sábado, 7 de janeiro de 2012

Valor mínimo

Muita gente se impressiona ao saber que existe um valor abaixo do qual o poder público não cobra dívidas e que esse valor está longe de ser irrisório. Para a União, os custos e esforços não justificam que se inicie uma ação judicial (p. ex. uma execução fiscal) para cobrar menos do que 10 mil reais. Sim, você entendeu direito. Se você deve menos do que 10 mil reais para a União, não será cobrado.

Isso tem implicações gravíssimas, inclusive em âmbito penal. Se alguém comete um crime tributário, p. ex., provocando um prejuízo inferior ao limite pré-estabelecido em lei, não será alvo de ação criminal, sob o fundamento de que se o titular do crédito não pretende cobrá-lo, por considerá-lo de valor irrisório, então não se justifica a imposição de pena criminal. Eis aí o Supremo Tribunal Federal que não me deixa mentir:

"Habeas corpus. Penal. Crime de descaminho. Princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. Ordem concedida. 1. Nos termos da jurisprudência consolidada nesta Suprema Corte, o princípio da insignificância deve ser aplicado no delito de descaminho quando o valor sonegado for inferior ao montante mínimo de R$ 10.000,00 (dez mil reais) legalmente previsto no art. 20 da Lei n° 10.522/02, com a redação dada pela Lei nº 11.033/04. 2. Ordem concedida." (STF, 1ª Turma — HC 102935/RS — rel. Min. DIAS TOFFOLI — j. 28/9/2010 — DJe-223 DIVULG 19-11-2010 PUBLIC 22-11-2010 EMENT VOL-02435-01 PP-00181)

Esta regra produz uma distorção que é uma das maiores provas de que o Direito Penal é instrumento de controle dos segmentos sociais menos favorecidos. Sempre procuro destacar isso para os meus alunos. Veja só: se uma pessoa se aproveita do descuido de alguém e subtrai uma bolsa contendo 100 reais, incorre no crime de furto e pode ser condenada a uma pena de 1 a 4 anos de reclusão, além de multa. Detalhe: falei em furto, para destacar a ausência de violência de qualquer tipo. Como já mencionei antes, aqui no blog, o Judiciário brasileiro ainda é muito refratária à aplicação do princípio da insignificância. Mas se você sonega um valor quase 100 vezes superior ao do ladrão de galinha acima, pode simplesmente ficar impune.

Agora pense: quem pode sonegar imposto de renda? Quem tem renda, ora pois! Quem pode sonegar imposto de importação, de propriedade sobre veículos automotores, etc.? Quem tem patrimônio ou condições para adquiri-lo. Depois, quando defendo o princípio da insignificância, ainda me aparecem aqueles malas moralistas me sugerindo trazer vagabundo para morar na minha casa. O nível do debate quase nunca sobe!

Mas, enfim, tudo o que escrevi acima era apenas para você poder entender o objetivo da postagem: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — IPEA divulgou esta semana um estudo afirmando que as execuções fiscais somente são viáveis quando cobram, no mínimo, R$ 21.731,45. Acredito que todos concordarão que se trata de uma quantia expressiva. Para fins de comparação, o carro mais barato vendido no Brasil, aquela coisa medonha que atende pelo nome de Chery QQ, custa R$ 22.900,00.

Valores, meu amigo. Valores de cunho ético, eu quis dizer.

PS — Não se anime: a maior fonte de extorsão sobre o assalariado do país, que atende pelo nome de Receita Federal, possui uma regra segundo a qual dívidas inferiores a 10 mil reais não são executadas, porém não se dá baixa nelas. Isso significa que a dívida continua existindo e sendo atualizada (pela taxa SELIC, vale lembrar). Assim, quando o valor atinge o teto, a execução pode ser iniciada. Tudo pelo governo, meu amigo.

2 comentários:

Daniel G. disse...

Muito bom o texto. É exatamente o que dizia Carnelutti, num livrinho muito bom que todos acadêmicos de direito deveriam ler - Misérias do Processo Penal:

" [...] Considerar a questão de direito como um teorema a ser demonstrado por meio de fórmulas abstratas, em que os homens são representados por letras e os interesses por cifras, é coisa que o jurista pode fazer num tratado ou numa lição; mas o advogado prático deve ver, por trás das fórmulas, os homens vivos. Deixemos os professores ensinarem na escola que a lei é igual para todos; caberá depois ao advogado explicar aos clientes que o dirieto civil é feito sobretudo para os bens situados, havendo para os demais o direito penal."

Abraço!

Yúdice Andrade disse...

Grato pelo reforço, Daniel. Estou fazendo as minhas resenhas de leituras, a teu pedido.