das vítimas não procura as autoridades para mover os procedimentos persecutórios criminais. Até aqui, pensava que tinha a ver com o descrédito de nossas instituições; com a inoperância da polícia, do Ministério Público e do Judiciário; com a horrenda incapacidade dessas autoridades de lidar com uma pessoa emocionalmente devastada; com a vitimização secundária; com a sensação de exposição pública; com o medo de represálias. Tantas vezes escutei que as mulheres tinham uma espécie de obrigação moral de perseguir criminalmente o agressor. Em sala de aula, já propuseram criar mecanismos legais que forçassem a investigação, mesmo diante da indecisão da vítima.
Todos os fatores acima contam, evidentemente, mas o motivo maior transcende: a convicção de que nada, absolutamente nada do que aconteça servirá para trazer algum alento à alma ofendida. O estupro produz marcas indeléveis, que conduzem a uma lassidão espiritual (talvez seja esse o termo). Por isso mesmo, avulta o mérito da mulher que aceita enfrentar seus terrores para ir a uma delegacia, ou à presença de um juiz para viabilizar procedimentos criminais. Quando o fazem, normalmente se justificam manifestando o desejo de evitar que o mesmo mal suceda a outras mulheres. É um esforço grandioso de solidariedade, porque para elas mesmas nada pode ser mudado.
Muito mais foi dito. Inclusive que os casos de violência sexual continuam aumentando, em número, o que decerto é motivo de enorme preocupação para todos nós. Urge que sejamos capazes de nos proteger e proteger as mulheres de nossas vidas, evitando ao máximo exposições desnecessárias e procurando seguir as recomendações dos especialistas sobre métodos de prevenção.
Mas há, sobretudo, que se crescer em matéria de humanidade. Neste quesito, ainda estamos na primeira infância.

6 comentários:

Anônimo disse...

"O estuprador geralmente é alguém que soma, aos transtornos de conduta, um elemento genético que o impele à violência. Tem a matriz dos psicopatas e, por isso, tende a ser um criminoso incorrigível."

INCORRIGÍVEL.

Caro amigo Yúdice, você disse tudo. Psicopatas são seres incorrigíveis e, por isso mesmo, a aplicação da pena de morte é plenamente justificada em casos assim. Comprovada a psicopatia, o mal deve ser cortado pela raiz imediatamente. É absurdo o Estado sustentar até o fim da vida uma pessoa sem as mínimas condições de se reintegrar à sociedade.

É apenas meu ponto de vista.

Um abraço,

Adelino Neto

Yúdice Andrade disse...

Coerente com tua manifestação em anterior postagem, Adelino. Não precisas justificar-te por defenderes a pena de morte. É teu direito. Assim como é o meu continuar a repudiá-la e usar o blog também com essa perspectiva. Meus motivos não são apenas humanitários, mas também ligados à eficiência, já que está histórica e estaísticamente provado que a pena de morte não reduz os índices de criminalidade. Os Estados Unidos aí estão para provar. O Texas é o Estado que mais executa criminosos e a criminalidade, lá, é maior do que em outras regiões.
Um abraço e volta sempre.

Anônimo disse...

Yúdice, estou de volta.

Acabei de ler uma notícia totalmente revoltante no Portal ORM, que reproduzo aqui. Leia-a até o final e me responda, sinceramente: o que você faria com um desgraçado nojento como esse? Eu sei o que faria.

Um abraço,

Adelino Neto

Plantão
Jovem é esfaqueada após sofrer tentativa de estupro

Uma jovem sofreu uma tentativa de estupro e foi esfaqueada ao resistir, na manhã desta quinta-feira (10), no bairro da Cabanagem.

De acordo com o Ciop (Centro Integrado de Operações), a vítima saía de casa com seus dois filhos, quando um homem conhecido apenas como 'Sabá' tentou estuprá-la, na área conhecida como 'invasão do Sabão'. Com a reação da vítima, o suspeito desferiu um golpe de faca no pescoço da jovem.

Duas viatura da Polícia Civil fazem buscas pelo acusado na área. A jovem foi levada para o PSM (Pronto Socorro Municipal) do Umarizal.

Redação Online

Yúdice Andrade disse...

Eu faria aquilo que sustento: entregá-lo às autoridades para aplicação das leis vigentes no país. Más leis (se for o caso) podem e devem ser mudadas. Maior perigo, todavia, é abdicar delas, para recorrer a mecanismos primitivos de enfrentamentos de crises. Aí acaba o Direito. E o conflito na ausência do Direito chama-se guerra. Deus me livre.

Anônimo disse...

Amigo, com a minha sinceridade, se isso acontecesse com alguem da minha familia, eu matava o infeliz aos poucos, eu cortava cada membro do corpo dele devagarzinho.

Yúdice Andrade disse...

Anônimo, não te critico, podes ter certeza. Ao ser vítima de um assalto, com direito a tiroteio, baleamento de um inocente e seqüestro de uma jovem, fiquei transtornado. A cólera que toma conta de nós numa hora dessas é impressionante. E digo isso consciente de que nem eu nem as pessoas que estavam comigo (minha esposa, meu irmão e um amigo muito próximo) sofreram maiores danos. Imagine num crime com esta gravidade e irreparabilidade.
Só penso que, talvez, na hora H, não tivesses o mesmo sangue frio que mencionas agora, falando de modo abstrato. E seja como for, não creio que isso resolvesse o problema, principalmente da vítima.
Contudo, o mais importante de tudo é que um infortúnio desses jamais nos aconteça, certo? Deus nos proteja.