Já faz um tempo que, em conversa com minha esposa, me ressenti de que, em matéria de seriados (o nosso lazer de antes de dormir), nós praticamente só víamos os criminais. Era muita perversidade às portas do sono. Saímos à procura de outras opções, destacando que meu cérebro preza demais pelos neurônios que possui, por isso comédias (e especialmente as produzidas nos Estados Unidos) estão fora de cogitação. Relaxar, sim; imbecilizar-se, jamais. Até fugimos um pouco do crime, mas admito que American Horror Story e The walking dead não são exatamente alternativas muito melhores.
Foi nesse contexto que, no ano passado, deparamo-nos com a grandiosa séria inglesa Downton Abbey, sobre a qual nada sabíamos. Foi amor à primeira vista, dos bem arrebatadores.
A série retrata a vida em uma propriedade rural ao norte da Inglaterra, destacando dois universos separados por um abismo social: o dos aristocratas eduardianos e o dos seus empregados. No primeiro, uma vida dedicada a obrigações sociais, que para o senhor da propriedade consistiam sobretudo em mantê-la e, para as mulheres, em encontrar um marido nobre na juventude e depois do casamento se revesar entre futilidades, chás e os tais eventos de caridade que as socialites realizam até hoje para fingir humanidade. A coisa mais excitante que os homens faziam eram as horrendas caçadas. Como aristocratas, todos têm aversão ao trabalho e sequer sabem o que é "final de semana". No segundo universo, uma vida de anulação pessoal, em que o único compromisso era servir com perfeição aos nobres, com direito a uma tarde de folga por semana.
Mas o seriado nada tem de fútil. Sua abordagem profundamente humana tem como grande atrativo a capacidade de mostrar como não apenas os serviçais ansiavam por uma outra vida, ao mesmo tempo que não viam oportunidades de alcançá-la.
Ser um aristocrata seria perfeito se tudo corresse às mil maravilhas e não enfrentando as mudanças profundas trazidas pelo século XX, sinalizando que aquele modelo de sociedade estava desmoronando. Desde a segunda metade do século XIX, a dissipação das fortunas estava arruinando as famílias, que precisavam se desfazer de suas suntuosas herdades, as quais não representavam apenas fortuna e opulência, mas a própria compreensão de seu lugar no mundo. Sem o torrão natal, aquelas pessoas sequer saberiam quem eram. Era desesperadora a luta pela continuidade e a solução eram os casamentos de conveniência entre os nobres ingleses e as buccaneers, herdeiras milionárias que vinham dos Estados Unidos conquistar um posto na alta sociedade do Velho Mundo.
Quando a série começa, a família Crawley recebe a terrível notícia de que seus dois parentes mais próximos morreram no naufrágio do Titanic. Isso é um problema porque a fortuna de Cora, condessa de Grantham, passou a pertencer ao marido quando se casaram e, mais do que isso, ficou vinculada à propriedade. E somente homens podem herdar, sendo que, com a morte dos dois primeiros nomes na ordem de sucessão (o mais novo deles sendo prometido a Mary, primogênita do conde), o herdeiro passa a ser um primo distante e desconhecido. Todos ficam horrorizados ao saber que ele é um advogado em Manchester (ou seja, um sujeito que trabalha e leva uma vida totalmente diferente, urbana, sem nenhuma vocação para ser castelão no interior).
Matthew chega com sua mãe e se percebe que eles são de classe média alta, bem educados e mesmo treinados para aquele estilo de vida (Matthew se ofende com o lacaio que lhe serve no primeiro jantar e supõe que o convidado não sabe usar os talheres), mas o choque de culturas é inevitável. Daí a trama vai-se desenrolando com todos os ingredientes capazes de prender a atenção de homens e mulheres: convenções sociais, uma história de amor que não ata nem desata, concessões à luxúria, intrigas, conspirações, a Primeira Guerra Mundial (que vai fazer tudo mudar), ascensão do capitalismo, etc. É um deslumbramento, com um fundo histórico impecável e uma apuradíssima recriação da época.
No andar de baixo do impressionante castelo, a vida não é menos emocionante, embora com premissas totalmente diversas. Renúncia, lealdade absoluta, sacrifícios pessoais, desejo de uma vida melhor, intrigas, conspirações, a Primeira Guerra Mundial, mudanças na geopolítica mundial, etc.
Downton Abbey é um seriado que tem o ingrediente que reconheço como a maior demonstração do valor de uma obra de ficção: você começa a se importar de verdade com os personagens. Quer estar com eles, saber mais sobre eles e sente falta se não estão por perto.
Sendo um programa fora do circuitão comercial, apenas a primeira temporada foi exibida no Brasil, pela TV fechada. Foi bastante difícil adquirir o box com as duas primeiras temporadas, sendo que a terceira está sendo exibida presentemente.
No começo do mês, deparei-me por acaso com um livro que se define como um guia das duas temporadas, escrito por Jessica Fellowes, jornalista e sobrinha do criador da série, Lord Julian Fellowes, ator, autor, produtor e diretor. Comprei-o no ato e já o devorei. Com isso, pude compreender de maneira muito mais completa não apenas o seriado, mas a história que o inspirou que, no fundo, tem a ver com a história da própria família Fellowes e teve diversos personagens inspirados em pessoas reais.
No prefácio, Julian Fellowes explica que as grandes propriedades rurais são o símbolo de uma época, na Inglaterra, mas elas "perderam seu valor quando boa parte da aristocracia desistiu desse estilo de vida depois da guerra, e nos anos 1950 tais construções não serviam nem como um presente. Pelo contrário, derrubaram-se aquelas que não eram consideradas adequadas para exercer novos papeis, com frequência inapropriados, e assim, palácio a palácio, grande parte da herança cultural inglesa foi literalmente destruída."
Prossegue Fellowes explicando que, em 1974, o Victoria and Albert Museum "decidiu montar uma exposição chamada 'A destruição das residências rurais inglesas' — e não é exagero dizer que tudo mudou, quase da noite para o dia. Percebemos que aquelas casas foram parte importante da nossa história, que a vida que se desenrolara lá dentro relacionava-se com todos nós — não importa se nossos antepassados entravam pela porta da frente ou dos fundos". Ele as considera um "símbolo do caráter nacional" e motivo de orgulho. E, com razão, lamenta o que se perdeu.
Downton Abbey é, assim, uma obra de ficção que faz reflexões sobre a memória de um povo. Decerto que, por isso, um inglês há de apreciá-la bem mais do que um estrangeiro. Mas qualquer um de nós que se permita, há de usufruir dela com grande deleite.
PS — Segundo este site, a série já está confirmada até a quinta temporada, tendo sido exibida, pela TV fechada, a terceira. Mas não acesse o link em questão porque ele fala sobre a morte de um importante personagem.
2 comentários:
O GNT está fazendo propaganda que irá começar a transmitir a série professor!
Não deixe de ver, Luiza. Vai adorar.
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