terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Cloud Atlas

No final de semana retrasado, tentamos ver o filme toscamente chamado, no Brasil, de A viagem. Chegamos ao Cinépolis do Parque Shopping (longe do centro da cidade) com uma hora de antecedência, pelo menos, mas a sessão das 20h40 estava esgotada. Exatamente uma semana depois, repetimos a tentativa e, chegando com apenas, meia hora de antecipação, não tivemos a menor dificuldade. O cinema estava com aproximadamente 60% de sua  lotação, no mesmo horário do mesmo dia da semana. Ainda me pergunto se a redução do público se deve ao fato de que muitos já viram o filme ou se tem a ver com a opinião, exteriorizada em diversos comentários pelas redes sociais, de que a trama seria difícil, confusa ou  infame trocadilho  de que é uma viagem, no sentido depreciativo.

Cloud Atlas (o título original é muito mais cheio de intenções e possibilidades do que a paupérrima versão nacional) é a longa (são 172 minutos) adaptação do romance homônimo (2004) do escritor inglês David Mitchell1, que tem uma relativamente curta porém respeitada carreira. Se tivéssemos que escolher uma classificação, melhor seria enquadrá-lo como ficção científica, que é o que mais se adequa ao que foi exibido na tela e também corresponde aos prêmios recebidos pelo romance.

Muito em síntese, a trama conta seis estórias paralelas, cujos personagens seriam reencarnações (o vocábulo foi usado pelo próprio autor do livro; v. nota 1)  aspecto que por sinal me incomoda, como espírita, porque insiste no velho clichê de que as pessoas reencarnam em corpos iguais aos que possuíam antes. Mas deixemos o aspecto espiritualista para depois. Iniciando no século XIX e indo até uma futura sociedade pós-apocalíptica, você vê trajetórias que se cruzam porque tudo está conectado. Essa parece a grande premissa metafísica do filme.

Os pontos de contato entre cada capítulo podem ser extremamente frágeis e indiretos (o livro de Adam Ewing apoia um móvel de Robert Frobisher e ele se registra na espelunca como Mr. Ewing) ou mais profundos e indefiníveis (o físico Isaac Sachs se apaixona pela jornalista Luisa Rey assim que a vê, e coloca sua vida em risco por isso, pois acredita haver uma ligação entre eles; a jornalista escuta uma peça musical rara, mas tem certeza de já a ter ouvido antes).

A maior parte dessas ligações, portanto, é verdadeira, porém não conduz a nenhuma epifania ou descoberta existencial. A ênfase acaba pairando sobre o amor entre os personagens de Tom Hanks e Halle Berry, que atravessa os séculos. O que de modo algum compromete a qualidade dessas tramas, capazes de provocar valiosas reações emocionais do público. O romance, e o roteiro dele decorrente, são belas obras ficcionais e não tratados de filosofia moral, pelo que se pode afirmar que cumprem muito bem seu papel, se a isso se limitarem.

Mas, no Brasil ao menos, estão tentando de todo jeito relacionar o filme à doutrina espírita, o que eu, como espírita, não endosso de modo algum. Talvez isso explique o título imbecil, que remete à novela da Rede Globo, de temática espírita e que fez sucesso nas duas versões. Mas esta particularidade será objeto de uma próxima postagem.

A viagem não tem nada de difícil. Apenas conta seis tramas paralelas sob edição fragmentada. Se cada estória fosse contada por capítulos, ficaria patente como é mais simples do que parece (e perderia quase toda a graça, porque depende dessas idas e vindas para estimular reflexões em quem assiste). Se apenas isso força demais os neurônios do sujeito, honestamente, ele está passando um veemente recibo. Nesse caso, melhor mesmo ficar em casa vendo aqueles programas em cuja concepção reina o raso, o vazio, o medíocre e o mais profundo individualismo.

***

A viagem contou com uma publicidade adicional, decorrente da mudança de sexo do outrora Larry e agora Lana Wachowski, um dos diretores. Saiba mais sobre o caso nesta postagem feminista. Muita coisa mudou desde Matrix.

E nem tudo são flores na trajetória do filme. Na China, nada menos do que 40 minutos da projeção foram cortados. Saiba mais aqui.

No mais, agradável a crítica de Pablo Villaça.

1 Fiz uma busca e, aparentemente, o romance não foi editado no Brasil, ainda. Vi sites brasileiros vendendo o livro em inglês e uma versão para o português editada em Portugal, por sinal com o péssimo título Atlas das nuvens, que parece uma tentativa de tradução literal e absolutamente desinformada. O próprio autor explicou o título, que deveria ser entendido de forma literal: nuvem Atlas ["Literally all of the main characters, except one, are reincarnations of the same soul in different bodies throughout the novel identified by a birthmark... that's just a symbol really of the universality of human nature. The title itself 'Cloud Atlas', the cloud refers to the ever changing manifestations of the Atlas, which is the fixed human nature which is always thus and ever shall be", cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Cloud_Atlas_(novel)].

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