sábado, 3 de novembro de 2012

Feminicídio: uma proposta (parte 2)

Como eu dizia, o André se posicionou nestes termos:


A meu ver, são três questões diferentes: (1) A questão de se as leis penais devem destacar crimes cometidos contra a mulher e dar a eles tratamento especial; (2) caso a resposta da primeira questão seja que sim, a questão seguinte de se o feminicídio e a respectiva pena sugerida na proposta acima ilustram bem a forma como crimes contra a mulher deveriam destacados e tratados diferentemente; e (3) a questão de se este tipo de iniciativa gera algum avanço no combate aos problemas que visa solucionar. Quero começar pela questão (3).

Uma norma que criminaliza uma conduta específica pode ter efetividade em diversos sentidos. Um deles seria a punição (com graus variáveis de eficácia) dos que cometem aquela conduta e uma prevenção (com graus variáveis de amplitude) dos que incorrem na conduta em questão. Foi para este aspecto que o Yúdice Andrade chamou atenção e em relação ao qual defendeu a tese mais ou menos cética de novas leis não resolvem o problema. Mesmo em relação a esta dimensão da efetividade de uma norma, minha objeção ao argumento do Yúdice é que, para mostrar que uma norma teve efetividade preventiva, não é preciso mostrar que nenhum caso da conduta por ela proibida ocorreu desde a sua promulgação ou que houve uma diminuição sensível da quantidade geral de casos do mesmo tipo. Basta mostrar que o número de casos punidos ou prevenidos com a norma em vigor foi maior do que a projeção de número de casos que teriam sido punidos ou prevenidos sem ela. E aí os exemplos que o Yúdice mesmo usou talvez contem contra o argumento dele: será que, por exemplo, o número de casos de abuso contra o consumidor desde 90 até agora não teria sido consideravelmente maior sem a ameaça das punições e sem a consciência social que o CDC produziu? Se a resposta for que provavelmente sim, então, já deixa de ser verdade que a lei em questão não produziu nenhum avanço no combate à conduta contra a qual ela se dirige.

Mas esta dimensão da efetividade é apenas a primeira e mais empírica delas. Existem outras. Uma norma pode contribuir para o combate da conduta que ela proíbe de outras maneiras. Ela pode, por exemplo, fornecer instrumentos de classificação da conduta que antes não estavam disponíveis, promovendo, assim, um avanço na tipificação (como as leis contra crimes na internet). Ela pode, por exemplo, fornecer novos instrumentos de investigação daquela conduta e de processamento dos seus perpetradores (e acredito que este foi o caso da lei contra os crimes hediondos e da lei contra a tortura), promovendo, assim, avanços investigativos e processuais. E ela pode, por fim, ter um tipo ainda mais sutil de efetividade: Ela pode chamar a atenção da sociedade e promover o debate público sobre o problema. Neste caso, ela promove um tipo de avanço simbólico e democrático no combate ao problema em questão. Chamar a atenção para o fato de que desrespeitos ao consumidor não são reveses normais do dia-a-dia, mas são abusos que devem ser coibidos e punidos; chamar a atenção para o fato de que há certos crimes que não entram na mesma lógica dos crimes comuns, porque se qualificam como hediondos e merecem outro tipo de tratamento; chamar a atenção para o fato de que existe tortura, de que ela é frequente e sistematicamente praticada por um contingente policial despreparado e hiper-violento etc. Todos esses são casos em que a norma promove algum tipo de avanço simbólico, porque é inegável que um cenário social democrático em que tais problemas são conhecidos e debatidos é melhor que um cenário em que não o são. Sendo assim, o argumento que as leis que criminalizaram certas condutas não foram efetivas porque tais condutas, ao fim de certo tempo, continuam ocorrendo não é um argumento realmente tão decisivo quanto parece à primeira vista.

Agora, as outras duas questões: Quanto a (1), creio que a resposta é que sim. Embora no Direito sejamos formados para pensar que a igualdade de direitos entre os seres humanos deve ter como consequência que as políticas e normas dirigidas a eles os tratem a partir da estratégia abstrata e universalizante, o fato é que muitas vezes esta estratégia acaba se incorporando ao problema em si, porque não torna especialmente mais protegido quem é especialmente mais vulnerável. Toda vez que se adota uma estratégia de proteção igual para todos a ser aplicada em situações em que, de fato, alguns estão bem mais vulneráveis que outros, o resultado será que, em nome da isonomia, se dará ao grupo mais vulnerável apenas tanta proteção quanto se dá ao grupo menos vulnerável. E isso é um uso perverso do universalismo não para promover igualdade, e sim para perpetuar a desigualdade entre os referidos grupos. Então, embora o objeto da proteção das leis penais seja, primariamente, o ser humano em geral, sem qualquer diferenciação, a percepção de que, na prática, alguns grupos estão mais vulneráveis que outros à conduta criminosa deveria levar à conclusão de que tais grupos precisam de um estatuto especial de proteção, o que pode repercutir tanto no modo como os juízes aplicam a mesma lei para os diferentes casos como também, por que não?, na introdução de mudanças legislativas em favor destes grupos. Não vejo problema quanto a isto.

Quanto à questão (2), acho que não. Acho que, como formulada e como defendida, a proposta não é o melhor exemplo de como podemos promover avanços concretos na proteção das mulheres como grupo de fato mais vulnerável a certas modalidades de violência. Não sou contra a ideia do feminicídio de modo geral. Acho a ideia até razoável e aceitável a depender de como for proposta. Talvez o melhor mesmo fosse uma rediscussão nacional a respeito da situação de vulnerabilidade física das mulheres e um estatuto penal especial para proteção delas em relação a todas as formas de agressão em que se constate que elas são vítimas majoritárias.

(Pode-se perguntar, com razão, por que, então, eu fiz toda esta exposição de motivos se, no fim das contas, eu concordava com o Yúdice em rejeitar a proposta acima. Minha resposta, nesta, como em várias outras questões, é a mesma: Coisa de filósofo. Para mim, as razões por trás de uma resposta são mais importantes que a resposta em si mesma e acho que, neste caso, embora a minha resposta seja semelhante à do Yúdice, as razões definitivamente não são as mesmas, e eu preferia deixar isso bem claro, já que fui nominalmente convidado para enriquecer o debate nesta postagem.)


Debate bom é assim. Já tenho algumas considerações a fazer, que eu não chamaria de tréplica, porque reconheço o acerto das ponderações do André. Seriam outros aspectos a considerar, mantendo a minha objeção absoluta à proposta. Mas não tenho condições de redigi-las agora, então quem se interessar, por favor, aguarde a parte 3.

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