"Cabe registrar, ainda, que o acusado esteve na posse do bem subtraído, conforme auto de apreensão, pelo que deve ser aplicado (sic) em relação a ele a inversão do ônus da prova em relação ao crime cometido."
Inversão do ônus da prova no processo penal e contra o réu?! Sério? Fiquei parado um tempo, pensando na assertiva. E constatei que a tese de Ministério Público vinha amparada em dois precedentes específicos, um do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (1999) e outro do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo (2002).
As boas ideias sempre têm acompanhamento, não é?
É bem verdade que, tal qual o promotor de justiça em questão, já sustentei em casos reais a tese de que o ônus da prova cabe ao autor da alegação, mesmo no processo penal. Isso tanto tem fundamento no texto expresso da lei (art. 156 do Código de Processo Penal) quanto na necessidade de resguardar a paridade de forças (permitam-me este argumento formal) e a viabilidade do processo. Do contrário, seria possível ao réu fazer toda e qualquer alegação, por mais estapafúrdia que fosse, e o Estado seria obrigado a mover mundos e fundos para confirmá-la ou não. Naturalmente, as consequências seriam terríveis.
Assim, o réu que alega um álibi, p. ex., tem o ônus de prová-lo. Mas isso não tem nada a ver com inversão do ônus da prova, porque o réu não estaria sofrendo um encargo originalmente do acusador, e sim um encargo decorrente de sua própria defesa.
Existem uns argumentos de força no processo penal que, de tão enfáticos, tal qual erros de português, botam-nos em dúvida sobre nossos conhecimentos da matéria. Mesmo seguro em minhas convicções, decidi procurar referências no Supremo Tribunal Federal, utilizando como expressão de busca "inversão e ônus e prova e processo e penal". Obtive 11 retornos, dos quais transcrevo o primeiro:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA DO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. REQUISITOS. ÔNUS DA PROVA. ORDEM DEFERIDA EM PARTE. 1. Inserido na matriz constitucional dos direitos humanos, o processo penal é o espaço de atuação apropriada para o órgão de acusação demonstrar por modo robusto a autoria e a materialidade do delito. Órgão que não pode se esquivar da incumbência de fazer da instrução criminal a sua estratégica oportunidade de produzir material probatório substancialmente sólido em termos de comprovação da existência de fato típico e ilícito, além da culpabilidade do acusado. 2. Atento a esse marco interpretativo, pontuo que, no caso dos autos, as instâncias precedentes recusaram o pedido defensivo de incidência da minorante do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 sob o fundamento de inexistir prova da primariedade do acusado. Incorrendo, assim, numa indisfarçável inversão do ônus da prova e, no extremo, na nulificação da máxima que operacionaliza o direito à presunção de não-culpabilidade: in dubio pro reu. Preterição, portanto, de um direito constitucionalmente inscrito no âmbito de tutela da liberdade do indivíduo. 3. Ordem parcialmente deferida para, de logo, reconhecer a incidência da minorante do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 e determinar ao Juízo de Direito da 4ª Vara Criminal de Campo Grande/MS que refaça, no ponto, a dosimetria da pena.
(STF, 2ª Turma - HC 97701/MS - rel. Min. AYRES BRITTO - j. 3/4/2012 - Acórdão eletrônico DJe-186 DIVULG 20-09-2012 PUBLIC 21-09-2012)
O grande Ayres Britto me deu um alívio danado.
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