O planeta dos macacos é um clássico do cinema. Inspirado no (até onde sei) desconhecido romance homônimo de Pierre Boulle, ganhou as telas em 1968, sob a direção de Franklin J. Schaffner, com o renomado Charlton Heston o papel principal (humano, pelo menos). O filme, de ficção científica, teve as suas polêmicas, porque seu mote permite isso. Mas houve também a questão de o público não digerir bem uma tensão sexual entre seres de espécies distintas, ainda mais quando uma delas é considerada real e inferior, um animal em nosso mundo.
A obra teve seus desdobramentos, no cinema e na TV, que não vêm ao caso mencionar, ganhando notoriedade novamente em 2001, por ocasião do controverso remake conduzido por Tim Burton (cujos filmes, normalmente, são controversos, chegando ao ame ou odeie). A despeito de não haver nenhuma unanimidade, houve interesse comercial em produzir uma continuação, na verdade uma obra totalmente independente.
Em 2011, veio a lume Planeta dos macacos: a origem (Rise of the planet of the apes, dir. Rupert Wyatt, EUA), um grande sucesso de bilheteria, a comparar os seus custos (93 milhões de dólares) com a arrecadação (quase 482 milhões de dólares).
Desde a fase de produção, a obra já vinha sendo muito comentada, pela opção do diretor em não utilizar a técnica do CGI, pura e simplesmente, preferindo a coqueluche daquele momento: a captura de movimentos. Para tanto, a produção contratou Andy Serkis, um ator cuja cara provavelmente ninguém conhece, mas que nos últimos anos tem emprestado o seu enorme talento a dar vida a criaturas digitais, começando pelo Gollum da trilogia O senhor dos aneis (por sinal, a WETA Digital, empresa de Peter Jackson, estava envolvida no projeto).
Como o título sugere, o objetivo aqui é explicar como o mundo se transformou naquele contexto assustador já conhecido do público. A explicação encontrada foi bastante razoável e permite uma série de polêmicas.
No nosso mundinho conhecido, em algum ano que não é esclarecido, mas que se pode supor seja contemporâneo ao real, um cientista vivido por James Franco (de 127 horas) luta por encontrar uma cura para o mal de Alzheimer, pressionado pela doença do próprio pai (velho clichê do cinema). Ele trabalha numa empresa que utiliza primatas como cobaias (polêmica n. 1), decidindo inclusive por sacrificá-los como meros insumos, e não criaturas vivas, se algo dá errado. As pesquisas levam ao desenvolvimento de uma droga (ALZ-112), que daria ao cérebro a capacidade de se autorregenerar numa velocidade impressionante. Um acidente de percurso faz o protagonista adotar o filhote de chimpanzé batizado de César, o verdadeiro protagonista da trama. Afetado pela droga durante a gestação da mãe, ele desenvolve super-habilidades cognitivas e, com elas, uma inclinação à humanidade própria de quem começa a manifestar consciência.
Os anos se passam e o cientista chega ao ponto de testar a droga no próprio pai (polêmica n. 2). Aí vemos defeitos de roteiro: no mundo real, ninguém conduziria pesquisas, e muito menos gastaria milhões de dólares, a partir de casos isolados. Tudo no filme parece ser decidido com base em um único espécime que deu certo.
O fato é que a droga não apenas induz a regeneração do cérebro. Num órgão sadio, que nada tem a recuperar, ela induz habilidades além do normal, por isso César consegue realizar proezas superiores a uma criança humana de sua idade.
O desenrolar da trama é muito competente e mostra como César vai, pouco a pouco, ganhando humanidade. A cena em que ele, por ver um cachorro preso, entende o que é a coleira que lhe botam no pescoço e, como reação imediata, se recusa a entrar no portamalas do veículo, preferindo o assento traseiro, é bastante significativa.
A partir daqui, há spoilers. Se não viu o filme, não leia. Se ler, não reclame.
Mas o salto evolutivo, se é que podemos chamar assim, advém de uma tragédia: por atacar um humano, ainda que em legítima defesa de seu "avô", acaba recolhido a um centro de tratamento de animais. E aqui chegamos à terceira e maior polêmica para mim, a que me inspirou esta postagem. César era um membro da família, criado num lar repleto de amor, adaptado a suas necessidades, nitidamente assentado sobre os alicerces de uma família. De repente, ele se torna prisioneiro num lugar infecto, onde os seus semelhantes são tratados como... bichos!
A consciência que dele se apossa a partir de então o leva ao rancor e ao desejo de vingança, além do rompimento com o seu "pai". O negócio passa a ser montar a própria gangue, fugir da prisão e assumir as rédeas da própria vida, à margem do mundo que os oprimiu. A metáfora não poderia ser mais clara. A cena dos primatas dominando a sede da indústria farmacêutica é perceptivelmente inspirada em uma rebelião em presídio (terceira foto).
Este filme, portanto, passa a ser mais uma representação cinematográfica do modo como, no mundo real, tratamos aqueles que consideramos inferiores, como os marginalizamos e os empurramos para a brutalidade, o crime e o acerto de contas. O mote do indivíduo que não é perverso, mas se vê menosprezado e repudiado, tornando-se um monstro, tem sido amplamente explorado pela literatura e pelo cinema. Personagens clássicos, como Frankenstein e Eric, o Fantasma da Ópera, são exemplos disso. Teríamos muitos outros exemplos a citar.
É fascinante acompanhar a evolução de César. Executando um plano meticuloso, ele primeiro se impõe perante a própria espécie usando mecanismos de um lado animais (como o gesto com a mão, que expressa um pedido de autorização) e de outro, algo humanos (como usar o gorila para ameaçar implicitamente o então líder do grupo). É como arranjar um jagunço para demonstrar poder e tomar a boca do rival, na frente de todos os seus comandados. Quando já está no comando interno, e sob novas pressões e humilhações, o passo seguinte é usar a droga nos parceiros, para dotá-los das novas habilidades. E aí a rebelião começa. Ao matar pela primeira vez (um acidente, na verdade), César demonstra choque e mal estar. Mas depois assume sua condição de líder de uma batalha. Até mandar seus iguais para abrir caminho, sob risco de morte, a fim de que a maioria vença, está valendo.
Ao final, os primatas sobreviventes chegam ao destino desejado, uma pujante floresta de sequoias, de onde se descortina a cidade que os reduziu a quase nada. São os novos donos daquele pedaço de mundo, mas certamente não teriam condições de sobreviver à humanidade, habituada a usar os recursos mais infames para eliminar dissensões. Dizimar a floresta e seus habitantes não seria nada, ainda mais numa sociedade beligerante, como a estadunidense. Mas é aí que o roteiro triunfa e cria uma explicação plausível para o fim da humanidade: a droga desenvolvida pelo aguerrido e por vezes irracional cientista possui um componente viral, inócuo para os macacos, fatal para os humanos.
A última informação do filme, curiosamente, é passada durante os créditos finais, indicando como o vírus se dissemina pelo mundo, levado de aeroporto em aeroporto por inocentes contaminados. Está explicado: a era dos homens termina e, em seu lugar, os seres mais evoluídos são os macacos, que se reproduzem e assumem o comando.
É uma metáfora, recordemos. Se não os macacos, poderia ser outra categoria de seres. Para refletir.
Ah, sim, o filme é sensacional.
A 20th Century Fox anunciou para maio de 2014 uma continuação do filme, sob o sugestivo título de Dawn of the planet of the apes.
4 comentários:
Gostei da resenha do filme, mas quanto a sua metáfora com o sistema prisional, só tenho a dizer que o César diversos outros macacos do filme possuem um senso de humanidade muito maior que diversos enclausurados que "foram empurrados para a brutalidade". Veja o caso da menina assassinada em SP: "ela reagiu e é isso que acontece com quem reage (um dá de ombros e o outro comparsa dá uma risadinha)", coisa que nenhum dos macacos dá a impressão de passar. Enfim, esse é um mundo em que não seria bom viver.
conheço a cara do Andy Serkis, haha. Ele interpretou o produtor musical Martin Hannett no surreal filme 24 Hour Party People, que retrata boa parte da cena musical da cidade de Manchester nos anos 80, com enfoque no meu querido Joy Division e nos Happy Mondays :)
Os Smiths, pena, não aparecem, mas o filme explica o porquê...
Das 10h50, realmente, não parece haver linearidade no nível evolutivo dos espécimes de espécies diferentes.
Caio, no terceiro filme da trilogia "O senhor dos aneis", Andy Serkis aparece de cara limpa, embora caracterizado como um hobbit, interpretando Sméagol, que se tornará Gollum. Portanto, todos os fãs do filme conhecem a cara dele, a despeito de, talvez, desconhecerem esse detalhe.
Desconheço esse filme que mencionas. Parece interessante para fãs do estilo musical, não?
Embora deixe meio glorificados personagens autodestrutivos (uma das críticas que tenho a Clube da Luta), é um filme divertido, mas de fato é complicado encontrá-lo fisicamente, mesmo em cópias piratas. Mas é facilmente disponível na internet, assim como suas legendas em português. Vez ou outra passa em algum Telecine. Também é conhecido como "A Festa Nunca Termina".
Há também o filme Control, relato bem cru especificamente sobre o Ian Curtis. Já o vi pela Fox. O diretor, ex-fotógrafo da banda, já havia dirigido o clipe da música "Atmosphere".
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