Existe um famoso documentário chamado Uma História Severina (dir. Débora Diniz e Eliane Brum, Brasil, 2005, já comentado aqui no blog), que retrata o drama de uma Severina de verdade, grávida de um anencéfalo, que tenta interromper a gestação. Àquela altura, nos primeiros momentos de existência da ADPF 54, o Min. Marco Aurélio (relator) deferira a liminar, permitindo que o procedimento fosse realizado em todo o país. Ocorre que essa liminar acabou cassada, por razões processuais, haja vista que uma deliberação dessa monta deveria ser dada pelo Plenário do STF e não por decisão monocrática.
A Severina do documentário chega ao hospital no dia seguinte à cassação da liminar e padece nas mãos dos burocratas. No final das contas, a gestação é levada a termo e o resultado é o óbvio. As imagens da tragédia familiar são intercaladas com cenas gravadas no STF, quando os ministros discutem o caso. Na cena mais contundente para mim, o Min. Cezar Peluso ironiza (ele adora ironizar coisas sérias, como vimos em seus comentários e linguagem corporal durante o julgamento da "Lei da Ficha Limpa") a questão e sugere que o problema não é tão grave quanto sugerido na petição inicial do processo. "Onde estão essas mulheres?", debocha, como se elas não existissem. Foi a primeira vez que senti aversão ao senhor ministro, mas não a última, e comemoro a sua aposentadoria. Já vai tarde.
Na semana passada, como todos sabem, a ADPF 54 teve seu desfecho e agora sabemos que interromper uma gestação com diagnóstico comprovado de anencefalia não configura abortamento, passível de incriminação. Saber, até sabemos, mas isso pode não significar muito. Em Pernambuco, uma mulher nessa situação não está conseguindo atendimento médico. O motivo? O acórdão do STF ainda não foi publicado!
Odeio burocratas e odeio, acima de tudo, gente burra. Se a decisão do STF é pública, notória e definitiva, porque não cabe mais recurso, qual a razão de dependermos da formalização de um ato cuja razão de ser é, tão somente, a publicidade? Note que o que dá à gestante o direito de interromper a gestação é a própria condição médica, não a existência de um documento judicial. Todo o controverso direito discutido nesse julgamento fica relegado a uma condição secundária, porque importante mesmo são umas letrinhas num pedaço de jornal (ou um link na tela do computador).
Por comparação, imagine-se uma lei penal que tenha vacatio legis. Se essa lei for mais benéfica, abolindo um crime ou reduzindo ônus penais, ela pode ser aplicada mesmo durante a vacância. É o bom senso que o determina. Afinal, se já sabemos que o autor da tal conduta não será punido daqui a alguns dias, e se sabemos também que a lei mais benéfica é retroativa, qual o sentido de manter hoje um conteúdo punitivo que desaparecerá em questão de dias? Seria imbecil, sem dúvida. Esperar o acórdão também é, ainda mais sabendo que ele poderá demorar meses.
Mas além de imbecil é um ato de desumanidade. E nisso nós, brasileiros, somos bons até demais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário